Foi então que pela primeira vez defrontou-se, mediu-se uma pessoa com outra. Não foi ainda encontrado um grau de civilização tão baixo que não exibisse algo dessa relação. Estabelecer preços, medir valores, imaginar equivalências, trocar – isso ocupou de tal maneira o mais antigo pensamento do homem, que num certo sentido constituiu o pensamento: aí se cultivou a mais velha perspicácia, aí se poderia situar o primeiro impulso do orgulho humano, seu sentimento de primazia diante dos outros animais”
– Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda dissertação, §8
Fato, o homem é um animal que valora. Como? Através de seu corpo, através de seus afetos, através das trocas que realiza com o meio em que vive. Desde sempre, desde tempos imemoriais, o ser humano aprendeu a estabelecer preços e valores, ponderar medidas. Óbvio que não no sentido capitalista do termo, mas sim no sentido de dar peso, selecionar, hierarquizar. Sendo assim, Nietzsche é o filósofo que reintroduz o conceito de valor na filosofia e entende o ser humano como o mais legítimo animal estimador. Porque pensar é igual a pesar! Estas equivalências lhe permitem se afirmar sobre a natureza, os animais e inclusive sobre outros homens.
O homem designava-se como o ser que mede valores, valora e mede, como ‘o animal avaliador’. Comprar e vender, juntamente com seu aparato psicológico, são mais velhos inclusive do que os começos de qualquer forma de organização social ou aliança”
– Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda dissertação, §8
Cada coisa tem um preço, cada coisa possui um valor, que pode ser medido, prezado, estimado e por isso mesmo trocado, vendido, substituído. Tudo tem um valor, um peso, uma medida, que pode ser diferente para cada um. O valor é idiossincrático, depende de um momento, de uma história, de uma posição, de uma constituição corporal. Todo valor é uma perspectiva. O que vale muito hoje, pode não valer nada amanhã; o que vale muito para um, pode não valer nada para o outro; o que vale muito lá, pode não valer nada aqui.
Em meio a inúmeras trocas, não é de se surpreender que uns devam aos outros, uns se tornem credores e outros devedores. Há sempre alguém que dá mais e espera um restituição do valor que ainda lhe devem. O credor sente-se lesado caso não seja pago devidamente e o devedor pode querer pagar mas não saber quando nem como.
Aqui surge uma hipótese nietzschiana simples e inusitada: existe uma equivalência possível entre dívida e dor. Levando isso em conta, afirmamos que a dor também pode ser oferecida como moeda de troca. Inicialmente pode parecer estranho, mas não é novidade. Um dano sofrido pode ser igualmente pago com sofrimento. O devedor pode ser cobrado então das mais variadas formas, inclusive sendo tomado como objeto no qual o credor inflige uma certa quantidade de dor. Quanta? Ora, o necessário para credor sentir-se pago.
A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade”
– Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda dissertação, §5
O dano que se causa representa o não cumprimento da promessa, o castigo através da dor é uma das maneiras do credor sentir-se recompensado pelo dano causado. Poderia haver outras, mas, admite Nietzsche, há um certo prazer em causar dor. Caso não pague, ou não consiga pagar, o devedor pode devolver a sua parte permitindo ser castigado pelo credor. É uma maneira… Através do prazer de causar mal, o que é devido torna-se pago.
Ver-sofrer faz bem, fazer-sofrer mais bem ainda – eis uma frase dura, mas um velho e sólido axioma, humano, demasiado humano, que talvez até os símios subscrevessem: conta-se que na invenção de crueldades bizarras eles já anunciavam e como que ‘preludiam’ o homem. Sem a crueldade não há festa: é o que ensina a mais longa história do homem – e no castigo também há muito de festivo”
– Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda dissertação, §6
A vida na terra era mais alegre quando o homem não se envergonhava de sua crueldade e não tinha tanto medo e asco da dor. A vida era mais expansiva e (acreditem) alegre quando a dor não era evitada a todo custo, quando era vista como algo natural! Enfim, a vida era maior e mais forte quando havia uma possibilidade maior de valorar e de trocar e consequentemente mais afetos.
O homem é um animal estimador, é de sua alçada criar e avaliar para criar modos de vida. Inclusive avaliar a quantidade de dor que é capaz de suportar. Quanto esta disposto a sofrer para subir uma montanha? Quanto está disposto a correr atrás de uma presa que lhe pareceu apetitosa? Como o homem é um animal que valora, acha proporções e equivalentes, qualquer coisa pode ser trocada ou compensada por outra de alguma maneira, inclusive dores e sofrimentos. Mas o grande problema da civilização, diz Nietzsche, é a impossibilidade de criar valores, criar novas moedas de troca!
A consideração de Nietzsche apresenta um aspecto que ignorávamos ou simplesmente virávamos os olhos para não ver. Não podemos dizer que a má consciência nasce da violência ou da crueldade. Há um certo prazer em ver e causar dor, já sabemos, por isso o castigo, antigamente, não possuía uma conotação moral. Muito pelo contrário, o castigo era visto exatamente como o que impedia a má consciência, porque resgatava a dívida e a tornava quitada.
