Eu vi descer sobre os homens uma grande tristeza. Os melhores entre eles se cansaram de suas obras. Uma doutrina surgiu, acompanhada de uma fé: ‘Tudo é vazio, tudo é igual, tudo foi!'”
– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, O adivinho
O niilismo atinge seu penúltimo estágio quando o relógio soa meia-noite. A hora onde a luz mais falta, a hora em que o niilismo encontra o fundo do poço em que mergulhou. As forças estão se desagregando, quase não há mais vontade, quase não há mais forças, a vida mesma está despedaçada e se decompondo em cada passo rumo ao encontro com o abismo. O niilismo avança cada vez mais, estende seus tentáculos por todos os campos da vida humana. É um ponto onde não tem mais volta, a doença já se espalhou por todas as partes do corpo. O último dos homens está cansado até mesmo para suicidar-se, ele espera passivamente que o mundo leve sua alma, sua vida, sua dor.
O niilista passivo é a terceira das 4 formas de niilismo. Ele segue como um coveiro em um cemitério abandonado, cuida de um museu que ninguém mais visita e a poeira assenta sobre as obras esquecidas. “Todo o trabalho foi em vão“, lamenta-se o último dos homens, “tudo é vão, tudo é por nada“. Não há deuses, não há valores, não há destino, não há caminho seguro. O niilista passivo, nega por negar, já não há mais força. A religião não salva, a ciência não encontra respostas, o homem é mau. Moribundos, agonizantes, os últimos homens se arrastam sem rumo. O esforço para tomar o lugar de deus foi inútil, tudo é frágil, nada vale…
‘Ah, onde há ainda um mar onde possamos nos afogar?: eis como soa o nosso lamento – por sobre pântanos rasos. Em verdade ficamos cansados demais para morrer, ainda estamos acordados e prosseguimos vivendo – em sepulcros!”
– Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, O adivinho
Não há forças nem mesmo para pôr fim ao próprio sofrimento. Somos carcaças apodrecendo em vida. As forças que formavam o homem, o caos que o habitava, se foram. O homem quer morrer, mas não tem forças nem mesmo para tal tarefa. Ele segue olhando para trás, dizendo “foi assim”, sem conseguir olhar para o que vem à frente. Este aceitar tudo, do jeito que é, de qualquer jeito, é a falsa afirmação, que está muito longe do Sim do amor-fati. A resignação é um parente falso da afirmação.
O último homem não quer valores nem divinos nem humanos, estamos para além do cristianismo, passamos pelo budismo e chegamos ao fim: nenhum deus e um só rebanho. Até mesmo o mar secou! As duas formas anteriores ainda tinham em que se segurar, ainda tinham uma vontade de nada, mas o niilista passivo passa para o nada de vontade. É aquele que prefere extinguir-se passivamente. São mortos-vivos: “É preferível um nada de vontade do que uma vontade de nada!“, diz aquele que quer morrer. Nossos tempos expressam bem a depressão da qual Nietzsche falava, os valores ascéticos que nascem desta vontade que descende. Um mundo incapaz de erigir novos valores, que vira a vida contra si mesma, sem forças o bastante para levantar-se do chão.
Em todos os tempos, os homens mais sábios fizeram o mesmo julgamento da vida: ela não vale nada… Sempre, em toda parte, ouviu-se de sua boca o mesmo tom — um tom cheio de dúvida, de melancolia, de cansaço da vida, de resistência à vida” – Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, O problema de Sócrates, §1
Estamos em estado terminal. Aos poucos, a vontade de potência se esgota no niilismo, ela vaza, escoa, procura afirmar-se em outros lugares. O homem cada vez mais doente tem cada vez menos capacidade de afirmar-se. A chama se apaga, surge a escuridão sem fim. Mortos-vivos não encontram vida dentro de si (mesmo ela estando lá), mas ainda se movem.
E continuamos. É tempo de muletas. Tempos de mortos faladores e velhas paralíticas”
– Carlos Drummond de Andrade, Nosso Tempo
Dor torturante do vazio, homens metafísicos se castigam até evanescerem. Vontade de Nada é a vontade de ser outro. O Nada de vontade é a vontade que já se desfez, encontrou novos caminhos, abandonou o corpo doente. O niilismo atravessa de ponta a ponta a existência até escapar de volta para ela. Nietzsche ensina, através do eterno retorno, a atravessar o niilismo de ponta a ponta, levá-lo até suas últimas consequências.
Um niilista completo pode voltar a ser um niilista reativo ou negativo, pode encontrar uma Igreja, um Ídolo, um “sentido”, ou pode atravessar todas as etapas do niilismo e sair do outro lado, fazer a volta completa, e aprender a transvalorar valores. Este é o caminho que Nietzsche propõe em sua última forma de niilismo, quando ele é vencido por si mesmo. Atravessar a noite, desafiar o niilismo, desfazer-se das forças do negativo: encontrar o grande meio dia, o instante onde a sombra é mais curta.
muito bom! muito bom muito bom muito bom! vcs nos salvam com esses recortes, meninos! obrigada obrigada!!
Obrigado!
Ótimo texto. Obrigado pelo brinde ao conhecimento deste tema que tanto me fascina. A serie as formas do niilismo me encantam cada vez mais.
muito obrigada, brilhante os textos sobre o niilismo!
Esse niilismo seria o void
qual seria a diferença deste para o existencialismo?
Também gostaria de saber.
No existencialismo a sua vida começa sem sentido, sem rumo e é você que com o tempo atribui um propósito. E acho que você já consegue perceber a diferença entre o existencialismo e o niilismo passivo.
O filósofo Arthur Schopenhauer e o escritor americano Charles Bukowski se enquadrariam no niilismo passivo? Obrigado e desculpe a ignorância.
Sandra, Schopenhauer com certeza. Mas Bukowski eu não saberia dizer, nunca li nada dele, mas já me disseram que é bem legal. Mas ainda preciso ler pra ter certeza. (Ah, e não há a mínima necessidade de se desculpar pela pergunta)
valeu gostei da explicação, sou o ser mais niilista atualmente nesse não é daquele não-mundo de sempre nunca, falar qualquer coisa num niilismo ativo é e não é, e não é “e” ofensivo a esse desobjeto, vivo num tanto faz e desfaz to louco me [(lhe) “lhe” porque não me sou, mas “lhe sou” mesmo sem nada ser] ajude.
Todos nós chegaremos até aqui? É louco! Eu não faço a menor ideia de como romper com o niilismo passivo (agora posso nominar o que sinto e me consome). Uau! Muito obrigado pelo texto! É estarrecedor mas, de uma forma linda, não desmotivador.
Rafael, Emil Cioran pode ser considerado um niilista passivo? Obrigado!
Encantador, conseguiu manifestar aquilo que assombra a mente dos niilistas passivos. Digo isso com convicção pois recentemente vivi tais pensamentos, e compreendo a vontade de nada e o nada de vontade. Algo que beira a depressão, o que pode divergir é o fato de nada importar ao ponto que tudo pode ser tolerável.
Exatamente