Nenhum sacrifício pela nossa democracia é demasiado grande, menos ainda o sacrifício temporário da própria democracia.”
– Walter Benjamin
A sociedade não é um todo coerente. A cada momento de instabilidade a soberania parece atuar contra o povo e as leis parecem não ter consistência diante da fragilidade de cada acontecimento. Os técnico–jurídicos falam na mídia sobre estado de exceção em diversas situações mundiais em que as ruas pegam fogo, mas em que consiste esse conceito? O filósofo Giorgio Agamben, que não originou o conceito “estado de exceção”, trata na obra homônima diversas situações históricas em que essa medida foi aplicada pelo mundo.
O estado de exceção é um decreto do soberano ao conceber a sociedade em conflito, ou seja, o corpo social se encontra em guerra, insurreição ou resistência. O estado oposto ao normal, o estado de exceção é a resposta do poder estatal aos conflitos internos mais extremos. A crise política no território incita o governante a intervir contra a população, assumindo uma guerra contra o inimigo interno ao sistema social, acarretando em medidas de extrema violência.
“O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos”
– Agamben, Estado de Exceção, p.13
A partir de uma crise social, o Estado assume legalmente o estado de guerra. No entanto, o espantoso não é que essa medida seja assumida pelo governo em tempos de crise, mas que em qualquer crise o governo possa assumir para si o conflito de uma guerra civil. O estado de exceção não é apenas uma medida provisória, mas um paradigma de governo. Giorgio Agamben aponta como essa medida tem sido cada vez mais recorrente desde o re-início, na França em revolução (decreto de 8 de julho de 1791 da Assembléia Constituinte francesa), suspendendo a constituição contra os direitos dos revolucionários que se posicionavam contra o regime implantado.
No limite entre direito e política, o estado de exceção é um uso que o soberano faz do direito para suspender os direitos de indivíduos. Não apenas na Alemanha nazista Hitler decretou o estado de exceção, medida que sustentou o ataque a milhões de judeus em campos de concentração (ali colocados para o trabalho forçado até a morte), mas também Bush nos Estados Unidos prendeu e exportou estrangeiros, suspendendo todos os direitos e compreendendo-os como uma ameaça contra a segurança nacional. O corpo entendido como contrário ao sistema político é violentado sem qualquer direito. No entanto, não apenas Hitler e Bush usaram dessa medida, mas qualquer emergência no território pode conceder ao governante o impulso ao decreto. O estado de exceção se transformou em uma técnica de governo. Desde o século XX, ao invés da guerra, os problemas econômicos de um país têm levado o soberano a decretar o estado de exceção. Assistimos em pleno 2019 o estado de exceção (em sinonímia, estado de sítio ou estado de emergência) implantados no Chile e na Bolívia. Da mesma maneira, para demonstrar a fragilidade com que essa medida pode ser implantada, na ditadura militar (no período entre 1964-1985), o Brasil implantou o estado de exceção através do Ato Institucional 5.
A história posterior do estado de sítio é a história de sua progressiva emancipação em relação à situação de guerra à qual estava ligado na origem, para ser usado, em seguida, como medida extraordinária de polícia em caso de desordens e sedições internas, passando, assim, de efetivo ou militar a fictício ou político”
– Agamben, Estado de Exceção, p.16
O estado de exceção é um decreto do soberano que age com força de lei. Nessa medida, o poder executivo se sobrepõe ao poder legislativo, promulgando, modificando ou anulando as leis em vigor. A democracia moderna propõe uma hierarquia entre lei e decreto. A lei é instituída pelo poder legislativo e, separadamente e de forma restrita, o decreto é provisoriamente instituído pelo poder executivo. A lei é reconhecida pelo legislativo por ter apoio popular. O estado de exceção interpõe poder executivo e legislativo, sobrepõe lei e decreto, sem o apoio popular que constitui uma democracia. Por isso, a insistência no estado de exceção deixa aparecer sua natureza constitutiva da ordem jurídica e efetiva a liquidação da democracia. As medidas de emergência que são usadas para salvar a constituição levam à sua ruína.
Dado que leis dessa natureza – que deveriam ser promulgada para fazer face a circunstâncias excepcionais de necessidade e de emergência – contradizem a hierarquia entre lei e regulamento, que é a base das constituições democráticas, e delegam ao governo um poder legislativo que deveria ser competência exclusiva do Parlamento”
– Agamben, Estado de Exceção, p. 19
Agamben escreve sobre as tentativas de incluir na constituição o direito de resistência ao estado de exceção. No entanto, uma jurisdição de resistência cria um problema de interpretação. Em que resulta uma lei que incute o cidadão à resistência da própria lei? O cidadão deve ser obrigado a resistir contra o governante? Nos limites entre direito e política, o estado de exceção se apresenta como um problema do direito e que para alguns juristas deve ser compreendido como um ato político. O soberano decretar a suspensão dos direitos de um indivíduo está dentro ou fora da lei? É um ato jurídico ou político? Se o estado de exceção for compreendido como um ato político, ou seja, um ato fora da lei, como tratar o soberano que exerce essa medida ou o indivíduo cuja medida intervém? A lei deve legislar sobre o que está fora da lei? Existe uma lacuna permitida na lei?
