Inabalável é minha profundeza: mas cintila de enigmas e risadas que flutuam” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra
“O homem é um animal que ri”, esta é mais uma das grandes definições que a filosofia criou para caracterizar o ser humano. Mas ao longo de toda a sua história a filosofia pouco se pronunciou sobre o riso, e menos ainda fez rir. Não surpreende, é improvável imaginar que do abismo do questionamento saia uma boa piada. O mistério do riso parece uma questão menor em face de perguntas tão sérias, e são poucos os filósofos que se lembram de rir quando questionam a existência de Deus ou analisam o problema do mal. Afinal, quais foram os filósofos ousados – ou seriam irreverentes? – o bastante para escrever uma apologia do riso?
Freud foi um dos últimos grandes pensadores a levar o riso a sério. A psicanálise descobriu uma verdadeira maquinaria invisível das piadas. Para o criador da psicanálise, o riso denuncia uma força que se move no inconsciente, abaixo da superfície, e da qual só conseguimos ver a ponta do iceberg. Se seguirmos até o fim, veremos que o que motivou o riso era uma tensão inconsciente que precisava de um alívio. Algumas verdades só podem ser ditas na forma de uma piada, caso contrário, permanecem não ditas. O que motiva o riso então é quase seu oposto, um sentimento de raiva, vergonha, medo, ou qualquer outra emoção que não pode ser exposta de uma forma mais direta. Toda piada gera o riso como forma de aliviar a tensão. A mensagem é passada, mesmo que codificada na forma de ironia ou sarcasmo. Assim, conclui Freud, toda risada esconde algo sério, demasiadamente sério para ser dito.
Bergson, que escreveu um pouco antes de Freud, suspeitava que o mundo praticamente nos obriga a fazer piadas com ele, como uma maneira de lidar com o absurdo que é a sua falta de sentido, ou melhor, um excesso intelectual de sentido que é dado a ele. O filósofo francês afirmou que o riso é uma espécie de alongamento das juntas do pensamento, para evitar o enrijecimento intelectual. O riso se dá quando acontece uma quebra na direção normal do pensamento, mostrando os limites do racional. Se o corpo e a alma se tornam mecânicos pela inércia da sociedade, o cômico aparece como uma maneira de mostrar a plasticidade da vida, é uma crítica a todos aqueles que se renderam ao cotidiano. Mais uma vez, o riso expressa algo maior do que a sociedade permite existir.
Recuando um pouco mais, encontramos a crueldade do riso de Zaratustra, que ri de satisfação quando percebe a possibilidade de autossuperação das estreitas amarras da sociedade. Entretanto, este riso se mistura com uma enorme quantidade de dor, pois percebe tudo aquilo que é necessário deixar para trás. No fundo dessa risada é possível perceber um tanto de angústia, pois mesmo que tão eficaz quanto o ódio e a ira, este riso ainda não é capaz de purificar-se das durezas da existência. Nietzsche cruzou desertos e oceanos com seu Zaratustra para encontrar terras novas, mas ainda vê a guerra embaixo de cada risada que encontra.
Todos estes autores falaram de risadas perigosas, que lutam contra opressões e obrigações morais. Mas não perceberam como rir é também uma atividade muito humilde, pois parte do pressuposto de que todos nós somos meio estúpidos, o maior e o menor, e que não há nada de tão grande assim para se orgulhar. Foi a escola cínica, da antiguidade, que demonstrou mais perfeitamente como muitas vezes os mais confiantes são também os mais ridículos. Ou seja, a tonalidade política desta risada quer denunciar a covardia do poder, e destituir o opressor, mostrando como ele é ridículo. O riso de Diógenes na cara de Alexandre é libertador, porque enquanto uns só conseguem rir do alto de sua vaidade, outros riem porque sabem que todos são iguais. É deste pressuposto que se encontra um outro caminho para o riso, pois demonstra que nem todo riso precisa ser politizado ou esconder um desespero ontológico profundo. Afinal, quem nunca sorriu ao tropeçar na escada, ou derrubar molho de tomate na roupa branca?
