A vida se apresenta em múltiplas camadas que se entrecruzam livremente. Não é diferente com os sons. Nós organizamos o espectro sonoro para dele obter música. Toda organização deixa algo de fora. Seleciona, recorta, exclui. Claro, há uma boa maneira, há uma ética sonora. Melhor, há várias maneiras.
Organizamos as notas numa melodia e a acompanhamos com belos acordes. Técnica valiosa quando queremos verticalizar, quando aspiramos às alturas. Pensando em organizar o pensamento em base e ponta, usamos essa técnica. Quando queremos atingir, quando queremos declarar, quando querermos comunicar …
Mas há ainda outra técnica: Polifonia, vários sons, várias melodias. Aqui predomina a independência, a coordenação, a autonomia e a intercomunicação. Sem oposição, sem dicotomia, sem dualidade. É o modo horizontal de fazer música. Ninguém acompanha ninguém, mas todos vão juntos. Diferentes timbres, diferentes alturas, diferentes ritmos, mas todos inseridos num mesmo contexto. Articulação de diferenças em prol de uma nova composição.
A sensibilidade polifônica não é comum nos nossos dias. As múltiplas vozes são geralmente silenciadas pela representação de uma só. O discurso indireto livre está fora de moda. Os coros insistem em gritar todos juntos palavras de ordem. A organização pela massa é o modus operandi das nossas reivindicações. Nossas rádios e televisões centralizam a música na figura dos cantores, verticalizam melodias desinteressantes, mensagens vazias, afetos monótonos.
A polifonia já provou sua potência na história. Quando a igreja católica recusou os madrigais polifônicos e poliglotas de Palestrina com o argumento de que a mensagem de Deus ficava perdida no meio de tantas vozes, Bach fundou a reforma protestante na música levando a polifonia adiante. De fato, a igreja católica estava certa, a polifonia estava tirando seus fiéis do caminho do senhor, música demais, mensagem de menos, vozes demais, mandamentos de menos. Como rezar Agnus Dei num moto perpetuo a 5 vozes independentes? O rebanho nem consegue mais cantar junto! Melhor algo pobre, um refrão, uma só voz. Amém…
Sejamos profanos então! Devemos promover a polifonia como uma potência de liberação. Polissemia, polirritmia, polivalência, politonia (e por que não poliamor?). O prefixo poli é o da multiplicidade! Vários sentidos, vários ritmos, vários valores, vários tons, e tudo isso sobreposto. Confusão? Não, Multidão. Novos agenciamentos, novas composições, uma profusão de novas dimensões.
Uma melodia se comunica à outra, que a repete em outra altura, com outro timbre e lança adiante o motivo. Linhas horizontais que quando organizadas nos transmitem um sem-número de afetos, uma paisagem sonora. Valorizar a independência de cada melodia é descentralizar a escuta, é comunicar o incerto, o sutil. É colocar um pouco de atividade na lista do dia das nossas orelhas. Chega de tanta passividade.
“Mas há ainda outra técnica: Polifonia, vários sons, várias melodias. Aqui predomina a independência, a coordenação, a autonomia e a comunicação. Sem oposição, sem dicotomia, sem dualidade. É o modo horizontal de fazer música. Ninguém acompanha ninguém, mas todos vão juntos. Diferentes timbres, diferentes alturas, diferentes ritmos, mas todos inseridos num mesmo contexto. Articulação de diferenças em prol de uma nova composição.”
tudo, tudo, tudo muito incrível!
Incrível texto!