Logo de início, se formos à origem, já notaremos a polêmica em que está envolta a palavra desejo. Desidero significa parar de olhar as estrelas, não mais ver as constelações. Ora, durante séculos as estrelas guiaram nosso caminho tanto místico quanto natural. Não olhar as estrelas significa então estar perdido, seguir seu próprio caminho que levará rumo à perdição.
Desde Platão, passando pelos estóicos, cristianismo, Hegel e finalmente chegando à psicanálise, o desejo foi visto como um mover-se em direção a alguma coisa. O desejo é o meio do caminho do que somos e o que queremos ser. Movimento este que imita as distantes estrelas que são perfeitas e imóveis. O desejo, dizem, é uma busca do bem e da perfeição: impávida, plácida, mas, diríamos, morta.
Enquanto Aristóteles ensinava o Motor Imóvel, Heráclito já dissera que Deus era uma criança jogando dados. Sempre existiram filósofos que seguiram a contra-corrente do idealismo para afirmar a terra como maior dos valores. Nós, como representantes dos inadequados, falaremos sobre eles esta noite:
Espinosa foi um dos que mais combateu a concepção de desejo como falta. E perdoava seus predecessores, “estamos conscientes de nosso desejo”, ele dizia, “mas somos ignorantes quanto às causas”. O desejo não é falta, não vem de fora, o desejo é uma força que se afirma de dentro, é a potência que constitui nossa própria essência. Não agimos por vontade, mas por desejo, ele é a causa eficiente em nós, a causa interna que nos faz permanecer em nós mesmos e mais, buscar sempre crescer e se tornar mais potentes.
Espinosa começa a lentamente desatar os laços que ligam o desejo à moral. Não há um modelo a seguir, não há um ponto final onde chegaremos. Não há Leis de Deus nem caminho das estrelas, o deus de Espinosa é a natureza, seu caminho, geométrico.
Qual a potência que eu tenho de existir? Qual a é a minha força de permanecer em mim mesmo e superar-me? O desejo é esta vontade de ser mais, experimentar mais, poder mais, que parte de nós mesmos. Não há modelos transcendentes, não há um ideal, não há ponto de chegada. Isso parece estranho em um primeiro momento porque estamos acostumados a pensar como o burro em que se coloca uma cenoura na frente para fazê-lo andar. Estamos tão impotentes que qualquer força exterior nos leva como folhas ao vento. Espinosa não gosta do impotente que se gaba de “seguir um ideal maior que si mesmo”. A natureza fala em nós, e cabe a nós ouvi-la. Será que queremos um carro novo? Trabalhar mais e comprar mais? Queremos a mulher de biquíni ou o homem sarado que aparece naquele comercial? Será que desejamos ou nos fazem desejar?
O desejo é a capacidade de experimentar, criar e, enfim, superar-se. Quanto mais formos capazes de pensar os desejos, mais entenderemos suas causas e as armadilhas que nos pregam neste campo. Tornaram-nos impotentes, fracos, e só assim seríamos capazes de dizer tais absurdos como o desejo vem de fora ou é insaciável. Espinosa daria uma boa risada desta afirmação e diria simplesmente, “O desejo está repleto de si, ele é sua própria potência” (veja mais aqui).
Deleuze segue a linha do desejo como excesso para consertar algumas bobagens que foram ditas pela psicanálise e afins. O desejo produz o real, desejar é produzir agenciamentos. É afetar e ser afetado. Como o desejo terminou por desejar sua própria escravidão? Édipo, idealismos e afins… o psicanalista é o mais novo padre, mas já tivemos tantos supersticiosos que nem saberíamos por onde começar. (veja mais de deleuze e o desejo aqui)
Precisamos encontrar nossas máquinas desejantes, ou passaremos a vida inteira buscando substitutos ao desejo Não somos máquinas de sublimar, somos máquinas de experimentar! Interpretar? Procurar o significado? Onde está o Falo disso tudo? E eu sei lá! O desejo está para além da linguagem e da moral. Ele prefere passear em vez de ficar deitado no divã. E ele segue passeando, abrindo caminhos, criando fluxos, muitas vezes capturado, mas outras tantas escapando, fugindo, criando novas planícies, onde pode florescer, sem pai, nem mãe…
Outro filósofo que opera com um conceito alternativo de desejo é Albert Camus. Por diversas vezes, os leitores deste autor tentam encaixá-lo no time dos existencialistas, querendo colocar nele o mesmo rótulo de Sartre, Heidegger, Merleau-Ponty e seus comparsas. De fato, a existência do homem no mundo é o tema da obra de Camus, entretanto há nele uma série de posições que o opõe fortemente à tradição humanista-existencialista. As noções de absurdo, de revolta e de liberdade articuladas pelo pensador resultam numa filosofia da existência, sem dúvida, mas bastante dissidente da filosofia existencialista. O desejo figura um papel fundamental na passagem entre a revolta e afirmação, como veremos.
A questão filosófica principal, diz Camus, é o suicídio. Estando frente à pulverização do sentido, à fragmentação das verdades, ao absurdo da existência; devemos ou não nos matar? Eis a pergunta fundamental. Fato é que nossa racionalidade não encontra par no mundo. Não há sentido que não tenha sido questionado ao longo da história, nada se mostrou resistente à irracionalidade do mundo. Será que, afinal de contas, o homem não possui nada de universal? Aqui Camus encontra tão importante para sua filosofia como o cogito para Descartes: o que temos em comum é a nossa inclusão no absurdo. Estamos todos mergulhados neste mar de sentidos vagos como ondas que vão e vêm sem regularidade. Estamos distantes do mundo, não nos entendemos com ele. Somos estrangeiros à nossa própria condição. O que há de errado com o “homem” (Aqui usado como um conceito bastante preciso, a saber, o de homem moderno)?
