O essencial é bem isso: que o homem ocidental há três séculos tenha permanecido atado a essa tarefa que consiste em dizer tudo sobre o seu sexo”
– Foucault, História da Sexualidade I
“Diga-me com quem andas e eu te direi quem és”. Pois bem, temos andado muito na companhia de Foucault, mas isso implica o contrário, “ande com Foucault e não permaneça o mesmo”. Ler este pensador é abrir-se para o diferente, o novo, o impensado. Ao começar seu livro nos deparamos com a inversão das crenças que carregava. E talvez seja esta a principal qualidade de um filósofo, virar de ponta-cabeça, brincar com os conceitos até que eles se dilatem e deem conta das intensidades que permeiam a realidade.
A História da Sexualidade começa com uma hipótese contrária a do senso comum. Estamos acostumados a ouvir que o sexo é tabu, que somos reprimidos. O silêncio permeia a questão sexual. Mas Foucault nos diz o exato oposto: o sexo é cada vez mais incitado a mostrar-se, revelar-se, confessar-se.
O séc. XIX e XX explicitou a questão da repressão sexual. Diz-se que silêncio prevalece. Há o mistério no ar, algo inaudito e que não pode ser revelado. Sexo = segredo. Não podemos ir ao fundo da questão, enfrentamos um estancamento, falta-nos palavras. O capitalismo, a burguesia, a industrialização (chame como quiser) apropriou-se do corpo sexual, sublimou-o e o transformou em uma máquina de trabalho. Sexo? Apenas para procriação, manutenção da espécie, nunca para diversão. O “burguês” precisa desta energia armazenada para o tempo de trabalho, para a produção de mercadorias.
Deste discurso surgem as teorias mais idealistas. O “sexo verdadeiro” se esconde por baixo de uma carapaça de pó, fuligem, vergonha. No interior do macacão sujo de óleo e graxa está o homem sexualmente livre que, através de sua liberdade sexual, levará a felicidade a todos os seres do mundo. Vide Reich e as teorias freud-marxistas, Marcuse como grande representante. Amanhã gozaremos! O porvir… o porvir…
Foucault não ignora estes efeitos, mas trata-se exatamente disso: efeitos. O resultado de um processo histórico inverso e muito mais elaborado. A partir do séc. XVIII e XIX o sexo não encontrou paz, pelo contrário, foi convocado para estar debaixo dos holofotes, receber toda a atenção. A própria prescrição na contra-reforma foi no sentido de todos confessarem-se ao menos uma vez ao ano, e isso implica contar, nos mínimos detalhes, sua vida sexual: desejos, atos, pensamentos, medos.
Máquinas de ver, mostrar, ouvir e fazer falar se espalharam pelo ocidente. O discurso e a interpretação chegaram no nível sexual do sujeito, contribuindo ao mesmo tempo para sua formação e identificação. Passou-se inicialmente a observar, como se algo de muito importante se escondesse nesta questão. O olhos voltaram-se para as condutas, as manias, as idiossincrasias. Montou-se dispositivos de confissão, técnicas para extrair as verdades sexuais das pessoas. Estas estratégias, de tradição ascética e monástica, já eram usadas pela igreja.
Com a modernidade, o sexo não se confinou no quarto dos pais. Apesar desta ilusão, ele se espalha, se derrama nas mais variadas formas. As linhas de saber-poder se multiplicam pelas superfícies. Na família, no discurso médico, , nas oficinas, nos jornais, nas escolas, nos quartéis, na autoridade dos professores, na arquitetônica dos prédios. O sexo parece se esconder, mas apenas porque é procurado em todos os cantos, em todas as suas manifestações. Ele extrapola os limites das quatro paredes e transborda para todos os campos sociais. Torna-se questão de saúde, política, administração.
Através de uma prolixidade sem fim, o homem é levado a dizer quem ele é: qual o teu sexo? Por meio de questionários, formulários, observações, prescrições, inquéritos, anotações, o ser humano sobe à superfície da palavra e diz: “meu ser sexual é este!”. A confissão é a linha de separação, é o que entregamos, extirpamos, ou melhor, violentamos em nós. A hipótese repressiva não tem o mesmo peso que a hipótese da confissão. Isso fica claro porque não há medidas para jogar o sexo em um porão escuro e esquecê-lo por lá, tudo funciona mais como um jogo de esconde-esconde, um jogo de luzes, uma sala de interrogatório.
