Esforçamo-nos por fazer com que se realize tudo aquilo que imaginamos levar à alegria; esforçamo-nos, por outro lado, por afastar ou destruir tudo aquilo que imaginamos levar à tristeza”
– Espinosa, Ética, parte III, prop.28
Nem sempre sabemos se realizar aquilo que imaginamos nos levará à alegria. Saber requer mais do que imaginar, requer experimentar, afetar e ser afetado. Experimentar requer mais do que se atirar, requer Prudência, mas nem só de prudência se constitui um corpo sadio, aberto, em variação. É preciso uma medida de Ousadia, um derradeiro Sim. Para experimentar, precisamos tanto da tática quanto da estratégia: aliamos (ao invés de opor) Prudência e Ousadia.
Ser ousado é encontrar o imprudente, mas não em qualquer lugar senão dentro da própria prudência. Sim, ser ousado é encontrar uma porta na prudência, é interferir, agir, encontrar uma ponta, um kairós; é deixar que a prudência desempenhe seu papel, mas esperar que ela deixe a porta aberta para o momento oportuno. É buscar a força na fraqueza, transformar o ressentimento em cólera, o inflamável em combustível, um princípio em explosão. Ousadia é o atributo de quem encontra o momento de apostar tudo.
A palavra deve ser dita no momento em que ela acertar na mosca e conduzir a um pendor. A ponta inflete um movimento, toma novas direções: a partir dela, os dados são modificados. O mesmo vale para os gestos e atos cujos efeitos residirão na produção de um domínio. O homem do kairós é um domador de energia, o gladiador do Chronos”
– Onfray, A escultura de si
Ousadia nos termos conceituais em que falamos aqui não tem nada a ver com o que está lá nos dicionários. Falta de prudência? Ato irrefletido? Ora, é precisamente o contrário. Afoiteza não é para nós um sinônimo de Ousadia, assim como a Prudência não é sinônimo de lerdeza. Ótimo momento para lembrarmos que temos que tomar cuidado ao criar conceitos, eles não são adjetivos e afetos não são sentimentos. A Ousadia requer a prudência, deixemos de lado as rasas antonímias da linguagem. Tão estúpido quanto achar que o contrário do medo é a coragem é pensar que a ousadia é o antônimo da prudência; só se for na gramática.
Ousado é o que a prudência deixa passar: é o refinamento da ação! Trata especificamente do problema próprio aos limites, isto é, cruzá-los ou respeitá-los? Precisamos entender quando a vida pede um ou outro, não há limite dado, há autoconhecimento e autodisciplina. O conhecimento testa limites colocando-os e ultrapassando-os. O corpo é uma superfície dinâmica, ora expandindo, ora retraindo. A Prudência põe à prova um limite que se quer ultrapassar e a Ousadia põe à prova um novo limite que se quer colocar. É simples quando percebemos que todos os limites são artificiais.
“Eu ataco primeiro” é, segundo Guimarães Rosa, a filosofia da serpente. Ela é uma fusão entre o leão, que mata os próprios filhos por excesso de prudência, e a raposa, que se torna objeto de caça por excesso de sagacidade. A serpente, um dos animais de Zaratustra, sabe que não pode esperar muito, ela encontra a segurança na insegurança. Em sua pequenez e fragilidade ela aguarda o momento oportuno, fica à espreita, ataca rapidamente e injeta o veneno que termina por imobilizar a vítima. A serpente encontra a segurança na insegurança, a ousadia na prudência.
Politicamente, somos pouco prudentes e pouco ousados. Conhecemos pouco e, consequentemente, agimos pouco. Não encontramos nossos limites, pois sequer os colocamos e, muitas vezes, o que é pior ainda, estes limites são estabelecidos de fora. Este é o resultado direto de encontrarmos nosso corpo social tão afetado de medo, esperança e ódio. Somos impotentes demais para ousar! A ousadia requer a potência de um corpo prudente. Para desobedecer, é preciso se organizar; para pensar diferentemente, é preciso ser diferença, devir-minoritário. A serpente não ataca se não houver veneno para injetar, se não reconhecer sua fraqueza e nela descobrir sua força.
A ousadia é um afeto fundamental para trilharmos outros caminhos, mas estamos longe de colocá-la em prática no campo político. Estamos presos à passividade reivindicativa de ir às ruas pedindo direitos. Impossível não cair em um ressentimento desta forma. Somamos as nossas vozes imprudentemente em gritos de guerra, sem produzir efeito algum, pois ainda não descobrimos de fato as nossas vozes: ignoramos os diversos timbres. Só haverá decepção enquanto procurarmos um comum onde as diferenças se conciliem, uma dialética da multiplicidade – bate na madeira. Toc Toc!
A busca pela saída começa pelo conhecimento do terreno. Sejamos prudentes antes de ousados. Precisamos impedir que imaginem por nós. Segundo a proposição com que iniciamos o texto, há um esforço para que tornemos realidade a alegria imaginada, mas não há um esforço em imaginar com cuidado, melhor, em pensar com cautela. Nossa ousadia se resume em cuspir veneno, destilar nossas ideias e dirigi-las a qualquer alvo tornado público. A ousadia sem a prudência é o famoso tiro no pé.
Republicou isso em Leveza & Esperançae comentado:
Lendo isso para evitar o famoso “tiro-no-pé”!