Se recuarmos um pouco mais, encontraremos o agradável riso de Epicuro. Ele que ajudava a vencer o medo da morte e dos deuses provavelmente dava boas gargalhadas com seus discípulos. Não é difícil imaginar seus conselhos: “Está muito quieto por aqui, conte uma piada, Meneceu, nunca se é jovem ou velho demais para uma boa gargalhada. Vamos, Pítocles, é preciso aprender a rir com o mundo, rir com os amigos, rir consigo mesmo. O riso, meu querido Heródoto, é útil tanto ao jovem quanto ao velho, pois rejuvenesce quem está envelhecendo e permite ao jovem envelhecer em paz. Em suma, nunca é tarde demais ou cedo demais para rir com os amigos”. Sábias palavras as de Epicuro, rir em boa companhia talvez seja o mais próximo que se pode estar de alguém! Seja como meio de compartilhar as tristezas, tomando um gole de cerveja e dizendo: “Não, vai vendo, até aí tudo bem… “, seja multiplicando as alegrias da vida, fazendo o amigo quase cair da cadeira de tanto rir, afinal, uma boa gargalhada eleva qualquer espírito.
Recuando ainda mais, agora próximo dos primórdios da filosofia, é possível ver Heráclito de um lado, chorando com a tolice dos homens, e Demócrito do outro, que via as mesmas coisas, mas ria da tolice humana. Para o primeiro, nossos atos eram deploráveis, e por isso ele afastou-se da convivência humana; enquanto isso, do outro lado do mar Egeu, o abderita não parava de rir, tamanha a tolice nossa de cada dia. Foi Demócrito quem inspirou a filosofia alegre de Epicuro, pois encontrou um caminho tão leve quanto seus átomos para enfrentar as dificuldades da existência.
Antes de concluir, não podemos esquecer do compromisso de Espinosa, que prometeu não rir nem chorar, mas compreender. O esforço do filósofo holandês é honrável, mas é improvável que ele tenha desperdiçado seus dias sem um sorriso no rosto, logo ele, que estava sempre bem acompanhado de amigos e pensamentos. A promessa quebrada pode ser invertida: prometemos considerar inúteis todas as verdades que não nasçam junto de uma boa gargalhada. Todos nós precisamos deste remédio diário, afinal, somos todos meio palermas incuráveis. Ainda não compreendemos direito essa história de viver, provavelmente nunca entenderemos, mas tudo bem, podemos rir um bocado com nossos amigos, enquanto esperamos para ver como a piada vai terminar.
Referências
Comediantes Brasileiros:
- Igor Guimarães
- Tatá Werneck
- Fernanda Torres
- Gregório Duvivier
Comediantes Internacionais:
- Jim Carrey
- Pete Holmes
- Hanna Gadsby
- Hari Kondabolu
- Sarah Silverman
- Morgan Jay
- Louis CK
- Bo Burnham
Séries:
- Família Dinossauro
- Fleabag
- Friends
- Community
- Brooklyn 99
- The Office
Filmes:
- Tempos Modernos (1936) – Dir. Charlie Chaplin
- A vida de Brian (1978) – Dir. Terry Jones
- Apertem os Cintos, o Piloto Sumiu (1980) – Dir. Jim Abrahams, David e Jerry Zucker
- O Mentiroso (1997) – dir. Tom Shadyac
- O Auto da Compadecida (2000) – Dir. Guel Arraes
- Guia do Mochileiro das Galáxias (2005) – dir. Garth Jennings
- Jojo Rabbit (2019) – Dir. Taika Waititi
Páginas do Instagram:
- Rafa Chalub: @rafachalub
- Lara Santana: @larasantana
- Jéssica Diniz: @jedinizm
- Eu sou Fabão: @eusoufabao
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- Luana Zucoloto: @luanazucoloto
- Giovana Fagundes: @giovanafagundes
Texto delicioso!