Não considere nenhuma prática como imutável. Mude e esteja pronto a mudar novamente. Não aceite verdade eterna. Experimente”
– Skinner
Dizem que o behaviorismo nunca vai entender um processo tão complexo como a criatividade. Nós precisamos ouvir esta crítica com muito cuidado, afinal, há um motivo realista para ela existir. A análise do comportamento tem sido usada para fins escusos, diríamos até mesmo vergonhosos. Quando a ciência do comportamento usa seu conhecimento com o único fim de controlar os funcionários na esteira de produção e torná-los mais produtivos ela está preocupada exclusivamente em evitar comportamentos que não os de apertar um parafuso e girar uma porca.
Um dos nossos objetivos nesta série, “Skinner e Espinosa - por um behaviorismo espinosista”, é o de trazer a potência da filosofia de Espinosa para somar com a ética e a clínica behaviorista. Demonstrar como algumas vezes seus usos são obtusos, gerando apenas servidão. Podemos e devemos experimentar e nos arriscar. Procurando outras possibilidades à luz da Ética espinosista o behaviorismo pode tornar-se mais potente.
É preciso, urgentemente, pensar uma clínica da experimentação. Espinosa e Skinner possuem ferramentas para isso. Afinal, muito antes do comportamento ser selecionado, ele precisa minimamente variar. Criatividade é variação do comportamento. É uma questão ontológica, a diferença é o mais alto grau de afirmação, ela é primeira. No fim das contas, é tudo uma questão de experimentação: a criança coloca o dedo na tomada e experimenta a sensação de tomar um choque, ela coloca a boca no seio e experimenta a sensação de ser amamentada. Todos crescemos fazendo experimentos, jogando coisas no chão, batendo em panelas, pulando em poças d’água. Não sabemos do que nosso corpo é capaz e o objetivo da experimentação é claro: fazer com que o nosso corpo da infância, tão impotente, tão passivo, seja capaz de realizar grandes coisas. Preencher nossa essência com afetos alegres. Ao experimentar, o homem se apropria cada vez mais de sua realidade.
Esforçamo-nos, nesta vida, sobretudo, para que o corpo de nossa infância se transforme, tanto quanto o permite a sua natureza e tanto quanto lhe seja conveniente, em um outro corpo, que seja capaz de muitas coisas e que esteja referido a uma mente que tenha extrema consciência de si mesma, de Deus e das coisas; de tal maneira que tudo aquilo que esteja referido à sua memória ou à sua imaginação não tenha, em comparação com o seu intelecto, quase nenhuma importância”
- Espinosa, Ética V, prop 39, esc
Primeiro ponto importante: quando alguém cria, ele não cria apesar de seu passado, mas por causa dele. Por isso a experimentação é essencial, ela abre o conatus, ela permite que um corpo cresça em potência e intensidade. O novo emerge de uma potência singular que se afirma. Ora, deixemos a potência singular se afirmar! Afinal, existe sempre a chance de sermos reforçados por algo que não fizemos antes. Um behaviorista, tanto quanto um espinosista, não segue cartilhas, ele se coloca em experimentação, segue fluxos, procura trilhas na mata fechada. Uma criatividade imanente, como próprio movimento da existência, que é produtora, criadora, revolucionária. Não há receita, há apenas encontros, uns reforçam positiva ou negativamente, outros punem positiva ou negativamente. O corpo está sendo moldado, deixemo-lo experimentar! Essa clínica se constrói ao sabor dos encontros, é uma ciência dos afetos.
Criatividade é a produção do não usual”
- Sidman, Coerção e suas Implicações, p. 194
Nossa única prescrição? Prudência. Sim, sempre, mas a prudência a serviço da ousadia. Uma prudência que saiba experimentar sem se desfazer no processo. Para experimentar-se é preciso sentir-se seguro. Ora, claro que podemos pular de um penhasco, mas com uma corda amarrada em nossos pés. Claro que podemos pular de um avião, mas com um para-quedas devidamente dobrado e preparado para o salto. Às vezes, saltamos no escuro, mas antes precisamos aprender a emitir uma luz própria.
O que nos entristece é que a vida pode ser muito estreita, com um curso regular e sem grandes surpresas por muito e muito tempo. A vida pode ser quase que completamente desprovida de experimentação, fazendo pessoas acreditarem que ela é perigosa para si e para os outros. Quanto mais singular, mais perturbador, para elas: a diferença deve ser extirpada da sociedade. Aniquilar o que há de estranho em si e no outro, este é o objetivo daqueles que não foram expostos aos benefícios da experimentação. E não é surpresa perceber como a punição e a coerção geram pessoas que punem e coagem.
