Se pudesse, resumiríamos, lapidaríamos, condensaríamos, afiaríamos cada frase deste texto para torná-lo tão perigoso quanto a espada de um samurai! O consumo é mais que um assunto sério, é nosso mais novo mito da caverna! Nós temos pressa, precisamos trabalhar para ter dinheiro, precisamos de dinheiro para consumir, e, no fim das contas, precisamos consumir para preencher um vazio no peito, então vamos lá…
O consumo é a nossa religião, ele é nosso norte, nossa morte, nossa porta de entrada para a existência dialética do reconhecimento. “Quem sou? O que eu quero? Que sapato me cai bem? Que tipo de carro é combina comigo?“. Inclusão pelo consumo, consumo óbito. Zumbis orbitam o shopping, mesmerizados por altares e rezando o pai nosso com o cartão de crédito na mão. Na praça de alimentação, consomem comerciais regados a ketchup. Sanduíche de sódio com gosmas coloridas. Na viagem para Disney, consomem fotos com orelhas de rato. Parecem perecer a cada produto novo, mas dizem nunca terem se sentido tão vivos.
Nosso consumo é imagético, consumimos deuses mortos. Amarrados na parede de uma caverna, consumimos sombras na parede. Não temos corpos, apenas olhos, grandes pupilas dilatadas sempre prestando atenção no comercial da TV, nas sombras que passam à nossa frente. Tudo é tão brilhante! O narrador está tão empolgado que só pode ser verdade! O consumo nos consome, somos engolidos e não sabemos mais quem somos.
O consumidor real toma-se um consumidor de ilusões. A mercadoria é esta ilusão efetivamente real, e o espetáculo é a sua manifestação geral”
– Guy Debord, A sociedade do Espetáculo
Queremos consumir, mas esquecemos a nós mesmos no processo. Passamos do meio ao fim sem intensidade alguma. Queremos consumir, e dizem que nossa sociedade é feita para isso, mas nunca vimos uma sociedade que consuma tão pouco! Não sabemos consumir, sumimos no processo, nos perdemos no meio do turbilhão de tantas marcas e possibilidades, no fim das contas somos apenas o canal de materialização de uma imagem. Somos o instrumento que tira o produto da vitrine e coloca em nossas mãos uma sacola com o nome da loja nela.
Somos passivos, somos a falta a ser preenchida, somos o buraco negro que nunca para de engolir matéria. Não estávamos com fome até ver o comercial do McDonald’s, estávamos sem sede até ver o comercial da Coca-Cola. Somos levados como folhas ao vento, paradigma da servidão humana (veja aqui). O consumo de marcas nos marca, definitivamente, morremos como potência afetiva e reencarnamos como medíocres consumidores. Temos nosso Eu formado através de um longo processo de subjetivação: “dinheiro ou cheque?“, “compramos, logo: existimos”.
E esse eu profundo vai se entupir do que ele chama de experimentações e, na verdade, são consumos de imagens e de marcas que vão, não deixando ele mais leve e mais forte, vão deixando ele mais pesado. Portanto, na medida em que o tempo passa, ele se torna pior. Ele se torna mais medíocre, mais triste, mais submetido. E mais ele precisa transcender, claro, ele precisa fugir dessa vida, sair dessa vida, porque essa vida é insuportável. Então ele busca a transcendência como uma espiritualização, como uma elevação. Ora, a transcendência se alimenta exatamente dessa coisa baixa e sórdida que são essas marcas, essa incapacidade de se subtrair a essas relações de marcas”
– Luiz Fuganti
É preciso manter as aparências! “Já saiu o novo Iphone?”. Quem não anda para os lados, quem não nomadiza, só pode ir para cima (ou para baixo). Deus? A marca da minha roupa, o logotipo do meu carro, meu terno sob medida, meu mais novo celular com mais gadgets. Eu sou isso, eu sou aquilo, “você sabe com quem está falando?” Não! Os encontros se fazem andando de lado, como o caranguejo, tem muito mais na horizontal do que na vertical. Os presos na caverna do consumo só conseguem olhar pra cima e para baixo, mas não veem nada ao seu lado.
A pergunta final é: como consumir? Sim, queremos consumir, mas como? Se nossos poros estão todos entupidos, é preciso antes limpar o terreno, começar o trabalho em nós mesmos, tornar a superfície lisa. Sem antes desfazer este “eu profundo”, esta ditadura da identidade de cartas marcadas, não é possível consumir. Onde estão os espaços de indefinição? Onde estão as highways que levam para longe? Façamos trilhas então! Afinal, em todos os pontos precisamos parar para prestar conta de quem somos e para onde vamos! O pedágio do consumo reduz nossa velocidade intensa!
Consumir é consumir-se! É uma experimentação! O fogo consome, ele é quente como nosso sangue, não frio como o ar condicionado da praça de ali(m)en(t)ação do Shopping Center. Consumir é perder-se no processo! É sumir, fugir, abandonar-se, escapulir, esgueirar-se para longe do que costumávamos ser, enganar se for preciso. Implica mergulhar e sair outro, exige tornar-se sem saber exatamente o quê. Não há consumo se não se passar algo novo. Nem ser, nem ter, devir!
O consumo não para na imagem! Ele ganha velocidade, foge, escapa, se perde, tornar-se imperceptível! O homem mediatizado não sabe consumir como o nômade! Consumir não é ter, isso já está óbvio, mas também não é ser! Quem consome está sempre no processo! Não se deixa prender, não se deixa enganar: (con)sumir, para não ser capturado.
Quando se consome? Quando no fim surgem novos pensamentos, uma nova relação, uma nova descoberta de si, um novo corpo, um novo sexo. Queremos mergulhar em uma ética dos devires para salvar o consumo que desaprendemos. Por isso ele hoje é tão raro: consumimos regulamentos, imagens antigas em altares, queremos tudo em HD e com tabelas de nutrientes. A experimentação vai no sentido oposto: queremos consumir não para nos descobrir, mas tangenciar o ilimitado, encontrar partes novas de nós mesmos, “aqui está algo de mim que não sabia…”. Esticar-nos até não caber mais em nossas roupas de marca, ensurdecer de nossas próprias músicas enlatadas, desnutrir-nos com nossos alimentos congelados, perverter nossos deuses de moedas falsas: queremos nos tornar simulacros de consumidores. Abaixo Viva o consumo!
Que texto!!