Quando Zaratustra andava pela ponte, os aleijados e os mendigos vieram falar com ele. Disseram-lhe: “Olha, Zaratustra! Também o povo aprende contigo e ganha fé na tua doutrina: mas, para que ele creia em ti completamente, uma coisa ainda é necessária – tens de convencer também a nós, aleijados!” (p. 131). Tal como Jesus os curou…(Mt 11) os aleijados pedem a Zaratustra que remova deles todas as dores, maldições, imperfeições…
Mas Zaratustra não se deixa levar pela compaixão, não se deixa enganar pelo aleijado. O ressentido carrega sua dor como sua essência. Curar a visão de um cego que não quer ver não adiantaria nada: a dor é a única coisa que o ressentido possui, a dor e raiva. Para Zaratustra, tirar-lhes a corcunda seria tirar-lhes o espírito.
Zaratustra aprendeu isso do povo: o fraco quer que a mudança venha de fora porque não consegue operá-la de dentro. Estropiados pelo avesso, pecam pelo excesso de dor e tristeza. A cura que os aleijados querem não é o que Zaratustra tem a oferecer. Eles acham que a cura vem de fora e não do modo de vida.
Então vemos o homem em toda sua impotência. Ele é triste, é vingativo, é rancoroso, tem necessidade de fazer alguém sofrer, inflingir culpa para retribuir o sofrimento de sua própria impotência, tudo para tentar aliviar a sua própria condição. Seu presente consiste em vingar-se por não poder mudar seu passado.
O homem moderno se constitui por sua impotência, ele não consegue redimir o passado, sua vingança é a aversão da vontade ao tempo, é a maneira de se vingar da experiência da sua própria impotência. “‘Foi’: assim se chama o ranger de dentes e a solitária aflição da vontade” (p. 133). Ódio, ódio visceral. “A vontade não pode querer para trás; não poder quebrantar o tempo e o apetite do tempo – eis a solitária aflição da vontade” (p. 133). Mas quanto mais o homem do ressentimento odeia, tanto mais se torna cativo! Pode tanto menos, quanto mais odeia! E quanto maior a impotência, maior o ódio, e maior o acorrentamento!
A própria vontade é prisioneira! E a impotência da vontade é a mais radical de todas as impotências! Não tem a ver com categorias sociais, políticas ou econômicas, mas se revela ontologicamente no tempo. Sim, a vontade é prisioneira do tempo. Se ela encontra-se cativa na sua impotência, então obviamente não pode redimir nada. A vontade se torna um espectador, vendo todo futuro transformar-se em passado. Todo “foi” pesa sobre ela, tornando-a cada vez mais fraca e impotente. Mas como viver sem culpar-se? Como viver sem arrepender-se?
“Redimir o que passou e transmutar todo ‘Foi’ em ‘Assim eu quis!’ – apenas isto seria para mim a redenção!”
– Nietzsche, Assim falou Zaratustra, p. 133
O que é então a libertação da vingança? Libertar-se é desprender-se daquilo que é repulsivo, a libertação não é a liberação da vontade, porque a vontade é o próprio ser! Não somos schopenhauerianos, não queremos o fim da vontade. “Eu vos levei para bem longe dessas cantigas fabulosas, quando vos ensinei que ‘a vontade é criadora’” (p. 134). Sim, libertação da vigança é a libertação daquilo que é adverso à vontade, daquilo que a vontade se mantém cativa, não através da negação, mas da afirmação.
“Todo ‘Foi’ é um pedaço, um enigma, um apavorante acaso – até que a vontade criadora fala: ‘Mas assim eu quis’/ – Até que a vontade criadora fala: ‘Mas assim eu quero! Assim quererei!'”
– Nietzsche, Assim falou Zaratustra, p. 134
Redimir o passado, desatar os nós do ressentimento, dissolver a má-consciência. A vontade de potência é libertadora, é portadora da alegria! Ela, e somente ela, é a portadora da redenção. “Como suportaria eu ser homem, se o homem não fosse também poeta, decifrador de enigmas e redentor do acaso?” (p. 133). Sim, Zaratustra é o grande anunciador do Super-homem porque apenas ele é capaz de redimir aquilo que passou, coisa que os aleijados não podem.
Vontade redentora: aceitação integral, absolutamente incondicional, do tempo, do passado, da dor, da morte. Todos os sistemas religiosos até hoje só atuaram na denegação do tempo e da morte; fingindo que ela não existia, apenas fugiram do real. A vontade tem de querer algo mais elevado que toda reconciliação, a vontade precisa tornar-se vontade de potência. Mais que inércia, expansão!
A verdadeira redenção é a libertação do ódio! Amor-fati: acolhimento amoroso do tempo e da passagem do tempo. Nunca através da resignação, nunca dobrando os joelhos, mas através da afirmação incondicional da vontade de potência, em si e no mundo.
Nossa muuuuuuuuito bom esse texto. Super esclarecedor. Na minha completa ignorância, achava que amor fati e vontade de potência seriam conceitos contraditórios. Que amor fati seria se manter na zona de conforto, dizendo apenas sim para o destino, ou seja ia levando a vida. Já vontade de potência seria superação, saída da zona de conforto, luta.
Obrigado pelo texto, por esse belíssimo blog!
Obrigado! Que bom que pudemos ajudar!
Aplausos para o texto. O final me lembrou bastante o conto ‘O Sonho de um Homem Ridículo’ de Dostoiévski.
Muito bom, vejo que o autor influência bastante na tua escrita. É acolhedor achar alguém que veja relevância nessas questões de Nietzsche, o homem e suas problemáticas, seja do pensamento consciente ou do inconsciente.
Lendo o livro, percebo que Nietzsche escreve muitas coisas de sua vida cotidiana ou mesmo do passado ( próximo, ou mesmo da mocidade) . Queria saber se o você também encontra estes fragmentos, pois não é tão claro .