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Quando Alexandre o Grande, um dos homens mais importantes de seu tempo, parou na frente de Diógenes, o Cínico, e disse a ele que lhe daria qualquer coisa, o filósofo disse: “saia da frente do meu Sol, pois você está fazendo sombra”. Verdadeira ou não, esta anedota ficou famosa, muitos admiraram a coragem e a sinceridade da frase, outros riram da irreverência do filósofo-cão, e alguns atentaram para a independência e autarquia do pedido, mas poucos notaram o que realmente importava para o filósofo: Alexandre impedia Diógenes de tomar o seu sol. Esse desejo pode nos dizer muito sobre a filosofia.

O que quer o cínico? Bom, antes de mais nada sabemos o que ele não quer, ele não se importa com a fama, a riqueza, os prazeres e os costumes de seu tempo. Todos estes objetivos são empecilhos para adquirir a virtude, único caminho capaz de proporcionar uma boa vida. Sabemos também como o cínico quer, seu jeito é o mais escandaloso possível, ele faz uma paródia, uma dramatização, uma comédia de si mesmo para gerar uma espécie de acontecimento filosófico e acordar os outros de sua letargia.

Além do desprezo pelo prazer e pelas convenções, outra característica importante do cinismo é o cosmopolitismo. Mas na filosofia cínica o cosmopolitismo possui um caráter de negação crítica: vocês se orgulham de serem gregos, diria o filósofo cão, pois bem, os egípcios também se orgulham de serem egípcios e o mesmo vale para os fenícios e até mesmo para os bárbaros além das nossas fronteiras. E assim criticaria todos aqueles que vivem segundo as leis de uma cidade e se esquecem que estão inseridos em uma natureza muito maior.

Sendo assim, a filosofia cínica é também, ao seu modo muito particular, uma filosofia política. Ao ser perguntado de onde era, Diógenes simplesmente respondia, “eu sou um cidadão do cosmos”. As convenções e leis políticas da Grécia eram pequenas demais para ele. A ideia certamente não foi bem aceita em uma época onde grande parte da identidade cultural estava centralizada na ideia de uma cidade-estado. Mas como toda boa ideia, ela sobreviveu para ser atualizada na posteridade.

Depois da queda das cidades estados, dominadas pela macedônia, os estoicos ressuscitaram o conceito de cosmopolitismo, mas o caminho agora era outro. Eles trouxeram esta ideia em sua vertente positiva e envernizada pelos largos corredores do senado de Roma – além de seus vastos exércitos, claro. Agora, o cosmopolita era um cidadão do mundo, diziam eles, e toda a humanidade é a sua casa. Não há mais abandono e relativização das leis da cidade, muito pelo contrário, o que havia era um maiores processos civilizacionais da história.

Então, um estoico se responsabiliza não apenas pelos mais próximos dele, por sua família ou sua cidade, mas por todos os seres humanos do mundo. Ser um cidadão do cosmos significa se olhar para o universo inteiro. Ou seja, os Estoicos, se nomeavam cosmopolitas, porque toda a humanidade era sua. Em outras palavras, a polis agora era do mundo, sua política se referia a tudo e todos. De alguma maneira, nada estava fora dela.

Nada nos impede de dar um salto histórico e chegar a Emmanuel Kant, com quem a ideia de cosmopolitismo atinge o ápice através da ideia de uma união das nações em busca da paz perpétua e do desenvolvimento do ser humano. Esta ideia se desenvolverá futuramente na ONU, a Organização das Nações Unidas. Aqui precisamos voltar a Diógenes, o cínico, tomando o seu Sol, seria ele o pioneiro na história da criação de algo como a ONU? Uma ideia estranha que nos leva a pensamentos interessantes.

Antes de mais nada, Cosmopolitismo é um neologismo, que pode ter um significado diferente do que pensamos. Cosmos era sinônimo do ordenamento da natureza, da sua maneira determinada funcionar. Se a Natureza é algo que vai muito além da cidade, então um Cidadão do Cosmos pode ser entendido como “Um cidadão do Universo”. Frente a frente, o cosmopolitismo de Diógenes, o Cão, diverge do cosmopolitismo de Alexandre, o Grande.

Os Cínicos eram filósofos que valorizavam a physis, natureza, em lugar do Nomos, leis da cidade. Mesmo que, estranhamente, eles não tenham um estudo da Física (como estoicos e epicuristas), ainda assim, a Natureza é o seu modelo de virtude. Os Cínicos desprezavam a teoria, a especulação, a astronomia e a música, tanto a física quanto a metafísica, porque achavam que tudo isso já estava contaminado. Eles preferiam a prática, abrir o seu caminho com latidos e uivos. Mas o que aconteceria se eles tivessem um telescópio? Será que eles não aproveitariam o momento de ócio para dar uma espiada?

Eis a questão: o Cosmopolitismo de Diógenes parece ser muito maior que o de Alexandre, o Grande. O imperador quer conquistar o mundo, dar a ele sua imagem e semelhança, o cão procura se abrir para o mundo, procurar por algo maior que ele. O Cínico sabia que as convenções da cidade eram pequenas demais para ele, até mesmo prejudiciais. Viver uma vida conforme natureza de forma alguma era o mesmo que viver uma vida conformada. Muito pelo contrário, viver conforme a natureza era encontrar modos de se proteger das convenções da cidade, que nos carregam para movimentos que não nos interessam, como o Grande Imperador queria fazer com Diógenes.

O que seria este mundo aberto? O que seria viver no Cosmos? Talvez Diógenes soubesse a resposta, ou talvez ele ainda a estivesse procurando. Ele farejava como um cão, atento para o sinais mais sutis. Enquanto isso, latia para aqueles que queriam colocar nele e nos outros uma coleira e prendê-los dentro de casa. A filosofia não combina com o pensamento doméstico, ela é um abrir-se para o cosmos. Mas como buscar este mundo mais aberto? Como abrir o mundo?

Esta parece uma boa tarefa para a filosofia, e neste momentos precisamos ser agressivos. Os pré-socráticos, filósofos da natureza, foram os primeiros, buscando os princípios de criação e recriação do universo; com certeza Sócrates, com sua irreverência, foi o maior. E há séculos a tarefa continua. Ser um Cidadão do Cosmos significa ter a capacidade de se abrir para um mundo que funciona diferente do que conhecemos e ter coragem de recusar o que é fácil e conhecido. O que este mundo aberto tem para nos oferecer? Não sabemos, mas certamente, Imperador nenhum pode nos dar.

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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