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Arte da relação cotidiana do indivíduo com o próprio corpo”

– Foucault, Uso dos Prazeres, p. 115

A diferença entre um cuidado de si e uma interdição dos prazeres está próxima da diferença entre ética e moral. Sim, mais importante que encaixar o sujeito dentro de uma forma, de um modo de vida codificado, os gregos estavam mais preocupados em dar à vida um conteúdo estético.

Por isso é impossível falarmos de condutas anormais ou patológicas. A maneira mais adequada de olhar para estas práticas é como um “uso dos prazeres”, as condições favoráveis ou desfavoráveis para sua prática. Nosso ponto de interesse então será o corpo. De que maneira os prazeres servem para potencializar o corpo e consequentemente a vida? Perguntamos à maneira de Nietzsche: qual o valor dos prazeres?

A preocupação era muito mais dietética do que terapêutica: questão de regime, visando regular uma atividade reconhecida como importante para  saúde. A problematização médica do comportamento sexual fez-se menos a partir dos cuidados com a eliminação de suas formas patológicas do que a partir da vontade de integrá-los melhor possível à gestão da saúde e à vida do corpo”

– Foucault, Uso dos Prazeres, p. 126

A medicina está bem próxima do cuidado de si ao propor um regime racional para o corpo, para aumentar e manter sua saúde. O regime procura assegurar uma autonomia, criando um corpo forte. Afinal, uma existência saudável precisa ser acompanhada de uma prática racional e refletida de si mesmo. Sempre com o intuito de armar-se, fortalecer-se para a vida. Os gregos tinham como pressuposto estarem sempre preparados, para saber exatamente o que fazer no momento adequado.

O corpo pode ser muito frágil ou muito resistente dependendo das substâncias que ingere, e quando faz isso. Tudo se encontra na relação que mantemos com a comida, os exercícios, o sono, o sexo. Esta atenção é permanente, cada gesto, cada lugar, cada comida precisa ser cuidadosamente analisada para que os encontros não prejudiquem a saúde do corpo.

Nasce assim toda uma forma de vida que gira em torno do regime. Nele certas condutas são estabelecidas tanto para a conservação quanto para aumentar a força. Da mesma forma que o conatus, para Espinosa, o regime procura conservar e ampliar a dinâmica das forças que constituem um indivíduo.

No regime, dá-se uma medida, encontra-se uma maneira de moderar o corpo. O essencial é encontrar um ponto, uma razão pela qual o corpo se conduz. A dietética era para os gregos uma forma de vida, ela se realizava nos mais variados campos: exercícios, alimentação, bebidas, sonos e, claro, relações sexuais. Seu nível de detalhamento pode chegar a níveis altíssimos, sempre tendo em via a integração mente e corpo, encontrando as devidas proporções entre nós e o mundo.

A dieta não tem por finalidade conduzir a vida o mais longe possível no tempo, nem o mais alto possível no desempenho, mas torná-la útil e feliz nos limites que e foram fixados. Ela também não deve propor-se a fixar de uma vez por todas as condições de uma existência”

– Foucault, Uso dos Prazeres, p. 133

Para que um regime seja bom, seja considerável saudável, ele precisa dar ao homem a capacidade de agir nas mais variadas situações. A utilidade direta do regime é possibilitar ao homem que a ele se submete enfrentar todas as dificuldades que a vida possa lhe oferecer.

Armar o indivíduo para a multiplicidade das circunstâncias possíveis”

– Foucault, Uso dos Prazeres, p. 133

Jean-Leon Gerome – Greek Interior

Tendo se preparado, o homem pode reagir quase de imediatamente e convenientemente às mais diferentes situações. Seu corpo está preparado, então, sua mente também está. De maneira quase reflexa ele pode resolver problemas que aparecem, porque antes submeteu seu corpo de modo a torná-lo apto.

Por isso a dietética, explica Foucault, não é uma submissão, é uma ampliação da capacidade de sentir e agir do corpo. As regras do regime dão mais força ao corpo. Elas não são, de modo algum, uma renúncia de si, muito menos um conjunto de regras rígidas às quais devemos seguir sem questionar. Cada regime será pensado para cada corpo em sua singularidade.