Se o que é próprio do estado de exceção é a suspensão (total ou parcial) do ordenamento jurídico, como poderá essa suspensão ser ainda compreendida na ordem legal? Como pode uma anomia ser inscrita na ordem jurídica? E se, ao contrário, o estado de exceção é apenas uma situação de fato e, enquanto tal, estranha ou contrária à lei; como é possível o ordenamento jurídico ter uma lacuna justamente quanto a uma questão crucial? E qual é o sentido dessa lacuna?”
– Agamben, Estado de Exceção, p. 39
O que tem levado o soberano a decretar o estado de exceção é a necessidade. A isso, cabe a expressão necessitas legem nom habet, ou seja, a necessidade não tem lei; por um lado “a necessidade não reconhece nenhuma lei”, por outro, “a necessidade cria a sua própria lei”. Ora, esse príncipio determina a necessidade como justificativa para uma transgressão, como o poder de tornar lícito o ilícito. Ou por outro lado, a necessidade é condição para que a lei não observe o caso.
A exceção pode ser compreendida como o fundamento da lei, o fora que define o limite do dentro. A necessidade (ou exceção) origina ou legítima o instituto jurídico (ou o Estado), porém paradoxalmente, a necessidade é subjetiva e põe a ordem jurídica existente em risco de desmoronar. A exceção que define os limites da lei também a extingue. O poder de intervir fora da lei força o indivíduo a aceitar a lei estabelecida, porém o poder de intervir fora da lei estabelece a condição de não existir lei nenhuma.
A ausência da lei que o estado de exceção instaura não significa a ausência de ordem. O estado de exceção é uma medida aplicada fora da ordem jurídica, porém não se trata da anarquia ou do caos. A suspensão da constituição é decidida para defender a sua existência. A soberania se distingue da lei constituída propondo uma nova lei. O estado de exceção distingue dois elementos fundamentais do direito: a norma e a decisão. No estado normal, a decisão é mínima e aplica a norma, porém no estado de exceção, a decisão é constante e anula a norma. Ora, isso significa que o estado de exceção é uma ruptura paradoxal entre norma e aplicação: por um lado, o estado de exceção é a ausência de aplicação da norma que está em vigor, por outro lado, o estado de exceção é uma aplicação pura sem norma (ou de uma norma que não está em vigor). Explicando de outra maneira, ou a soberania não exerce o direito do cidadão ou a soberania exerce uma lei que não foi constutída. O estado de exceção é ou uma força sem direito ou um direito sem força.
Como o argumento do cidadão em perigo (quando a comunidade está sem proteção), o Estado alega legítima defesa contra o inimigo interno como se fosse inimigo externo. Nessa perspectiva, há impossibilidade de definir as consequências jurídicas dos atos cometidos durante o estado de exceção. No entato, não podemos deixar de ressaltar que para Agamben o estado de exceção não é uma ditadura: a ditadura é constituída por pleno direito e o Estado possui mais direito que os cidadãos, enquanto no estado de exceção inside a suspensão do direito e a aplicação de uma força sem lei constituída.
A violência exercida pelo Estado deve ser enfrentada não com uma crítica à finalidade que a motiva. “O Estado violenta a população com armas letais em manifestações para instaurar o medo da insurgência”. A crítica à finalidade com que o Estado age (“instaurar o medo da insurgência”) não transforma a ação do Estado. A crítica à finalidade também não impede a soberania de usar a mesma violência para outros fins. Agamben, inspirado por Walter Benjamin, demonstra que a crítica à violência deve ser uma crítica aos meios puros (independente da finalidade). Apenas a crítica aos meios pode transformar a violência exercida. Se por um lado existe a possibilidade de “impedir que o Estado use as armas letais”, por outro lado, “a insurgência deve investir na proteção da população”.
Assim, temos que a soberania é definida pela autoridade de instituir o estado de exceção, uma medida que suspende o direito dos indivíduos e ao mesmo tempo aplica uma violência sem lei, declarando-os como inimigos internos. Ao invés de o estado de exceção ser usado apenas em emergenciais, como guerras, declarar estado de exceção tem se tornado uma técnica de governo. Por isso assistimos no mundo o Estado assumir uma guerra contra os cidadãos independentemente da finalidade. Para conter o Estado, um caminho se abre: instaurar uma crítica dos meios usados contra a população. No entanto, parece que ainda veremos a ligação entre direito e violência se repetir muitas vezes. Contra isso, Walter Benjamin e Giorgio Agamben apontam a necessidade de traçar uma história do estado de exceção para abrirmos novos caminhos de combate.
Texto irretocável!! Parabéns, Léo, pela coerência e construção magistral do texto!!
O texto é interessante… Mas não entendi bem o rumo que o texto toma. A questão da anomia inscrita é certeira. Mas no fim das contas concordo com o postulado de Walter Benjamin que dirá em “Sobre o conceito da história” que “o estado de exceção é a regra geral”. Esse conceito se funda fortemente o diálogo entre Benjamin de “Para a crítica da violência” e Carl Schmmitt, jurista fundamental para a construção normativa do terceiro reich, e o próprio Benjamin no seu escrito derradeiro irá negar essa noção jurídica do conceito, ou de uma validade jurídica para o mesmo,… Ler mais >
Formidável
Muito bom, embora altamente complexo: a norma fora da norma.