A lembrança aparece duplicando a cada instante a percepção, nascendo com ela, desenvolvendo-se ao mesmo tempo que ela e sobrevivendo a ela, precisamente porque é de outra natureza”
– Bergson, A Energia Espiritual
A lembrança é o momento em que nosso ser se soma à imagem recortada que recebe de fora. Dito em outras palavras: a lembrança é a percepção que é enriquecida pela memória antes de tornar-se ação. Como isso acontece? Precisamos responder a esta pergunta porque quando temos um corpo em jogo, a coisa se torna diferente. Afinal, as imagens, os fluxos, podiam simplesmente perambular por aí… mas elas são percebidas por nós, selecionadas por nós, absorvidas. Mas elas nunca retornam de maneira pura, maquinal, reta. Há aí uma hesitação. É neste momento que alguma coisa muda.
Contra todos os determinismos, Bergson descreve o corpo como um centro de indeterminação, um ponto de hesitação. Esta imprevisibilidade é algo positivo, não é a simples falta de conhecimento. Ela é criação, potência constitutiva, liberdade criativa. Só seríamos capazes de prever tudo em um ser humano, em um organismo, se mudássemos essa própria direção de variação e diferenciação em que ele se move. Nivelar para baixo, torná-lo maquinal, puro hábito. Mas nós seguiremos na direção oposta.
Para entender Bergson, precisamos entender o “delay” entre passado e presente. Esta é a linha de fuga para a criação e atualização do virtual no atual. É neste momento que algo se adiciona, algo se cria, algo aparece. O “delay”, o intervalo entre o estímulo recebido e movimento devolvido é o ponto onde Bergson se apoia para falar da junção entre a matéria e a memória. É aqui que opera a memória.
A verdade é que, se uma percepção evoca uma lembrança, é para que as circunstâncias que precederam e acompanharam a situação passada e seguiram-se a ela lancem alguma luz sobre a situação atual e mostrem como sair dela. […] em suma, o que importa saber para compreender o presente e antecipar o porvir”
– Bergson, Energia Espiritual
A famosa brincadeira “Qual é a música?” será nosso exemplo. O maestro toca uma nota, ela toca nosso tímpano, atravessa o ouvido interno, passa pela martelo, a bigorna e chega na cóclea, vários sensores transformam a vibração em sinais elétricos que chegam ao lobo temporal do cérebro, resultado: escutamos uma nota, escutamos duas, três… Então nos perguntamos: “que melodia é essa?”, “mais uma nota, por favor”, nos esforçamos, “Ah, finalmente! Lembramos!”
O presente clama pelo passado para poder agir, criando futuro. Ou melhor, o passado se insere nas frestas do presente para criar algo! Caso contrário, seria um perpétuo presente mecânico, frio e repetitivo.
Resumindo, embora a totalidade de nossas lembranças exerça a todo instante uma pressão do fundo do inconsciente, a consciência atenta à vida só deixa passar, legalmente, aquelas que podem concorrer para a ação presente”
– Bergson, Energia Espiritual
O movimento evoca uma lembrança que por sua vez se atualiza em movimento. Entre o sensório e o motor há um hesitação, é aqui que o passado toca o presente, o inconsciente toca o consciente. Há um intercâmbio entre o atual e suas virtualidades. Mas calma, vamos por partes:
- Uma imagem é percebida, uma figura é recortada do todo, é interiorizada. Somos afetados por algo, exemplo, a superfície da pele é tocada. As inúmeras vibrações são trazidas para dentro, através dos nervos eferentes, e se interpenetram no processo. A quantidade é comprimida e se torna qualidade, 440 vibrações se tornam a nota Lá… nota por nota vamos contraindo uma música.
- A imagem se torna uma afecção em nosso corpo. Neste momento, há um intervalo, uma hesitação. A imagem que antes era exterior vibra todo o nosso ser, se divide em milhões de caminhos internos. O mundo exterior bate fundo em nós, nos toca, nos move, nos contagia. Algo dentro de nós se agita. O corpo se soma à imagem, dança com ela e lhe adiciona algo. É neste intervalo entre o eu superficial que recebe a imagem e o eu profundo, que hesita, onde algo se soma, onde alguma coisa acontece. É neste momento que a memória se atualiza. A imagem não passa incólume por nosso ser, ela se desdobra e se enriquece.
- A imagem retorna para o real como movimento, mas volta com alguma coisa a mais. Volta diferente, retorna com mais do que entrou. O grau de liberdade do corpo, da vida, é a capacidade de receber estes estímulos e fazê-los se diferenciarem, se tornarem outra coisa ao voltarem como ação. A imagem ação se torna a resolução de um problema, uma força que corta a realidade em outras direções. Um desvio, uma declinação. A imagem ação é sempre mais que a imagem percebida. Mas quanto? Ora, isso depende apenas do grau de liberdade do organismo que a recebeu, sua capacidade de diferenciação. Sua amplitude nas ações, sua capacidade de afetar e ser afetado, seu repertório de ações. Enfim, a fase psíquica (virtual) passa para a fase corporal (atual). Nosso ser que dura atualiza um movimento: esquema dinâmico voltado para a ação, a imagem se torna uma coordenação motora, chega aos músculos e faz alguma coisa no mundo ao redor, ação efetiva.
