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Pingo em poça d’água.
Toque em nó de madeira.
Estalo de fogueira. Apito de chaleira.
Cotovia em assovio.
Mar e rochedo em desatino.
Folhas de mangueira.
Excessos de britadeira.
Riscos em quadro-negro.
Cordas beliscadas com carinho.
Ar em movimento. Sinos ao vento.

Afinem seus instrumentos, estamos começando. Baterista, as baquetas! Onde está minha palheta? Quantos minutos para entrarmos? A casa está cheia! É hoje! Vocês lembram os acordes da música? Eu começo improvisando… mas antes, o tema:

Quando falamos em timbre, estamos falando necessariamente sobre singularidade: essa coisa que nos faz todos diferentes. Outros filósofos adorariam chamá-la de essência, nós preferimos um nome mais sonoro. Timbre, essa distinção que um violonista leva consigo nos dedos ou uma flautista guarda dentro da boca.

Timbre é singular, é distintivo, é particular, mas não deixa de ser composição, ressonância e multiplicidade. Dedos e cordas, sopros e orifícios. Tão variados são os timbres quando são os corpos em relação. Que grande festa é uma orquestra! Extravagâncias dando-se umas às outras, rindo-se de suas diferenças.

Saber lidar com os timbres está entre as principais capacidades de um bom músico. Mas o que pode ser de um filósofo que não saiba lidar com a diferença? Sob pretensões universais, já foram cometidos muitos erros na filosofia. Isso acontece quando se usa demais a imaginação e pouco os ouvidos. Reconhecer a sutileza de uma determinada região do clarinete pode nos ensinar a pensar melhor. Basta abrir os ouvidos para aprender a apreciar a diversidade.

Por que admiramos o distintivo canto de um passarinho e censuramos as diferenças de outras pessoas? Chega de bobagem, deixe-os cantar! Ao invés de julgar a maneira com que alguém faz qualquer coisa, é preciso antes tomar a distância necessária para que a beleza salte à vista. Não se trata de um apelo ao exótico, mas de uma valorização do diverso. Toda diversidade carrega em si o misterioso valor que leva a vida adiante.

Qual o som que emitimos no caminho? Temos nosso timbre. Somos atravessados pelo mundo. Compomos a harmonia de um mundo sem maestro. O essencial está aí, nos deslocamos como um rio por entre os acordes da vida. Somos corpos que vibram, somos partículas que dançam. E temos nossas características particulares.

Um é aguado e insosso
Outro avoado e brilhante
Esse remói o caroço
Aquele mastiga diamante
Um tá no fim do caderno
Outro dá início à leitura
Um é a fúria do inferno
Outro eterna ternura

– Lenine

O timbre define quem somos sem nos fechar em uma identidade. Queremos uma singularidade, queremos um eixo, mas não queremos uma forma fechada. Atar todas as cordas, esticar, criar tensão. Muitas afinações são possíveis, o que não nos dispensa de encontrar uma boa.  É só questão de experimentação, o material nós já temos.

A intensidade com que vivemos a vida faz variar nosso timbre, mas nunca o altera completamente. Ao contrário, a variação faz conhecer também as nossas constâncias. Quando saímos de casa, nosso timbre sempre nos acompanha e serve para nos localizar bem. Ele nos dá segurança, desde que saibamos afirmá-lo justamente em sua singularidade.

Somos um conjunto de notas, umas mais agudas, outras mais graves (nos fazemos também no silêncio). Mas quantas pessoas morrem sem nunca ter tocado certas melodias, sem nunca ter entrado em harmonia com o próximo. Um pequeno instrumentinho que toca envergonhado suas trombetas é já um novo som para o mundo. Mais uma cor para a nossa paleta, mais uma possibilidade para nossa composição. Há de se valorizar muito esses pequeninos, para que não guardem para si suas diferenças. Mandem extrovertir as panelas!

Texto da Série:

Filosofia em Tom Maior

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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4 Comentários
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Raul Soagi
9 anos atrás

Rafael, desde a primeira vez que li essas palavras, venho pelo menos uma vez por semana relê-las. É quase um gesto espontâneo. Navego e, de repente, estou aqui na tentativa de calibrar e distorcer minhas intensidades. Fico feliz e ao mesmo tempo grato pela grandeza incessante do seu timbre, ele não cansa de ressoar!

Sara
Sara
2 anos atrás

Quando foi que vc publicou essa dissertação? Posso chamar assim?
É para a bibliografia de um artigo da faculdade