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A disjunção tornou-se inclusa, tudo se divide, mas em si mesmo. Mesmo as distâncias são positivas, ao mesmo tempo em que as disjunções são inclusas”

– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 106

A síntese disjuntiva é provavelmente a mais difícil de compreender das três. Exatamente por isso é também a mais importante. Da série de conexões e..e..e.. da síntese conectiva, a síntese disjuntiva é o terceiro termo que aparece na série binário-linear. É a quebra, o desvio, a mudança de direção. É isso que nos interessa.

Seu uso se representa pela conjunção alternativa: “ou… ou… ou…”. A conjunção alternativa “ou” quebra a série binário-linear em duas, permitindo novos caminhos, abrindo novas possibilidades. Tudo acontece aqui por divisão, são alternativas: ou isso… ou aquilo, ora esse… ora aquele, quer sim… quer não, seja perto… seja longe. Os dois juntos! Quebrando a lógica aristotélica da identidade.

A grande questão aqui é que a disjunção tornou-se inclusa, e é isso que é difícil de entender. Um “ou” que não implica oposição, não implica a exclusão de nenhuma das alternativas. Tudo fica registrado, cada opção, cada possibilidade. Um exemplo pode esclarecer: um ancestral comum deu origem aos orangotangos, aos chimpanzés e aos seres humanos. Ou seja, de um mesmo ancestral, evolui um orangotango, ou um chimpanzé, ou um ser humano. Todos são possibilidades viáveis de símios, todos são disjunções inclusas da evolução dos primatas. (Os religiosos não entendem de disjunção inclusa, pois perguntam “se o homem evoluiu do macaco, porque ainda existem macacos?”)

Enquanto o “ou então” [como indicador de exclusão] pretende marcar escolhas decisivas entre termos não permutáveis (alternativa), o “Ou” [inclusivo] designa um sistema de permutações possíveis entre diferenças que sempre retornam ao mesmo, deslocando-se, deslizando”

– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 25

A disjunção inclusa é como a luz: ora comporta-se como partícula, ora como onda. É exatamente isso, ela inclui a conexão do divergente, da diferença enquanto diferença, daquilo que parece não se relacionar. Isso que nos deixa malucos! Na positividade da divergência, a síntese disjuntiva torna-se inclusiva, permitindo que as diferenças entrem e contato, ao contrário de um fechamento, há aí uma abertura para inúmeras possibilidades. Cada termo é registrado e afirmado sem contradição, sem oposição, excedendo qualquer tendência à identidade.

O número de vias aumenta com cada disjunção inclusa. É quando a chef de cozinha diz: “Você pode substituir X por Y”. O que isso significa? Significa que as duas coisas são igualmente possibilidades! Uma não exclui a outra. Na bissexualidade sente-se atração sexual, quer seja por homens quer seja por mulheres; o sofá-cama serve para dormir ou para ver televisão; o canivete é útil num acampamento, quer seja para cortar, quer seja para abrir garrafas, quer seja para furar, arrancar um espinho no dedo, sacar uma rolha. Nenhum destes objetos deixa de ser quem é ao realizar qualquer uma destas atividades.

Quanto mais peças se acoplam na síntese conectiva, mais são os caminhos de disjunção inclusa! Tudo se divide… mas eu si mesmo, admitindo vias novas! Como uma sacola mágica de onde tudo se tira! A disjunção inclusa é a perfeita disposição para a pluralidade simultânea.

Sendo inclusiva, a disjunção não se fecha sobre seus termos; ao contrário, ela é ilimitativa” – Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 107

Produção de Registro

Deleuze e Guattari chamam a esta segunda síntese de produção de registro. Qual é a superfície de registro? O Corpo sem Órgãos. As máquinas deslizam no campo das intensidades. Os objetos parciais criam gradientes de concentração, campos gravitacionais, campos eletromagnéticos, traçam linhas, definem sulcos, marcas, riscam a superfície do CsO. É no Corpo sem Órgãos que fica tudo registrado.

A síntese disjuntiva de registro vem, portanto, recobrir as sínteses conectivas de produção. Como processo de produção, o processo se prolonga em procedimento como procedimento de inscrição”

– Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 26

Quando a linha binária se quebra, outras caminhos se abrem, uma nova espécie surge, um novo comportamento, uma descoberta, uma criação. Ela quebra o hábito da primeira síntese para seguir em novas direções. A libido conectiva da produção desejante se transforma em energia de inscrição disjuntiva. Estamos falando de outra energia, Deleuze e Guattari a chamam de Numem, energia divina, intervenção miraculosa. A síntese disjuntiva não altera o caráter linear da produção, apenas a desvia… permitindo novos caminhos. O mesmo vale para o trem que segue em uma linha reta, parando em várias estações ao longo do caminho, mas vê ser curso ser desviado em uma bifurcação, seguindo um trilho lateral, seguindo outra direção.