Para isso os gregos delimitavam lugares, momentos, idades, estações do ano, para entenderem quando e de que maneiras os prazeres deveriam ser buscados:

No inverno, carne assada é melhor que cozida, é importante praticar exercícios físicos e relações sexuais. Os banhos devem ser frios depois de correr, mas quentes após qualquer outra prática. No verão, deve-se praticar poucas relações sexuais, comer legumes, beber vinhos leves e diminuir os exercícios.

A estética é uma construção corporal, pintura fisiológica! Os gregos cresciam conforme aplicavam sobre si mesmos um conjunto de técnicas, tudo dentro do estimulado e desestimulado, tudo levando em conta o encontro dos corpos em suas mais variadas diferenças.

O regime não tem que fixar quantidades e nem determinar ritmos: ele deve negociar, em relações em que só se pode definir os caracteres globais, modificações qualitativas e os reajustamentos que se tornam necessários”

– Foucault, Uso dos Prazeres, p. 146

Tudo se dá no meio, na superfície, nos encontros. Quando o encontro passa do que convém, quando ele extenua e enfraquece? É aí que a dietética deve afirmar sua medida, no ponto de intersecção entre o indivíduo e o mundo.

Esta afirmação vale no mesmo grau e na mesma qualidade para os atos sexuais. A abstinência sexual era pregada e necessária quando os prazeres sexuais de alguma forma prejudicariam o indivíduo como um todo. A própria violência com que os prazeres sexuais se afirmavam no corpo do indivíduo já era indício forte o bastante para deixarem os gregos desconfiados. Não há condenação prévia, mas prudência.

Os atos sexuais devem, portanto, ser submetidos a um regime extremamente cauteloso. Mas esse regime é bem diferente daquilo que poderia ser um sistema prescritivo que procurasse definir uma forma ‘natural’, legítima e aceitável das práticas”

– Foucault, Cuidado de Si, p. 127

Dentro deste esquema podemos pensar em quatro variáveis: o momento correto para o ato, que já vimos no chrésis, qual o melhor momento, levando em conta a fertilidade, caso se queira ou não ter filhos; época, horário para que a relação sexual não prejudique o sujeito; a idade, começar cedo demais ou continuar com idade avançada, antes da criança entrar na puberdade é acelerar um processo natural que tem seu tempo de maturação e em idade já avançada também pode ser prejudicial; o temperamento individual, levando em conta que cada corpo é um corpo.

O desejo sexual está inserido na natureza, então não pode ser condenado nem deve ser suprimido. A natureza impera e os gregos procuraram refletir sobre a melhor maneira de inserção dos prazeres na vida do ser humano para constitui-lo de maneira saudável e potente. Não há uma patologização, mas uma preocupação verdadeira com os excessos, os dispêndios, os maus-encontros. O desejo não deve ser purificado, mas bem vivido.

Ele não tem que reencontrar o curso obscuro do desejo dentro dele; ele tem que reconhecer as numerosas e complexas condições que devem estar reunidas para realizar de maneira conveniente, sem perigo nem dano, os atos de prazer”

– Foucault, Cuidado de Si, p. 145

Com os gregos, temas que seriam considerados no futuro como tabu eram tratados normalmente, tendo em vista um conjunto de técnicas para a melhor constituição do sujeito. Fazer da vida uma obra e arte, onde o corpo é a tela onde se dará todo o trabalho do artista. A dieta toma o corpo como domínio privilegiado para a formação ética do sujeito.

O hábil e prudente guia de si mesmo, apto à conjecturar como convém sobre a medida e o momento”

– Foucault, Uso dos Prazeres, p. 175

Texto da Série:

Cuidado de Si

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Maria Helena
Maria Helena
6 anos atrás

Rafael Trindade, grata pelos seus escritos, eles ajudam muito a compreender melhor os escritos desses autores tão potentes, mas que as vezes tem uma leitura um pouco difícil!

Ana Luz
Ana Luz
2 anos atrás

Agradecida por ter encontrado tão importante leitura para meu entendimento de Foucault. Obrigada e parabéns pela escrita tão bem feita e de fácil entendimento.