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A psicologia do sacerdote ascético é uma das grandes descobertas de Nietzsche. Ele concentra em si todo o ressentimento, toda a má consciência, todo o desejo de negar, de difamar, denegrir, desprestigiar a vida. Seu desejo de ser outro provém de seu descontentamento com o seu presente. Mas, ainda assim, seu desejo conserva, a vida se mantém, mesmo que em baixas intensidades. O sacerdote ascético é o médico dos fracos e oprimidos.

Mas é realmente um médico, este sacerdote ascético? – Já notamos que dificilmente podemos chamá-lo de médico, por mais que lhe agrade sentir-se ‘salvador’, ser venerado como ‘salvador’. Apenas o sofrimento mesmo, o desprazer do sofredor, é por ele combatido, não a sua causa, não a doença propriamente – esta deve ser nossa objeção radical à medicação sacerdotal”

– Nietzsche, Genealogia da Moral, terceira dissertação, § 17

Voltemos à genealogia: quem deseja a vida fraca? Quem quer se preservar? Quem quer os remédios oferecidos pelo sacerdote ascético? Somente o escravo os aceita de bom grado. Ele diz: “Estou farto de mim! Estou cansado! Dá-me algo para suportar minha dor!“. Pois bem, o sacerdote, seu pastor, seu protetor, seu defensor, administra os narcóticos necessários, através dos quais o homem moderno se entorpece:

  1. Amortecimento Geral: “A dor é um erro“, diz o padre, “devemos cambatê-la“. E assim começa toda calúnia contra a dor, tudo mais é suprimido com o único intuito de acabar com a dor: o fraco não a suporta, ele abre mão de tudo em nome da letargia. Ao invés de dizer: “A dor é o tempero da vida, é o que a torna interessante!“, o padre faz de tudo para suas pobres ovelhinhas não sentirem dor, frio, desconforto. Seu combate é através da renúncia de si: santificação, hibernação, sono profundo, nirvana. Mas é impossível acabar com a dor! Nesta busca sem fim a própria ausência de dor se torna algo positivo e maior que a vida(pulsão de morte?)! O nada se torna tudo: Deus!
  2. Atividade Maquinal: desviar os olhos da dor através do trabalho, que grande cilada. Embuste sem igual, mas que gera resultados nas pobres almas sofredoras! “A mente vazia é oficina do diabo“, e fazemos de tudo para nos mantermos ocupados. Trabalhar, trabalhar e trabalhar: responder e-mails, fazer relatórios, baixar a alavanca, rodar a linha de montagem, produzir bens materiais. “O trabalho enobrece“, diz o padre; e “Deus ajuda quem cedo madruga”, completa o trabalhador. A “benção do trabalho” os impede de cair no desespero! O homem torna-se mais uma peça da máquina, esquece de si mesmo mergulhando na rotina, a consciência é inundada de afazeres e prazos de entrega;
  3. Pequenas Alegrias: O homem cansado do trabalho tem suas pequenas alegrias, seus prazeres reativos. Ele tem o sétimo dia garantido por Deus. O décimo terceiro garantido por seu chefe. O happy-hour onde pode obter facilmente uma bebida que o faça esquecer que logo será segunda-feira. Este remédio associa-se ao anterior e torna-se quase uma obrigação. Divirta-se!, Goze!, descanse, a roda da tortura dará uma volta completa e tudo recomeçará;
  4. Compaixão: Nietzsche desprezava a compaixão como um dos maiores inimigos da humanidade, contudo, o sacerdote ascético a recomenda. No amor ao próximo, na esmola dada, tem-se a sensação de sentir-se superior. O trabalho voluntário dignifica aos olhos alheios. Eles são aliados na dor, na tristeza, não na alegria (já dizia Deleuze, “sim, existem alegrias tristes”). “Ame o próximo como a ti mesmo” traduz-se como “eu sofro, tu sofres, todos sofrem: consolemo-nos”;
  5. Formação de Rebanho: o avanço da humanidade (ou deveríamos dizer do niilismo?), reflete-se no avanço da gregariedade. Assim quis o instinto de fraqueza e assim organizou a inteligência do sacerdote ascético. Nietzsche diz que este é “o avanço e vitória essencial na luta contra a depressão“. O escravo, em sua aversão de si mesmo, busca sempre organizar-se em grandes rebanhos (mas, ironicamente, o homem ainda sente-se sozinho). Os fortes buscam a diferença, mas o rebanho tem horror aos diferentes, sentem-se ameaçados. Os senhores afirmam a diferença, querem que ela retorne! (veja aqui) Mas os escravos querem que todos sejam iguais, juntos, apertados;
  6. Excesso de sentimento: o homem fraco precisa escoar seu ressentimento para algum lado. Pobre dele, repleto de ódio e vingança, não tem para onde extravasar sua Vontade de Potência, só pode fazê-lo através de um afeto que o esgota, o torna exausto. O excesso de sentimento anestesia, debilita, enfraquece, enfim, prostra o homem, recolocando-o em seu cativeiro. A desordem dos afetos é sua bola de ferro presa ao pé: cólera, pavor, volúpia, vingança, esperança, desespero. Ele procura alguém para descarregar suas paixões, pode ser no juiz de futebol, no motorista de ônibus que não parou,(quebrando bancos?,) no lutador de UFC ou, pior, contra si mesmo! Nesta explosão súbita de sentimento enclausurados ele descarrega tudo e fica vazio, letárgico, obediente.

O sacerdote ascético tomou para si toda a matilha de cães selvagens que habita no íntimo do homem e virou contra ele próprio. Mas não podemos culpá-lo, ele fez isso apenas para proteger seu rebanho: “nós vos salvamos de vós mesmos“, clamam os padres do alto do altar. A medicalização sacerdotal “melhorou” o homem? Claro, se melhorar significar: domesticar, enfraquecer, desencorajar, refinar, embrandecer, emascular, lesar.

Com esse tratamento a condição enferma, imunda, abjeta, do homem expandiu-se ainda mais. Carcomidos, arruinados, estragados, quebrados, os homens apenas abaixam a cabeça e agradecem a “salvação”. Mas vale lembrar: apenas o sofrimento é combatido, não a causa. Os remédios do sacerdote ascético apenas impedem que o homem se suicide, são tão somente meios de aliviar a dor e o desespero, uma filosofia do consolo, tal como Schopenhauer tanto louvava. É por falta de algo melhor que o homem se submete a tão baixas técnicas e narcóticos, apenas por não encontrar melhores caminhos. Mas aí, mesmo aí, o querer está preservado. Uma vida que degenera ainda é uma vida que afirma, mesmo que afirme o nada.

Tudo estava então descoberto, percebido, explorado, tudo estava à disposição do mago, tudo serviu desde então à vitória do seu ideal, do ideal ascético… ‘Meu reino não é deste mundo’ – ele continuava a dizer: possuía realmente o direito de dizê-lo ainda?…”

– Nietzsche, Genealogia da Moral, terceira dissertação, §20

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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