Registros, informações, transmissões formam um todo quadriculado de disjunções. As máquinas podem se mover de várias maneiras, mas movem-se de uma maneira determinada, de acordo com o código que se sobrepõe a cada uma. Há nas máquinas dois tipos de energia, uma libido linear e o Numem desviante. Aqui, tudo pode ser definido como fluxos-cortes-cadeias-códigos.

Toda máquina comporta um tipo de código que se encontra maquinado, estocado nela. Esse código é inseparável não só de seu registro e de sua transmissão nas diferentes regiões do corpo, como também do registro de cada uma das regiões em suas relações com as outras” – Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 57

Estes códigos também estão estocados no ser humano. Há um registro que operamos, uma síntese, que é a memória. Bergson ficaria orgulhoso, para ele a memória não estava no passado, mas registrada no presente, o tempo todo aqui, conosco, só esperando para se atualizar dadas as circunstâncias propícias.

Não surpreende Deleuze e Guattari serem os criadores deste conceito tão importante para o Anti-Édipo e a sua filosofia como um todo. Eles mesmo são a própria encarnação da disjunções inclusa. Não podemos dizer quem é quem nos livros escritos a quatro mãos. São sempre os dois juntos os autores de Mil-Platôs, Kafka, e até mesmo O que é a Filosofia?. Além disso, seus livros podem ser usados como canivete suíço para as mais variadas coisas. O Anti-Édipo operou e opera as mais diversas disjunções exclusivas na filosofia.

As disjunções próprias a estas cadeias ainda não implicam exclusão alguma, sendo que as exclusões surgem devido apenas a um jogo de inibidores e de repressores que determinam o suporte e fixam o sujeito específico e pessoal” – Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 58

A disjunção é a o corpo liso e sem órgãos onde as máquinas desejantes podem se mover e rearranjar, afirmar sua renovação. Sendo inclusiva, ela não se fecha sobre seus termos, uma máquina oleosa que não enferruja. O uso imanente da máquina disjuntiva é um sobrevoo, uma passagem sem atritos de um polo a outro. Como uma disjunção pode ser inclusiva? Porque é inclassificável, você tenta colocá-la numa forma mas ela é isso, ou aquilo, ou… ou… ou…

A esquizofrenia nos dá uma singular lição extraedipiana, e nos revela uma desconhecida força da síntese disjuntiva, um uso imanente que não seria mais exclusivo nem limitativo, mas plenamente afirmativo, ilimitativo, inclusivo. Uma disjunção que permanece disjuntiva, e que afirma, todavia, os termos disjuntos, que os afirma através de toda a sua distância, sem limitar um pelo outro nem excluir um do outro, talvez seja o maior paradoxo. ‘Ou… ou’ em vez de ‘ou então’” – Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo, p. 105

Texto da série:

 

Inconsciente Maquínico

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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natalybarros
natalybarros
8 anos atrás

como sempre <3

Adauto
6 anos atrás

Interessante aplicação da filosofia pós-estruturalista; desconstrutivismo na veia! Mas, afinal, isso é patológico, não? Como se cura? Se é que tem cura.

Adauto
6 anos atrás

Afinal: ” Criticas serão sempre bem-vindas, mas sempre com o objetivo de construir algo no lugar.”

renata aspis
renata aspis
5 anos atrás

a síntese disjuntiva opera por “e…e…e”, nada de “ou”, pois não exclui

Psiconauta
Psiconauta
Reply to  renata aspis
5 anos atrás

“[…]O “ou… ou” esquizofrênico reveza com o “e depois”: considerando dois órgãos quaisquer, a maneira como estão enganchados no corpo sem órgãos deve ser tal que todas as sínteses disjuntivas entre os dois venham a dar no mesmo sobre a superfície deslizante. Enquanto o “ou então” [como indicador de exclusão] pretende marcar escolhas decisivas entre termos não permutáveis (alternativa), o “ou” [inclusivo] designa um sistema de permutações possíveis entre diferenças que sempre retornam ao mesmo, deslocando-se, deslizando.” O Anti-Édipo, pág. 25 A síntese disjuntiva sempre trabalha com “ou…ou”, diferente da síntese conectiva, que opera por acoplamento (“e…e”). Além disso ela… Ler mais >