Texto escrito em conjunto no Grupo de Estudos,
O mito é o nada que é tudo […]
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou”
– Fernando Pessoa, Mensagem
Mito
Um mito é uma narrativa de origem, uma conclusão sem premissas, uma maneira imaginativa de explicar a nossa origem e existência. Pois bem, qual é o nosso mito fundador? Brasil: ‘um país tropical, abençoado por deus e bonito por natureza‘, como diz a canção. Mais do que isso, dada a sua grande potência adormecida, nossa terra estaria destinada a um grande futuro.
Sim, essa ilusão é plenamente vivida como realidade, ela se enraíza em nossa cultura e impera como imagem mutilada da história e dos costumes do nosso povo. Todos nós estamos mergulhados na ideia de um país pacífico, harmonioso, cujos conflitos são exceção. Imbuídos nesse caldo mítico, acreditamos piamente na boa convivência nata entre os filhos da nação soberana. Pois bem, é hora de acordar!
Os fenícios as designaram com o nome de Braaz, e os monges irlandeses as chamaram de Hy Brazil. Entre 1325 e 1482, os mapas incluem a oeste da Irlanda e ao sul dos Açordes a Insulla de Brasil ou Isola de Brazil, essa terra afortunada e bem-aventurada que a Carta de Pero Vaz de Caminha descreveu ao comunicar a El-Rei o achamento do Brasil”
– Marilena Chaui, Manifestações Ideológicas do Autoritarismo Brasileiro, p. 195
O mito substitui a realidade pela crença da realidade narrada por ele. Tornando invisível a realidade existente. Assegura uma identidade originária sobre as mudanças históricas. Em suma, se a explicação mitológica paralisa o tempo, nosso mito fundador toma o lugar da formação histórica, escreve uma estória por cima dela.
O mito cristaliza-se em crenças que são interiorizadas de tal maneira que não são percebidas como crenças e sim tidas não só como uma explicação da realidade, mas como a própria realidade. Ou seja, o mito substitui a realidade pela crença e torna invisível a realidade existente”
– Marilena Chaui, Sobre a Violência, p. 38
O grande paradoxo do mito é que ele não precisa ser verdade para ser real. Pela estrutura mítica, os fatos não importam, o que de fato lança seus efeitos é a maneira como eles são imaginados e contados. O descobrimento, o catecismo, a independência, a abolição, o golpe de 64 – que hoje tenta resgatar a suas origens míticas de revolução – será que conhecemos a versão dos fatos ou a dos mitos? Temos a suspeita de que os mitos são movidos para mascarar uma realidade permeada de tensões, conflitos e contradições. Eles fornecem soluções imaginárias para problemas reais. Saídas simples para problemas complexos, o que acaba se mostrando uma prática ineficaz.
Bandeira
O melhor exemplo que podemos dar é a nossa bandeira. Se pararmos para refletir sobre o assunto, veremos que ela simplesmente não tem história! Verde: florestas; amarelo, ouro; azul, o céu; branco, a paz. Ora, não somos mais crianças, e sabemos que não é bem assim!
Comecemos pelo verde, nossas florestas desmatadas, nossos milhares de hectares de pau-brasil, cana de açúcar, café, soja, década após décadas desmatados e destinados à exportação! O verde historicamente pertence à casa de Bragança, de Dom Pedro I.
O amarelo: nosso ouro, nossas riquezas roubadas, pilhadas, saqueadas. Nossa dívida infinita, nossa república das bananas. O amarelo em nossa bandeira provém da casa de Habsburgo, da imperatriz Maria Leopoldina. Surpreendente? Usamos as cores de nossos colonizadores.
E o azul? Nosso céu ao sul do equador representa nossa terra sem pecados? Talvez a paz cristã que reine por aqui graças a nossa religião profundamente católica não praticante, com jesuítas forçando a religião para os índios e justificando a escravidão dos negros.
Não contamos a história de nosso país. O que acontece em nossa bandeira é um sintoma do que acontece em todos os campos da nossa cultura nacional. Temos passado, mas não sabemos dizê-lo, houve formação, mas não sabemos como. É como se estivéssemos o tempo todo aqui, perenizados, deitados em berço esplêndido.
A bandeira brasileira é quadricolor e não exprime o político nem narra a história do país. É um símbolo da Natureza. É o Brasil-jardim, o Brasil-paraíso”
– Chaui, Manifestações Ideológicas do Autoritarismo Brasileiro, p.198
Um país sem passado é um país sem futuro. Isso porque um país que não conhece e não pode encarar seu passado está fadado a não ter futuro. Vive apostando na esperança de que os ilustres ‘valores’ expressos na nossa bandeira falem mais alto no coração dos brasileiros. E permanece acreditando que o sono do gigante já dura tempo demais.
Pacificação Forçada e Formação Violenta
Aprendemos que nossa história foi feita sem sangue: Os bandeirantes eram grandes exploradores, que foram inclusive ajudados pelos índios, o processo colonial das bandeiras é inserção do pensamento mítico na base da exploração. Canudos? Apenas um bando de baderneiros. Inconfidência mineira? Tiradentes era um terrorista! Revolta da farroupilha, chibata, contestado? Ora, nada mais que extremistas, baderneiros, arruaceiros… é o que eles dizem – e nós não podemos mais aceitar.