Pensando nisso, quantas vezes o sentimento de culpa não foi impedido exatamente pelo castigo, por permitir um canal para descarregar a culpa? Ao mesmo tempo tornando mais leve, pois o desequilíbrio estava saldado; e mais pesado, pois o castigo criava uma memória no antigo devedor, tornando-o mais grave, mais sério, mais concentrado, mais responsável. A má consciência não nasceu no castigo, este possuía a função de inocentar e redobrar a prudência do castigado.
O genuíno efeito do castigo, antes de tudo, numa intensificação da prudência, num alargamento da memória, numa vontade de passar a agir de maneira mais cauta, desconfiada e sigilosa, na percepção de ser demasiado fraco para muitas coisas, numa melhoria da faculdade de julgar a si próprio. […] o castigo doma o homem, mas não o torna melhor”
– Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda dissertação, §15
Com suas considerações sobre dor, castigo e sofrimento, surge uma segunda hipótese nietzschiana: com o fechamento para a possibilidade de sofrer, o homem tornou-se pouco a pouco, cada vez mais envergonhado de si mesmo, de sua natureza. Toda expansão de forças é vista com desconfiança, como um perigo manifesto. Há como que um amolecimento, um fechamento, um constrangimento. Em tempos antigos, a dor não doía como dói hoje nem possuía um caráter vexatório. No homem moderno, ela é um argumento contra a existência.
O que revolta no sofrimento não é o sofrimento em si, mas a sua falta de sentido”
– Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda dissertação, §7
O sofrimento sem sentido, eis a maior angústia humana. Por que tudo isso? Qual a razão de tanta tortura, sofrimento, aflição? A existência que não dê um sentido para si mesma não é capaz de suportar seu peso. O homem domesticado se envergonha de suas sensações, como se elas fossem erradas, estivessem fora do lugar.
Na filosofia de Nietzsche, podemos ver em vários casos, a dor não apenas é aceita mas muitas vezes buscada! Contudo, entendemos aqui um novo sentido, um sentido ativo, como forma de tornar a existência mais interessante, perscrutá-la em seus mais variados aspectos, enfrentá-la cara a cara. O sofrimento a aflição são afirmados não em si mesmos, mas pelos frutos que produzem. A dor é sentida como exterior, porque é vista do ponto de vista ativo.
Hoje não se cessa de colocar o sofrimento como primeiro argumento contra a existência, como seu ponto de interrogação mais grave, far-se-ia bem lembrar os tempos em que se julgava inversamente, pois não se queria renunciar a fazer sofrer e se via nisso uma sedução de primeira ordem, um verdadeiro encorajamento a viver”
– Nietzsche Genealogia da Moral, §7
Onde queremos chegar? Simples, em Nietzsche a disputa é sempre por mais potência! Neste sentido, o castigo e a dor podem ser ferramentas eficazes para uma intensificação do sentimento de potência. O senhor é legislador porque torna equivalente credor e devedor, responsabilidade e dívida, eles estão no mesmo plano! Um assume a responsabilidades e o risco de pagar por elas o outro, a capacidade de dar. Dor e exterioridade, porque ela não contamina as relações. Há aí uma força de criação e modelação da vida que impõem formas e sentidos. Nestas condições, tendem a aumentar a potência e engendrar o novo, o diferente.
A má consciência, a mais sinistra e mais interessante planta da nossa vegetação terrestre, não cresceu nesse terreno – de fato, por muitíssimo tempo os que julgavam e puniam não revelaram consciência de estar lidando com um “culpado”. Mas sim com um causador de danos, com um irresponsável fragmento o destino”
– Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda dissertação, §14
Nietzsche nos traz, na relação entre credor e devedor e no castigo, formas de relações imanentes, não permeadas pelo ressentimento ou pela má consciência. Aqui se faz e aqui se paga. Estamos na imanência, onde todas as dívidas ainda podem ser pagas! Onde se vive e se troca ininterruptamente. Onde ainda encontramos recursos para nos relacionar, onde ninguém é eternamente culpado ou condenado. Tudo está em devir, tudo possui valores humanos, e, exatamente por isso, pode ser deslocado e permutado quantas vezes for necessário. Mas quando acontece uma inversão dos valores, a dívida se torna mais difícil de ser paga, gerando desconforto. Quando o ressentimento nivela todas as relações para baixo a culpa tende a interiorizar a dor promovendo a sublimação da crueldade, caminhando pouco a pouco na direção da Má Consciência!
E nós, como bons investigadores desta planta que cresce em nós, seguiremos na mesma direção, para ver em que mar este rio deságua.
muito bom
Olá aluno do professor Alexandre, que está passando aqui hoje para fazer esse belo trabalho de análise de textos sobre Nietzsche. É realmente uma causa nobre esse trabalho, ainda mais quando executado por tal incrível professor de filosofia.
Ótimo ,meu modo de pensar está sendo diferente.