Vítimas de tirania, sob ameaça constante, raramente causam surpresas”
- Sidman, Coerção e suas Implicações, p. 152
Na superstição, no primeiro gênero do conhecimento, há um embotamento da criatividade, um fechamento. São exatamente estas pessoas que não experimentam, que se tornam inflexíveis, intransigentes. Emitindo muitos comportamentos de esquiva, e, quando esta não é possível, fuga. A inibição da criatividade é a própria inibição do ser. Gerações inteiras não conhecem outra existência, nós somos parte disso, afinal, somos responsáveis por quantos maus encontros ao longo de nosso dia? A esquiva e a fuga são comportamentos que empobrecem a existência e tornam mais difícil qualquer experimentação, restringindo o repertório comportamental de um organismo. O que pode um corpo com medo? Pouco, ou quase nada. A depressão faz parte desta falta de reforço e impossibilidade de encontrar novos caminhos.
As ameaças constantes podem destruir o potencial de aprender de um ser vivo”
- Sidman, Coerção e suas Implicações, p. 149
Muitos encontram saídas reativas para suas dores e medos. Adaptar-se pura e simplesmente às condições de adversidade pode parecer vantajoso em um primeiro momento, pois evita punição e os maus encontros. Mas a adaptação passiva limita nossas opções, nos afasta das contingências que nos dão a oportunidade de novas experiências e crescimentos. Adaptação permite sobreviver, mas limita a qualidade e amplitude que a vida pode ter. Apenas conservar-se é permanecer em um nível muito baixo da existência, queremos ultrapassar esta condição. Espinosa fala de um conatus, como esforço para perseverar na existência, Skinner fala da seleção do comportamento, mas nenhum dos dois falam de adaptação pura e simplesmente. Os dois pensadores trazem esta busca pela diferença, pela ampliação, pela experimentação. Precisamos ultrapassar as forças reativas, agir mais do que reagir, aumentar nossa capacidade de ser afetado, em vez de se fechar.
Não precisamos sofrer para criar, não precisamos sentir saudades para depois saciá-la! Existem inúmeras formas de felicidade, a que deriva da tristeza é a mais baixa. Acabar com a felicidade que deriva de tristezas parece um bom objetivo para um behaviorismo espinosista alcançar! Fora com as alegrias tristes e com as tristezas alegres! Fora com um mundo exclusivo de reforço negativo!
Reforçamento positivo deixa-nos livres para satisfazer nossa curiosidade, para tentar novas opções”
- Sidman, Coerão e suas Implicações, p. 109
Para experimentar, voltamos à questão do conhecimento e do autoconhecimento. Claro que, enquanto proposta científica, o behaviorismo gera uma previsibilidade no comportamento, e esse conhecimento é de extrema utilidade. Uma vez que tenhamos experimentado ou que vimos alguém experimentando, podemos saber com mais clareza o que queremos ou não queremos. Mas a repetição e a previsão estão a serviço da diferença, da potência, não da rotina e do controle alheio. Seria então o conhecimento o mais potente dos afetos? Afinal, conhecer como o ambiente atua em nós é a nossa chance de operar nele através de nosso comportamento. Com que fim? De obter o que já temos? De conquistar o que já conhecemos? Já vimos que não, tornar-se ativo em nosso próprio desenvolvimento pode ser exatamente traçar caminhos que nunca trilhamos antes. A nossa potência de criação é a própria potência de criação da natureza. O princípio de todas as coisas é auto-produtor, Deus, ou o ambiente, é essa criação, e nós somos parcelas da potência do ser.
Tanto na seleção natural quanto no condicionamento operante, o aparecimento de ‘mutações’ é crucial”
- Skinner, Sobre o behaviorismo, p. 191
Quando o ambiente seleciona sempre os mesmos comportamentos, punindo qualquer variação, fica mais difícil experimentar. Ainda assim, a diferença brota, queiramos ou não. As contingências aumentam ou diminuem a chance de novos comportamentos, e através das consequências, há seleção. A diferença vem primeiro, a seleção em segundo. Conhecimento vem por último, e pode levar a variação do comportamento. “E se agora eu fizer assim?”, “E se eu for hoje eu for por ali?”, estamos cansados dos mesmos reforçadores, mas não é para menos, nosso mundo foi inteiramente organizado de fora, fomos levados pela mão e impedidos de exercer nossa experimentação!