O que é próprio das sociedades modernas não é o de terem condenado o sexo, a permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o como o segredo”
– Foucault, História da Sexualidade I
Da infância até o último suspiro, a condição de normalidade, a evolução esperada é medida e avaliada. O médico, o pedagogo, o analista, todos têm a autoridade da sentença “isso é normal/ isso não é normal”. A lista de perversões se multiplica: loucura moral, neurose genital, aberração no sentido genésico, degenerecência, desequilíbrio psíquico. Tantos nomes para falar do que não pode ser dito? Não me parece. A lista segue, o discurso se multiplica: exibicionista, fetichista, zoófilos, automonosexualistas, mixoscopófilos, ginecomastos, presbiófilos, invertidos sexoestéticos, mulheres disperêunicas. O sexo não se afasta, não se esconde – apesar da sensação -, na verdade ele está muito mais próximo, na superfície. O máximo de contato, para anotar tudo, comparar, medir.
A ciência sexual se utiliza de seus métodos para fazer falar: encontramos códigos para nos expressar, significantes, significados; investigamos a fundo pois sabemos o quanto ele é difuso e permeia toda a realidade; olhamos dos mais variados ângulos e esperamos o momento certo, pois sabemos de sua capacidade de latência e camuflagem; criamos máquinas interpretativas para melhor tirar seu sentido muitas vezes resistente, misturado. Dentro deste contexto, o sexo não se inscreve mais na questão religiosa da salvação, mas sim nos critério médicos de normal e patológico.
A obrigação da confissão nos é, agora, imposta a partir de tantos pontos diferentes, já está tão profundamente incorporada a nós que não a percebemos mais como efeito de um poder que nos coage; parece-nos, ao contrário, que a verdade, na região mais secreta de nós próprios, não ‘demanda’ nada mais que revelar-se”
– Foucault, História da Sexualidade I.
Mas neste caso, o caminho se fez andando sobre ele. O discurso sexual ao mesmo tempo que descobria, produzia. Suas tabelas arbitrárias, medidas confusas, nomes exóticos foram aos poucos criando condições para eclosão de mais vários tipo de “anomalias”. A condição de anormalidade é criada e mantida a partir do momento em que você traça linhas de medidas. Dominar o sexo, pacificá-lo dando nomes, enquadrando é ao mesmo tempo criar e fabricar comportamentos sexuais. A palavra tem poder, a palavra cria.
É preciso então desconsiderar a sexualidade como uma verdade escondida, isto porque ela se enquadra dentro de um contexto social-histórico e está sob influência dos mecanismos de saber-poder. Estes dispositivos “descobrem” o sexo ao mesmo tempo em que o produzem. A sexualidade é algo móvel, e talvez muito mais frágil do que pensamos, está à merce dos mecanismos de formação do sujeito moderno. É neste contexto histórico, por exemplo,que aparece o corpo sexual da criança, cujo grande herdeiros será Freud. O Complexo de Édipo é tido como algo universal, mas se encaixa perfeitamente nesta hipótese de saber-poder moderno que constitui a subjetividade dos indivíduos.
Por isso hoje nós mesmos nos interrogamos: qual o nosso sexo? Ele supostamente esconde nossa verdade, aloja nossa essência. “conheça a ti mesmo” tornou-se “conheça sua identidade sexual”. A ciência sexual constituiu-se como ciência do sujeito, talvez trazendo a psicanálise como grande representante. Em vez do poder reprimir as manifestações de sexualidade natural, ele as produziu sob determinadas condições.
Ainda não temos a resposta e talvez nunca a tenhamos, mas o que levou o sexo a ser nossa verdade última? Nossa sociedade insiste em fazer desta questão o último elemento para encontrarmos nossa verdadeira identidade, uma mistura de ditadura da Identidade e da Verdade. Há um sexo verdadeiro? Ou seria ele apenas mais uma sedutora mentira?
Arthur em 31/12/2013 às 11:39 am Rafael. Ótimo texto bicho! Essa questao da sexualidade é um tema que me toca bastante e se formos pensar o nosso intimo mais profundo e verdadeiro é a propria sexualidade. veja em Reich, com seu freudo marxismo ou seja la como for, mas foi um sujeito que sempre se procupou com esse tema. O quanto precisamos cuidar de nossas criancas e de certa forma por previnir uma forma de estar no mundo distante do nosso eu ( influenciados pela vivencia educacional no silencio, no “nao dito”) aconselho a ler algumas coisas sobre esse autor… Ler mais >
O site é muito bacana!