Pensar no ressentimento como afeto (bio)político implica pensar quais são os afetos que marcam nossa sociedade. De todos eles, talvez o ressentimento seja hoje um dos principais afetos em circulação, quase um sintoma social. Entranhado em nossas relações, ele é produzido e alimentado em nosso cotidiano.
Levando em conta sua relevância atual, a psicologia do homem do ressentimento é de fundamental importância, sintoma de um circuito dos afetos, e possui consequências sérias tanto para clínica quanto para a política. Nietzsche foi o primeiro autor a se debruçar sobre tal questão, ele nos guiará por estes caminhos sinuosos sem deixar que caiamos no abismo.
É preciso cuidado! Tal afeto (bio)político não ousa dizer seu nome! Ele anda pelas sombras, se disfarça, finge ser o que não é! O ressentimento é claro sinal de fraqueza e doença, sintoma de que algo não está certo. Existem afetos mascarados, dissimulados, difíceis de identificar. O ressentimento se fantasia de justiça, de virtude, de razão, de luta contra a corrupção, e assim parasita afetos saudáveis. O ressentido não consegue se fortalecer na luta, pelo contrário, ele é a encarnação da incapacidade de agir, sente-se moralmente ultrajado, por isso precisa inverter valores.
A política é um campo de lutas, de conquistas e derrotas, onde o vencedor nem sempre é o mais forte. Ainda assim, o risco de sermos governados por políticos ressentidos é tão grande quanto o risco do perdedor se tornar um. O derrotado, quando se deixa identificar como vítima, perde a força inicial que tinha para lutar. É fácil ver como a esperança facilmente se torna ressentimento. A lógica do ressentimento é: se um é vencedor, logo o outro só pode ser vítima, o primeiro passa a ocupar o lugar de culpado pela situação do outro. Ou seja, apaga-se a cumplicidade nas relações e procura-se por responsáveis, ou melhor, culpados.
Como os cidadãos acreditam serem pares, a desigualdade é sentida como injustiça. Uma vive e depende da outra: desigualdade social convive lado a lado com o ideal de igualdade. Para sobreviver, o ressentido submete-se voluntariamente ao Estado, suposto mantenedor da paz e da justiça, no intuito de ganhar algum ganho secundário (como se ele pudesse, ou quisesse, eliminar as desigualdades).
O ressentimento na política produz-se na interface entre a lei democrática – antecipação simbólica de igualdade de direitos – e as práticas de dominação paternalistas, que predispõem a sociedade a esperar passivamente que essa igualdade lhes seja legada como prova de amor e de bondade dos agentes no poder”
– Maria Rita Kehl, Ressentimento, p. 23
No ressentimento o homem liga-se a toda sorte de superstição. Um dos ídolos mais perigosos de nosso tempo são os Direitos Humanos. Sim, o ressentimento cresce mais forte onde existe um pressuposto simbólico de igualdade. A luz do iluminismo alimenta a árvore dos direitos humanos, fazendo-o parecer um direito a priori e não, é importante notar, uma conquista de inúmeras lutas sociais. Essa questão é importante e se reflete no ressentimento atual. Os oprimidos acreditam que a igualdade deveria vir de fora, e não conquistada por suas próprias mãos.
Já com os opressores é pior ainda, eles realmente acham que merecem estar sempre por cima, sentem-se superiores e se ressentem (tolos que são) quando perdem seu posto de classe dominante e privilégios. Nestes casos, trazem sempre um argumento meritocrático, divino ou econômico. Tanto faz, o poder não vem mais de Deus, nem de seu sangue supostamente azul. Mas é fácil governar escravos, corpos dóceis.
A ilusão dos direitos humanos (sim, ilusão) deveria servir à expansão da vida, mas ela hoje gera efeitos que diminuem a potência e explode em afetos tristes. Muitas vezes serve apenas para princípios que escravizam e enfraquecem. Direitos Humanos não são valores universais, são efeitos da força que se efetua e se mantém. Os que lutam por direitos devem aproveitar suas conquistas para tornarem-se ainda mais potentes, e não para acomodarem-se. Além disso, não se deve pedir direitos aos fortes, nem exigir que seu opressor se torne fraco, o direito vale tanto quanto a potência de afirmar-se, ele é efeito da luta, é conquista.
Por isso a passividade política e o não engajamento da população são grandes fontes de ressentimento. Os ressentidos cobram o que seus governantes não fazem (nem querem fazer). Mas política não é pedir cuidado. Esta condição dá ensejo para toda sorte de afetos tristes: ódio aos governantes, desamparo que pede por alento, esperança de salvação na figura de autoridades e líderes.