Nosso desejo de totalização paranoica busca a paz a qualquer preço: a ideia de salvação nacional, dos bons costumes da família e do cidadão de bem justifica toda forma de violência e autoritarismo! Mas trata-se, na verdade, de uma sociedade frágil, que não suporta a diferença. Qual a divergência destas ideias para as religiosas?
O nacionalismo converte uma prática histórica numa substância imortal. Num Ídolo, muitas vezes com apetite sangrento”
– Marilena Chaui, Conformismo e Resistência, p. 98
A prática política do nosso Estado não consegue evitar a pacificação forçada de vez em quando, um tapinha pra botar as coisas no lugar. A ideia de que nosso país foi corrompido sempre acaba por justificar uma purificação violenta. Não admira nossas mudanças políticas todas serem feitas à moda de um Golpe de Estado. Uma vez aqui e outra ali e agora mais uma e mais incontáveis vezes necessárias recolocar as coisas em ordem e progresso. Aqui, a exceção é regra.
Nunca nos detemos a perguntar: como é a sociedade brasileira para que tal política golpista seja uma constante?”
– Marilena Chaui, Sobre a Violência, p. 173
Os golpes de Estado não são por acaso, são o modo de funcionamento autoritário da sociedade brasileira. Em 7 de setembro de 1822, sem nenhum envolvimento popular, Dom Pedro, um príncipe português, declarou a Independência do Brasil; a República foi proclamada com um golpe político militar por Marechal Deodoro da Fonseca, fundando a República da Espada; em 1930, outro golpe militar coloca Getúlio Vargas no poder; em 1 de abril de 1964, mais um golpe com apoio civil; e para concluir, 2016, camisetas verde e amarelas nas ruas com um pato gigante, pedindo por um golpe parlamentar.
Vivemos em sociedades que se recusam a refletir sobre suas divisões originárias e que dissimulam as divisões produzindo identidades e identificações imaginárias”
– Marilena Chaui, Conformismo e Resistência, p. 101
A Fundação, imposta através de uma imagem, substitui a ideia de Formação, que realiza o trabalho crítico de compreensão das matrizes de determinada composição social. Se um mito funda nossa nação e pauta os nossos valores, tornando-se o modelo do qual nos afastamos e explicando pelo avesso a razão de ser da nossa sociedade, não surpreende sermos absurdamente saudosistas: “Antes é que era bom”. Afinal, não conhecemos nosso passado. Nosso romantismo patriota apaga de nossa realidade todas as contradições, crueldades e absurdos.
Desejamos o passado porque não o conhecemos. Se soubéssemos o toque de caixa da prática colonialista, isto é, a exploração dos negros e índios e a espoliação dos recursos naturais; se conhecêssemos as divisões originárias e ideológicas entre nordeste e sudeste, isto é, os lapsos capitalistas e os flertes fascistas; se estudássemos a história, já não poderíamos desejar nenhum tipo de retorno. O mínimo de juízo nos empurra a conhecer o fato para além do mito e, quem sabe, ter a chance de enfrentar o passado – que ainda está! – em nome de um outro futuro.
Como disse Pessoa: “O mito é o nada que é tudo”. E é realmente possível acreditar nisso. Mas nós não gostamos de mitologia, queremos o real, doa a quem doer. De onde vem o sangue vermelho que mancha nossa bandeira verde e amarela? O que há por trás do espetáculo da pátria amada, idolatrada? Nós não queremos tampouco ser criados, nem por um mito ou o que quer que seja! Somos nós mesmos os artesãos de nossas existências e de nossa história! E tomar para si a responsabilidade de fazer dos atos de vida uma escrita dos próximos capítulos, mais do que aproximar o futuro do presente, exige a afirmação de nosso passado descortinado de um mito.
Como sempre um excelente texto!
Gostaria muito de participar do grupo de estudos, estou acertando a vida financeira e certamente participarei.
Um abraço e continuem com esse ótimo trabalho de vocês.
Muito obrigado!
Continuaremos, venha participar!
Abraços!
Ótimo texto. Muitíssimo atual e necessário
Olá amigos. Excelente texto, embora eu tenha restrições pessoais à filósofa Marilena Chauí, ela também obscurecida em sua visão por um mito partidário salvacionista e acusador de tudo o que lhe é contrário. Mas , enfim, é apenas a minha visão. A que horas o grupo se reúne nas quartas feiras? Tentarei participar sempre que possível. Um grande abraço.
Obrigado, Carlos.
A Marilena é muito mais do que o preconceito que opinião pública fez dela.
Convidamos sempre a ler algo dela e perceber a virtude que essa mulher tem no pensamento e na escrita. É, sem dúvida nenhuma, uma das maiores pensadoras do país.
Um abraço!
Me é inenarrável o quanto esse site consegue me dar um prazer textual e visual-artístico. Razão Inadequada é um dos meus motivos de existir recentemente. Ah!
Valeu, Lucca!
Obrigado pelo carinho!
Abraço!
Magnífico!!! O povo brasileiro está apegado à Messias fantasiosos!!!!
Uma dúvida: Antigamente o site costumava ter um acervo de livros em pdf que agora não encontro mais. Este acervo deixou de existir?
Os textos são incríveis, adorei conhecer o site. Entretanto, poderiam ser datados – é sempre interessante poder avaliar em que contexto foram produzidos.
Oi Ana Carolina,
Você encontra as datas dos textos no endereço do site. Não é muito intuitivo, mas funciona.
Obrigado 🙂
Texto de força impressionante! O razão inadequada me inspira desde a graduação em História, passando pelo mestrado e o doutorado.