Atualizar uma lembrança é comprimir toda uma região do nosso ser para atuar sobre a percepção recebida. Atualizar uma lembrança é fazer uma imagem de fora passar por caminhos de nosso ser que a declinam, a transformam. A possibilidade de não agir superficialmente é que aumenta o grau de memória sobre a imagem. Se não simplesmente reagimos às urgências do presente, somos tragados para a memória, onde há uma riqueza enorme. O ser é um abismo, pulamos na memória como quem salta para o desconhecido e volta com alguma coisa nova! Atualizar o passado é adquirir uma nova postura.
A lembrança que se atualiza não estava em lugar nenhum, mas é real. Memória é duração, é um ser que acumula acontecimentos, experiências. Nosso ser é riscado pelo tempo, adquirindo consistência, sulcos, dobras. Isso porque, se pensarmos bem, o próprio passado não está em lugar nenhum, ele está o tempo todo presente, ele é, ele está concentrado, ele vive amassado no atual, como camadas de terra que se comprimem infinitamente, no presente. A lembrança é um caminho que o atual percorre.
Nossa memória solidifica em qualidades sensíveis o escoamento contínuo das coisas. Prolonga o passado no presente, porque nossa ação disporá do porvir na exata proporção em que nossa percepção, avolumada pela memória, tiver contraído passado“
– Bergson, Matéria e Memória
Dispomos de futuro na exata medida em que contraímos passado! Através de nossas lembranças, adicionamos algo no mundo, ele se torna mais, por causa de nosso passado que se atualiza e é jogado no presente, como mais uma variável, como tendências, para guiar nossa ação. A memória é uma ferramenta evolutiva, é uma estratégia de sobrevivência, não queremos o presente cru, nem nos perder no passado, se podemos ter as duas coisas. O passado pressiona o presente para uma determinada direção. A virtualidade é real, ela está aqui e agora em determinado grau, ela se atualiza. Não queremos ver o mundo como um retrato pobre do presente, o passado enriquece o presente. Muito bem, mas qual é o resultado da mistura entre passado e presente, entre matéria e memória? A resposta não poderia ser melhor: Produção de futuro!
A memória torna-se extensiva, deixa sua natureza intensiva para se tornar uma imagem-lembrança e passar para a realidade como movimento. Passamos do indivisível, da duração, para o divisível, a extensão. É o movimento do passado para o presente: extensivar-se. Diferente da direção do presente para o passado, que é intensivar-se.
O presente exige de nós o passado. O presente pede um esforço da memória, pede para ela subir a ladeira que um dia desceu, voltar e ajudar nos processos práticos da vida. A memória se soma ao determinismo, ela insere algo de indeterminado, uma tendência, um desvio. Por isso a vida é possível.
Não é a memória que está em nós, muito pelo contrário, e agora podemos dizer da maneira mais clara possível: é o corpo que está na memória! A memória é um corpo talhado, inserido no tempo, recortado pelos milhares de fluxos que o atravessaram e atravessam constantemente. Se é o universo como um todo que dura, nós, meras partículas de poeira estelar, estamos dentro desse jogo. Desviando partículas, dobrando dentro e fora de nós nossos pequenos universos.
O corpo é como uma fábrica que produz, que cria, que combina sensações para criar ações. Nosso inconsciente é maquínico! Ele produz continuamente, dobrando, esquentando, cortando, colando, com fogo! Como o trompetista recorda as notas que toca? Como ele lembra que atinge as notas agudas? Como ele sabe que pressionado o primeiro pistão emite um Fá? Essa lembrança se atualiza quando o ar passa, como o sopro da vida. O trompetista transforma ar em música. E nós somos como um instrumento musical, porque estamos vivos, nosso timbre e tessitura mudam ao deixarmos o ar entrar, e assim podemos tocar as notas de uma música universal.
Consciência e materialidade apresentam-se portanto como formas de existência radicalmente diferentes, antagonistas até, que adotam um modus vivendi e, bem ou mal, se acertam entre si. A matéria é necessidade, a consciência é liberdade; mas, apesar de elas se oporem uma à outra, a vida encontra meios de reconciliá-las. Isso porque a vida é precisamente a liberdade inserindo-se na necessidade e transformando-a em proveito próprio“
– Bergson, Energia Espiritual
Que texto lindo! Agora vou ler de novo pra entender!