O ressentido é uma figura triste, inundada de esperança por dias melhores, expectativa de um futuro melhor, uma promoção aqui, umas férias ali. Nessa dinâmica impotente, o ressentimento pouco a pouco acaba por investir numa simples busca por reconhecimento: que lhe deem um lugar, que ele também possa exercer um mínimo de opressão sobre alguém, nem que seja um subordinado qualquer, um atendente de fast-food, sua mulher, seu filho, seu cachorro, o time adversário, qualquer um. Seu sonho é que alguma autoridade lhe conceda notoriedade. O ressentido busca um mestre e um escravo, esse é seu modo de funcionamento.
Uma das condições centrais do ressentimento é que o sujeito estabeleça uma relação de dependência infantil com o outro, supostamente poderoso, a quem caberia protegê-lo, premiar seus esforços, reconhecer seu valor. O ressentimento também expressa a recusa do sujeito em sair da dependência: ele prefere ser ‘protegido’ – ainda que prejudicado – a ser livre, mas desamparado”
– Maria Rita Kehl, Ressentimento, p. 17
Um movimento social que cede ao ressentimento entoa um lamento monótono contra as injustiças do mundo, não uma ação política efetiva. Injustiças contra as quais as vítimas inocentes não teriam forças para lutar. Nessa oposição, fica a impressão de que existe um suposto lugar de direito, metafísico, garantido por decreto divino, universal. O ressentido esquece que direito é potência, esquece que ele está implicado na relação, esquece que ele é parte ativa do mundo.
Como resultado, lutas políticas autênticas se corroem em perigosas políticas de vitimização: ninguém quer ser vítima, mas o estatuto de vítima traz certos benefícios irresistíveis ao ressentido e prova seu ponto, “a vida é injusta, alguém poderoso deve nos proteger, guardar e salvar do mundo“. Todo movimento social corre esse risco. A inversão dos valores acontece quando o mais fraco tem sempre razão. Passa a ser mais vantajoso ser vítima e ter pequenos prazeres, como fazer o opressor sentir-se culpado, do que emancipar-se: a luta morre na praia. O poder salva, mas enfraquece, enquanto a luta com seus pares fortaleceria, mas não teria reconhecimento e amparo do poder.
A vida é dura, a vida é luta constante, a vida é esforço contínuo. Não há vida que não seja um desejo de potência, um plus de existência. Enquanto a vida potente investe nas linhas, nas aberturas, nas alianças; a vida derrotada investe nos limites, fecha-se para o fora. Mas poupar os fracos só serve para torná-los ainda mais debilitados! É preciso urgentemente exortar os fracos a que se liguem ao que podem, que se fortaleçam! Que façam alianças! Enquanto o oprimido se esconder e tentar justificar sua fraqueza, ele se contaminará de ressentimento e inverterá os valores.
O personagem ressentido atrai simpatias, pois parece revestido de uma superioridade moral inquestionável […] A ele se atribui uma sensibilidade especial, que o torna incapaz de se adequar à dureza da vida em sociedade […] Alguém sempre há de sentir-se culpado pelo silêncio acusador do personagem ressentido”
– Maria Rita Kehl, Ressentimento, p. 38
Para combater o ressentimento, é necessário sair da passividade do homem cordial que prefere gozar de pequenos benefícios secundários (Chauí os apelidou de “tiranetes”), para buscar uma relação que fortaleça os laços horizontais, entre cidadãos e cidadãs, irmãos e irmãs, os mais variados movimentos sociais, ou qualquer outra palavra que implique o fim de uma dominação infantilizante e apassivadora.
Não há nada mais contrário à política que um homem ou movimento social ressentido. Este agente político é anti-político por excelência, abre mão de sua condição transformadora para acusar, responsabilizar e inviabilizar. Um ressentido não pensa, espera que a televisão e o conforto do sofá o informem; não age, espera que direitos e benesses caiam do céu; um ressentido não muda, apenas destila seu veneno acusando o mundo. O perigo dos fortes é ouvir as ladainhas ressentidas. A política não pode ficar nisso.
Se o ressentimento é o avesso da política, só pode ser curado pela retomada do sentido radical da ação política. O ato político implica sempre um risco de desestabilizar a ordem. Ao contrário da resignação ressentida, da revolta submissa do ressentimento, ele nasce de uma aposta na possibilidade de se modificar as condições estruturais presentes em sua origem“
– Maria Rita Kehl, Ressentimento, p. 340
😀 Parabens, ótima
análise!
Eu já fui um ressentido!!!Mal orientado na infãncia e entregue ao mundo à propria sorte.Todavia numa luta diaria em busca de uma nova vida, desafiei todos os valores negativos e resgatei a autentica vida de vanguarda onde você é o dono das metas que você escolhe como prioridade pro seu aperfeiçoamento como ser humano sem coleira.