Para Camus, o homem esforça-se para fugir do absurdo, este é seu pecado contra a vida. Ele inventa projetos, ídolos, Deuses, finalidades para se distrair, para não se entediar, mas principalmente para não dar de cara com o absurdo. Ora, devemos então, como Nietzsche, afirmar o trágico da existência, não só aceitar a sua falta de sentido, mas fazer da falta de sentido uma revolta. Se a vida não tem sentido, só poderá ser vivida em sua absurdidade. Devemos lançar longe a esperança e os ideais, pois estes são de um lado disfarce, de outro veneno. A vida só poderá ser vivida na consciência precisa de sua tragicidade.
A revolta nasce aqui, na opção pela vida, mesmo que a vida seja regida pelo absurdo. Trata-se de enfrentar a morte com a consciência, com a revolta, com o reconhecimento da luta, jamais aceitá-la e o desejo é o operador fundamental. Aqui o desejo de vida, se quiserem podemos chamar de pulsão de vida, deve vencer o suicídio, as pulsões de morte. Quando aceitamos o absurdo e nos revoltamos com a morte, optamos pela vida sem conciliação e escolhemos Eros no lugar de Tânatos. Um aspecto genial que não vou abordar aqui é a questão da liberdade em Camus: quando o homem reconhece o absurdo, deixa de mascarar o real, buscar explicações, julgar o devir, enrijecer a existência e ganha enormemente em liberdade, uma nova maneira de encarar o seu destino. Indico a leitura do Mito de Sísifo (veja aqui) para os interessados.
Detenho-me na questão do desejo fazendo uma pequena citação: “Se há um pecado contra a vida, esse não é provavelmente o desesperar dela, senão o esperar por outra vida e subtrair-se à implacável grandeza desta”. A concepção de homem de Camus envolve um ser que conhece o absurdo da existência, experimenta a revolta, reconhece sua liberdade e a possibilidade de se construir eticamente. Mas todo esse caminho supõe uma vontade de vida, um excesso de potência, um desejo enquanto força motora. Jamais, repito, jamais buscar uma vida esvaziada de desejo, pois no momento em que este cessar o suicídio, enquanto pulsão de morte, triunfa e faz naufragar o homem, que, enquanto vivo, elege ideais para suportar a existência até o momento em que finalmente escolhe a morte.
Neste mesmo sentido, encontramos Michel Onfray, filósofo francês e nosso contemporâneo. Sua relação com Freud é bastante polêmica, já que um de seus livros mais conhecidos chama-se Crepúsculo de um Ídolo, fazendo uma brincadeira com o livro de Nietzsche. Qual ídolo? Freud, obviamente. Assim como Deleuze, um crítico ferrenho da psicanálise, mas o que chama atenção é sua utilização dos conceitos de pulsão de morte e vida.
Onfray segue o programa nietzschiano de recusa ao platonismo. A interpretação do desejo como falta, como carência gera um desprezo, pois jamais o mundo real pode resistir ao ideal (abordei um pouco este tema no primeiro texto da revista da Razão Inadequada, quando falava de ditadura da beleza). A ficção deste mito do desejo enquanto falta, segundo Onfray, nasceu em Platão e foi adotado pelo ocidente na sua forma judaico-cristianista, o que resultaa em dois mil anos de recusa ao corpo e ao prazer. Sua filosofia hedonista, expressa em suma no livro Potência de Existir, trabalha com o desejo como excesso, o corpo como um caldeirão que ameaça transbordar, o mundo imanente, atômico, material. Um programa filosófico para um pós-cristianismo necessário. Está aí um filósofo que vale a pena considerar.
Seria o desejo um substantivo plural? Seria o desejar um verbo intransitivo, isto é, que não necessita de complemento? Existiria, por acaso, uma forma adequada de desejar? E um desejo inadequado? É impossível, para nós, não falar do desejo como algo definitivamente plural. O desejo é múltiplo, o desejo se conjuga sempre como fluxos que se atravessam. Todo aquele que tenta prender o desejo para dissecá-lo e encontrar sua verdade não passa de um ditador. Ou de um tolo que toma gato por lebre. O desejo foge, desvia, se disfarça, cria linhas de fuga ao infinito.
Contrariando Mário de Andrade, terminamos dizendo que amar é na verdade um verbo transitivo, pois tem sempre uma causa externa. Mas concluímos declarando que desejar é definitivamente um verbo intransitivo e pode ser usado a qualquer momento e em qualquer situação: eu desejo, tu desejas, nós desejamos, e nada além disso.
Estava pesquisando a origem da palavra desejo e achei justo o contrário, que vem de “de sideris”, das estrelas, de esperar algo das estrelas. Nunca tinha lido esta sua interpretação e agora estou dividido. Mesmo na origem da palavra estão esses dois jeitos de ver: será desejo uma falta, uma espera, ou será ele uma força e uma presença por si mesmo?
No mais, gostei do texto. Ótimo site.
Aos Rafaeis, muito obrigado!
nada a ver nem explica direito essa porra
Quando abri mão de buscar a razão por trás do desejo, desejei pura e simplesmente por desejar e ainda achei esse excelente texto que explica, mas não dá razão, com razão!