O cinismo é a forma de filosofia que não cessa de colocar a questão: qual pode ser a forma de vida que seja tal que pratique o dizer-a-verdade?”
– Foucault, Coragem da Verdade, p. 206
Nunca a verdade foi tão procurada! Nunca a verdade foi tão valiosa! Nunca a verdade foi tão perigosa! Mas afinal, onde está a verdade? Não estamos falando de uma Ditadura da Verdade, que se impõe, se aplica sem questionar, se estabelece sem pedir licença. Para nós a verdade não se dá na forma de ditadura. Nossa verdade é inadequada!
A partir do instante em que a filosofia não é capaz de viver o que ela diz senão de modo hipócrita, é preciso insolência para dizer o que se vive. Numa cultura em que os idealismos empedernidos fazem da mentira a forma de vida, o processo da verdade depende da existência de pessoas suficientemente agressivas e livres (‘descaradas’) para dizer a verdade”
– Peter Sloterdijk – Crítica da Razão Cínica, p. 155
A fala carrega nossa hipocrisia. Nossos gestos estão afastados do que somos. Este é o problema: teoria versus prática. É mais fácil para nós, falar do que fazer. Somos quem somos ou dizemos que somos? Não acreditamos nos outros, mas… e em nós mesmos? Acreditamos ter a verdade… mas e a coragem da verdade?
Diógenes de Sínope foi um dos poucos que pode se orgulhar de praticar a parrhesía, do grego: fala franca, fala reta. Um dos grandes nomes do cinismo, escola socrática menor, Diógenes se orgulhava de vomitar a verdade na cara de quem fosse, rei ou escravo, dizer tudo que acreditava para quem lhe cruzasse o caminho, sem rodeios. A razão cínica não e a mesma dos homens comuns. Tal como Sócrates, a parresía de Diógenes gerava muitas vezes desconforto maior que um tapa na cara ou uma escarrada no chão. Os cínicos eram encarregados de denunciar toda a falta de sentido da vida ateniense.
Frequentemente só trazemos a verdade à tona sob o preço da indocilidade”
– Peter Sloterdijk – Crítica da Razão Cínica, p. 203
Mas o que dava o direito do filósofo cão fazer isso? Diógenes não tinha nada, vivia na rua, mendigava por comida, dormia em um tonel. Seus únicos pertences eram um cajado, uma bolsa e um manto e por vezes um companheiro canino. Por isso, e exatamente por isso, ele podia ser quem era, podia viver uma vida não dissimulada, sem esconder nada de ninguém. Os cínicos, e consequentemente Diógenes de Sínope, tinham o privilégio de chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome. O parresiasta era aquele que unia mente e corpo, teoria e prática, fala e existência.
O homem de manto curto, barba hirsuta, pés descalços e sujos, com a mochila, o cajado, e que está ali, nas esquinas, nas praças públicas, na porta dos templos, interpelando as pessoas para lhes dizer algumas verdades”
– Foucault, Coragem da Verdade, p. 171
A parresía é consequência de um modo de vida, de uma ascese (exercício) que permitia a capacidade de viver conforme seus preceitos. Uma existência determinada é a condição para a fala reta: desavergonhada, na pobreza, em militância, conforme a natureza. Uma maneira de se conduzir, uma maneira de se portar, de viver. O Cinismo é muito mais uma prática que uma filosofia (por isso, talvez, ela é tão superior a várias filosofias). O Cínico, através de seu modo de vida, faz de sua própria existência o suporte para a verdade, colar filosofia na existência, tornando-as uma só. Isto lhe permite expressá-la francamente aos outros.
A vida como presença imediata, brilhante e selvagem da verdade, é isso que é manifestado no cinismo. […] A verdadeira vida como vida de verdade. Exercer em sua vida e por sua vida o escândalo da verdade, é isso que foi praticado pelo cinismo”
– Foucault, A Coragem da Verdade, p. 152
Alguns chamariam de sincericídio. Mas nós perguntamos, não estaria mais para sincerigênese? Ora, a verdade é criadora, alguns dizem até que ela liberta, ela é uma potência que se afirma (e sabemos que a potência está para além do bem e do mal). Nietzsche já havia perguntado: quanta verdade um homem suporta? “O silêncio é pior. As verdades que calamos tornam-se venenosas” (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra). Pois é, mas os atenienses (e nós), não suportavam muita parresía. A fala de Diógenes, nas praças, nos mercados, na Ágora, muitas vezes gerava escândalo.
A forma de vida é a condição do dizer a verdade. Sua verdade toma forma em seus gestos, em seu corpo, então na maneira de se vestir e, por fim, de falar. Sua fala carrega consigo a verdade em sua forma bruta, material, explícita. “Olhem para mim, eu sou isso, não há distância entre mim e eu mesmo“. Sua existência prova sua palavra.
O cínico é portanto como a estátua visível da verdade […] o próprio ser do verdadeiro, tornado visível através do corpo”
– Foucault, Coragem da Verdade, p. 274
Não é a coragem política da verdade, Diógenes desacreditava em todo e qualquer estado, desdenhava de todos os políticos, inclusive de Alexandre, o Grande, mais poderoso chefe militar da época. Diógenes também não estava se referindo a uma forma de ironia socrática, sua verdade se manifestava na forma de rejeição, desprezo, tumultos, atuações performáticas. O Cinismo, particularmente com Diógenes, se expressa como o mais absoluto comprometimento de viver conforme o que se diz. Nisto retorna a verdade como prova da mais absoluta verdade no viver. Foucault estava certo: a capacidade de parresía define um bom filósofo.
É preciso coragem e uma dose de loucura….!!!!!!!!!!!!! Bacana!!!!!!!!!!!!!!!!
E quando existe cursos universitário que ensina mentir (curso de propaganda e marketing).
Ficou legal esta formatação com os olhos e bastante figuras grandes…….deu uma leveza para a leitura…….boa ideia!
Esse formato em comentários deu uma nova abrangência a leitura! Muito bom!
Uma reflexão provocativa sobre a verdade e o cinismo. A citação que você fez de Peter Sloterdijk, em especial, foi a frase que ficou em minha cabeça, incomodando com a seguinte pergunta: afinal, em que cultura seria possível a verdade ser praticada com suavidade e sem conflitos? Em que cultura não se encontram “idealismos empedernidos”? Abraço.
A verdade nunca pode ser praticada de forma suave, tal é ela, em si mesma, brutalidade. Em última instância, a suavidade é inimiga da verdade. Relativamente à segunda parte, a sua questão é paradoxal, uma vez que a própria cultura, por definição, seja ela qual for, é já um idealismo/fundamentalismo sobre algo. Dessa forma, talvez poderemos dizer que a vivência última (utopicamente falando) é aquela que se liberta de toda e qualquer cultura.
No longo caminho já percorrido os corajosos são rotulados loucos. Nunca me esqueci de um jantar acontecido um dia depois do terrível assassinato de CHE GUEVARA e um dos membros fez um brinde à morte de um insensato.A maioria brindou e o silêncio da minoria foi vergonhoso. Ainda me lembro do constrangimento geral.
Oi crush
Ah, pó, queria mais informação. Muito rapidinho. Mas de modo geral, gosto muito dos textos de vocês. O blog eh muito cheio de informações e bons agenciamentos teóricos. Muito grata.
Muito bom o texto!
O texto muito bom, de maneira geral. Só que não produz nenhuma dinâmica nova de interpretação, e, Eu diria, que estaria bem próximo de resenhas sendo que isto não lhes retira o valor retórico da apresentação. Obrigado