O conceito de seleção é mais uma vez a chave. As mutações, na teoria genética e evolutiva, são casuais e as topografias das respostas selecionadas pelo reforço são, se não aleatórias, pelo menos não necessariamente relacionadas com as contingências em que serão selecionadas. E o pensamento criador preocupa-se grandemente com a produção de ’mutações’”
- Skinner, Sobre o Behaviorismo p. 101
Quanto mais experimentação, mais liberdade. Quanto mais criação, menos coação. Sim, a conclusão é óbvia, mas precisa ser dita claramente: ser livre é ser criativo! Uma clínica da experimentação trabalhando por uma ética da liberdade: fazer variar o comportamento para, num segundo momento, selecioná-lo. Quanto mais um organismo pode variar seu comportamento, mais livre ele é. Experimentar é abrir o campo de possibilidades e um mundo onde a experimentação é reforçada é um mundo onde a liberdade de si e dos outros cresce geometricamente. Não podemos buscar outro caminho porque Skinner e Espinosa nos mostraram claramente os benefícios (pena que poucos entenderam). Uma clínica da experimentação é a única possível para nós.
Talvez a maior contribuição que uma ciência do comportamento pode dar para a avaliação de procedimentos culturais está na insistência sobre a experimentação”
– Skinner, Ciência do Comportamento, p. 474
Através destes pontos em comum, podemos concluir uma clínica perpassa a filosofia do comportamento erigida por Skinner e a filosofia de Espinosa. Os dois partem da mais pura imanência para construir um pensamento sem ideais, que se faz no meio, nas superfícies, na horizontalidade, nos afetos. Os autores reivindicam uma clínica da experimentação como melhor maneira de afetar e ser afetado pelo mundo. “Nossa primeira tarefa será aparentemente modificar-lhe a maneira de sentir e assim a maneira de agir” (Skinner, Sobre o Behaviorismo, p. 152), mas melhor ainda, diz Skinner, seria o contrário, mudar a maneira de agir para mudar a maneira de sentir.
Como pode, nos perguntamos: vivemos, mas ainda não sabemos qual a melhor maneira de viver? E que outra maneira de fazer isso senão vivendo propriamente? Apropriar-se de si mesmo é discriminar as contingências apropriadas para obter reforçadores positivos e evitar punições e reforçadores negativos. Isso implica em aumentar a sua capacidade de ser afetado e para afetar o mundo o máximo possível. Desta clínica nasce um entusiasmo pela imanência. É a potência da vida se expressando. Não se escolhe ser criativo, ele é expressão entusiasmada da potência do ser. Ou seja, há sempre algo que nos ultrapassa, que é e ao mesmo tempo não é aquilo que somos.
É útil ao homem aquilo que dispõe o seu corpo a poder ser afetado de muitas maneiras, ou que o torna capaz de afetar de muitas maneiras corpos exteriores; e é tanto mais útil quanto mais torna o corpo humano capaz de ser afetado e de afetar os outros corpos de muitas maneiras”
- Espinosa, Ética IV, prop. 38
Enfim, uma clinica da experimentação é a ferramenta ética do behaviorista e da filosofia espinosana para o ser humano libertar-se da servidão, encontrar meios para sentir-se bem, o melhor possível, convivendo uns com os outros de modo que todos possam crescer o máximo juntos. Sair da ignorância e encontrar sabedoria, existiria melhor maneira para isso que não uma análise imanente do nosso modo de vida? Sem ideais, sem Deus, sem ídolos, sem superstições de qualquer tipo… apenas uma análise rigorosa partindo do nosso cotidiano e investigando a potência que existe na existência que nos mostre as brechas para experimentar sempre mais e mais. Para concluir, que robotização é essa de que acusam o behaviorismo? Que simplicidade é essa que tanto associam à clínica da análise do comportamento? Vimos como o behaviorismo dá passos enormes em direções que ainda nem podemos imaginar. Claro, é exatamente essa a intenção. O pensamento potente sempre se abre para o que ainda não sabe o que é. Neste sentido, poucos encontros podem ser tão importantes para isso como o de Espinosa e Skinner.
Revisão: Johny Brito (johny.brito@gmail.com)
Quanto mais eu leio sobre Spinoza e Skinner, mais ideias incríveis vão aparecendo!
Adoro o blog, parabéns Rafael, você escreve muito bem!! (: