Onde estão os maiores perigos? – Na compaixão”
– Nietzsche, A Gaia Ciência, §271
O que significa compaixão? É mais que um simples sentimento de pena, de dó; podemos defini-lo como um pesar, uma dor que vem do fundo da alma ao observar, entrar em contato, com a dor alheia. Sinônimo de comiseração, a compaixão é um sentimento que nos coloca em relação com o outro, onde o sofrimento do outro sobe à superfície, para o primeiro plano, nos tomando por completo. A compaixão significa sofrer com o outro, sofrer-com, é a implicação de nosso corpo na impotência alheia.
A compaixão, na medida em que produz sofrimento – e aqui este será nosso ponto de vista -, é uma fraqueza, como todo abandono a um afeto que prejudica. Ela faz crescer o sofrimento do mundo“
– Nietzsche, Aurora, §134
Comecemos pela última frase, a compaixão faz crescer o sofrimento do mundo… algo de muito sério está contido nesta frase. Este é um afeto (bio)político cristão por excelência, e circula por séculos e séculos entre nós sem chamar atenção para si. A doutrina cristã fez dele um dos principais afetos e instituiu um modo de vida que gira em torno dele juntamente com outros agregados: humildade, paciência, mansidão, obediência… isso lembra alguma coisa, não é? “Bem-aventurados os pobres por espírito… os que choram, os que têm fome…”.
Nossa pergunta nesta série é sempre a mesma: quais afetos circulam? E por quê? São sintoma de força ou de fraqueza? Passam pelo crivo do Eterno Retorno? A compaixão de Deus por nós, pecadores, o enternecimento de uns pelos outros, nesta terra contaminada pelo pecado certamente institui uma maneira de viver. Se o mundo está todo errado, de ponta cabeça, resta-nos ao menos a compaixão, “soframos juntos! Não há saída, não há escapatória!“.
O cristianismo é chamado de religião da compaixão. – A compaixão se opõe aos afetos tônicos, que elevam a energia do sentimento de vida: ela tem efeito depressivo. O indivíduo perde força ao compadecer-se”
– Nietzsche, O Anticristo, §7
Tônus é força, aquilo que se distingue; a sílaba tônica, por exemplo, é a mais forte da palavra; a tônica na música é a nota mais forte, dentro da qual gira toda a harmonia. A compaixão, dirá Nietzsche, é um afeto que nasce da fraqueza, da dor, uma patologia, e portanto está distante de outros afetos que nascem da força, da conquista. A compaixão é uma dissonância, mas para Schopenhauer, ela é a base de toda moral.
O que pode mover os bons atos, a obra de amor, é sempre e tão-somente o conhecimento do sofrimento alheio, compreensível imediatamente a partir do próprio sofrimento e posto no mesmo patamar deste. Daí, no entanto, segue-se o seguinte: o amor puro, em conformidade com sua natureza, é compaixão”
– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação, Tomo IV, §67
Schopenhauer traz a compaixão como algo essencial para a moral. Ele busca a base de sua doutrina na importância do reconhecimento do sofrimento alheio. Grande influência do cristianismo, claro, mas principalmente do budismo onde o sofrimento que Buda encontrou quando saiu de seu castelo foi o que o levou a querer buscar a iluminação. Na compaixão, doamos aquilo que há de mais importante para nós: nós mesmos. Este afeto nos permite levantar o Véu de Maia, enxergar para além das ilusões dos fenômenos e ver através dos sofrimentos individuais. Tudo é um, “Isto és tu”, dizem os Upanixades, todo sofrimento é o mesmo sofrimento, toda criatura é a mesma criatura. Na compaixão, diz Schopenhauer acompanhado pelo budismo, alcançamos o núcleo do ser, apenas ela nos permite agir de maneira desprendida.
Se medirmos a compaixão pelo valor das reações que costuma despertar, seu caráter vitalmente perigoso surge numa luz ainda mais clara”
– Nietzsche, O Anticristo, §7
Será que este compadecimento tende a encerrar, a diminuir a dor ou a mantê-la? Aqueles cujos atos estão tomados pela compaixão são capazes de findar com a dor ou apenas a multiplicam? Em um primeiro momento, podemos dizer que a compaixão multiplica as dores do mundo, traz uma mistura de angústia, culpa, sofrimento, ou simplesmente dó, para aquele que não se sentia assim antes de entrar em contato com a dor alheia.
Se o dinheiro circula em nossa sociedade, se fazemos gráficos e tabelas para ele, temos o mesmo a dizer para os afetos! Eles são trocados, se multiplicam, são convertidos, geram acúmulos! Bancos de tristeza, poupanças com rendimento percentual para o ressentimento, créditos de medo. Afetos são parte da política, eles são parte da pólis. O mesmo vale para a vida, não suprimimos afetos sem gerar outros! Afetos são parte de nossa natureza, poderíamos até dizer que é possível uma ciência dos afetos.
Sendo assim, precisamos entender que afetos circulam entre nós, com que frequência e força, da mesma forma que diferentes moedas. Um câmbio de afetos, uma bolsa de valores de afetos! Quais estimulam e quais deterioram a vida? Se afirmamos que é possível conhecer os afetos, então precisamos entender qual proximidade de cada um é a mais saudável.
Nietzsche é um dos maiores detratores da compaixão, para ele, este afeto é um dos mais nocivos que existem. A compaixão debilita, dirá ele repetidas vezes até seu último livro. A consequência de tanto choro e ranger de dentes disseminados pelo cristianismo é a profunda desconfiança da felicidade alheia: “algo deve estar errado, por que existem pessoas tão felizes?“. Uma profunda desconfiança, consequentemente, da própria vida em si. “A vida tem algo de errado”, dirá ele consternado, “as coisas não deveriam ser assim”.
O grande risco, dirá repetidamente Nietzsche, é que os fracos contaminem os fortes. A felicidade não deve ser contaminada pela dor e pelo sofrimento. Não precisa ignorá-la, claro, mas não pode ser debilitada por ela. É possível uma atitude para com os outros sem necessariamente deixar-se levar pela dor, sem descer ao seu nível, sem necessariamente ser tomado por ela, mas a compaixão nos arrasta para caminhos diferentes.
A compaixão está próxima de outros afetos (bio)políticos tristes porque parte de um princípio de desequilíbrio, de um Senhor que possuiria o poder e um Escravo que depende da boa-vontade do Senhor para chegar ao dia seguinte. A compaixão pede esmolas, a potência abre caminhos mais criativos. Entre o domínio da piedade e a maestria da alegria há uma distância imensa. O olhar triste nos comove, a autossuperação admira.
O infeliz obtém uma espécie de prazer com o sentimento de superioridade que a demonstração de compaixão lhe traz à consciência; sua imaginação se exalta, ele é ainda importante o suficiente para causar dores ao mundo“
– Nietzsche, Humano Demasiado Humano, §50
Qual o último recurso daquele que não possui mais nada? O que pode aquele que não pode? Ora, causar pena nos outros… O ressentimento enfraquecendo os outros à sua volta, levando-os para o mesmo caminho, tornando-os doentes também, tragando-os para dentro de seu sofrimento. A fraqueza criando mais fraqueza! Como? Fazendo os saudáveis envergonharem-se de sua saúde, se dobrarem ao peso do ressentimento e da má-consciência.
A capacidade de causar compaixão é a habilidade de fazer o outro sentir pena de você. Um tom de voz, um olhar, um determinado tipo de movimento. Um afeto como ferramenta para sobrevivência. Fazer o outro sofrer para te ajudar pode tornar-se um meio de vida. A maldade não visa a dor do outro em si, mas seu próprio prazer. É a revanche que os inferiores possuem contra aqueles que detém mais força.
Perguntemos a nós mesmos se os eloquentes gemidos e queixumes, se a ostentação da infelicidade não tem o objetivo, no fundo, de causar dor nos espectadores: a compaixão que eles então expressam é um consolo para os fracos e sofredores, na medida em que estes percebem ter ao menos um poder ainda, apesar de toda a sua fraqueza: o poder de causar dor“
– Nietzsche, Humano Demasiado Humano, §50
Por força, é sempre preciso deixar claro, não queremos dizer que os ricos são superiores aos pobres, isso seria uma afirmação estapafúrdia. Os afetos são (bio)políticos e não escolhem renda, local, gênero; eles circulam como modos de vida, maneiras de afetar e ser afetado. Podemos sentir compaixão pelos ricos também, quem disse que eles não se utilizam desta artimanha também? A estratégia de causar remorso nos outros pode vir de qualquer lugar. O escravo é um tipo, uma constituição que falhou, que virou seus instintos contra si mesmo, eles andam com suas feridas abertas, à mostra, para todos verem, “olhem o que fizeram comigo!“. O fraco faz crescer os ramos da compaixão descendo cada vez mais suas raízes na crueldade e na vingança!
Espinosa chama este afeto, em sua Ética, de comiseração:
A comiseração é uma tristeza acompanhada da ideia de um mal que atingiu um outro que imaginamos ser nosso semelhante” – Espinosa, Ética III, Definição dos Afetos 18
A comiseração é efeito de uma tristeza… ela é a visão de algo que amamos ou que nos é semelhante sendo afetado pela dor, e somos afetados por ela. Portanto, o que há é uma diminuição do conatus! Mau é aquilo que diminui nossa potência de agir, então devemos concluir que a compaixão só pode ser um afeto triste, que nos leva a agir de maneira servil. Na compaixão ainda nos comportamos como escravos e espalhamos aos quatro ventos esta maneira de existir, como se fosse a única.
A comiseração, no homem que vive sob a condução da razão é, em si, má e inútil” – Espinosa, Ética IV, prop.50
O homem virtuoso não faz o bem por comiseração, o faz apenas na medida em que compreende que aquilo é de sua natureza e está dentro de suas capacidades, ele age dentro de sua coerência e moderação sabendo que está indo ao limite de si. Como não é tocado pela compaixão, não corre o risco de fazer algo por impulso, algo de que se arrependeria depois, não venderá tudo o que tem para seguir um messias qualquer que promete céu na terra ou em outra vida.
Disso se segue que o homem que vive pelo ditame da razão se esforça, tanto quanto pode, por não ser tocado pela comiseração” – Espinosa, Ética IV, prop. 50, corolário
Ora, Espinosa sabia o quanto a compaixão pode enfraquecer o homem, e propõe remédios para prevenir-se deste afeto. A comiseração é a dor que nos leva a agir de maneira insensata, nos leva a agir por desespero, angústia, aflição. É toda uma ciranda de pequenas tristezas que começa a ser composta quando os primeiros compassos são ditados pela compaixão.
Mas e a dor? Ela não deve ser ignorada, já dissemos, mas também não deve trazer pena! É preciso pensar os afetos para além da saúde e da doença! A dor não é argumento contra a vida. Sabemos que os afetos são naturais, que são fruto de um corpo que vive e se relaciona com outros, mas queremos o fim de uma sociedade que faz circular a compaixão como uma de suas principais moedas, porque ela gera a incoerência, a imoderação!
Queremos uma afeto (bio)político que não nos enfraqueça em face da dor alheia, em face do sofrimento do outro. Isso, de modo algum significa um desprezo à pobreza, à amargura, à desigualdade. Não nos tornamos insensíveis! O que procuramos é uma política que não se sustente com afetos de culpa, ressentimento, medo, ódio. Aonde chegaríamos com estes sentimentos? Nada de bom pode advir da tristeza bem intencionada! Agir pela compaixão é ser movido pela impotência. Então perguntamos: por qual afeto ela poderia ser substituída? Onde está a política que em seu excesso de alegria torna os outros mais fortes? Ainda não encontramos esta política, mas procuramos construí-la diariamente, micropoliticamente.
Nada é tão pouco sadio, em meio à nossa pouco sadia modernidade, como a compaixão cristã. Ser médico nisso, ser implacável nisso, nisso manejar o bisturi – eis algo que diz respeito a nós, é a nossa espécie de amor ao próximo, dessa maneira é que somos filósofos, nós, hiperbóreos”
– Nietzsche, O Anticristo, §7
Devemos ter cuidado dobrado quando tratamos da compaixão como afeto (bio)político. Devemos sempre pensar: foi a tristeza ou a alegria que me motivou a vir até aqui? Um excesso ou uma falta me levaram a agir desta maneira? Uma alegria ou uma tristeza? Esta pergunta é capaz de pesar o valor dos nossos valores, e possivelmente transvalorá-los (veja aqui). A compaixão é uma prática do niilismo passivo porque não suporta a dor, não dá conta de uma realidade que em muito nos excede. A compaixão impede que a vida morra, mas também impossibilita que ela cresça!
Compadecer-se é não dar conta de sustentar sua própria dor e a dor alheia, é tomá-la como um erro. Por isso a autopiedade é o fim cristão! Esta incapacidade moderna de sentir dor nos impede de crescer, podemos lembrar claramente o “que não me mata me fortalece” do Crepúsculo dos Ídolos. A dor, usada da maneira correta, é um alargamento da alma, uma possibilidade de encontrar novos estados de existência. Aprendamos a usá-la corretamente em vez de procurar saná-la desesperadamente! Se não aceitarmos a dor como parte integrante da vida, não conseguiremos jamais sair de um estado de compadecimento mútuo, letargia pública. Já estamos fartos da fraqueza que se perpetua diariamente por pesar ou pena…
E aqui, por mais óbvio que seja, é necessário um esclarecimento. Não somos, Nietzsche tampouco, evolucionistas, nazistas, higienistas e muito menos apologistas de campos de concentração ou internações compulsórias. Nós denunciamos uma sociedade anêmica, debilitada pela incapacidade de suportar a dor, pela languidez do compadecimento. A compaixão mantém a fraqueza viva, em vez de lhe transmutar em força! Nosso grito será sempre por potência, e a compaixão segue os caminhos do poder. Toda a questão está aqui: o amor pela vida forte pede para que ela passe por certas circunstâncias.
Uma sociedade que se compadece e se entorpece para não sentir mais nada, que se fecha por não suportar certos desconfortos está fadada a replicar afetos lânguidos, tristes. Nem piedade e muito menos autopiedade, estas são as receitas para a fraqueza e a morbidez. Uma política para além da compaixão e da tristeza pede para que encontremos afetos tônicos, fortes, resistentes, que não procure simplesmente cessar a dor! De um lado há um transbordamento que exige dor, mas traz alegria e potência, esta está blindada para compaixão; do outro existe uma falta ontológica que procura tapar buracos, esconder-se, cessar a dor, vive esmorecida e embotada, esta foi contaminada pela compaixão, vive condoída. Quais afetos (bio)políticos queremos?
Ótimas reflexões. Compreendo quando a compaixão é utilizada como manipulação religiosa e arriscaria dizer, que muitas vezes, se esconde atrás de um complexo de superioridade. Ainda prefiro a empatia, que é a compreensão de que faz parte da humanidade momentos de vulnerabilidade, fraqueza e levar em conta as referências de “força” que cada um vivencia em suas experiências. Ainda creio que ninguém é forte sozinho, necessitamos de uma rede de apoio. Se eu eu colocar o outro sempre em posição de fraqueza escondo dele seus referenciais de força. Você escreve e argumenta muito bem, gostei, só refletiria sobre a constância… Ler mais >
Tive uma percepção semelhante Gisele… apesar do retrato nos parágrafos finais, parece que o “forte” exposto do texto não suporta a dor. O empático, diferentemente do compadecido, compreende a dor do outro, mas esta não lhe afeta da mesma maneira porque ele não sofre nesse processo. O empático respeita as referências de força do próximo e respeita a si mesmo, ao compreender sem sofrer. Seria esse o afeto biopolítico que nos falta?
Genial ! Absolutamente genial !! Genial ‘par excellence’ !!! Seus textos sempre são maravilhosos, mas este aqui está acima do esplêndido, nem tenho palavras para definir a POTÊNCIA deste texto magnifico. Não vou nem refletir ou filosofar no meu comentário, pois sinto-me como se você já tivesse feito um trabalho completo. Este texto aqui é um martelo de um material muito duro, feito para aniquilar o que é mole e impotente, e o mole da vez foi o valor da ‘compaixão’; você armou uma grande ferramenta de transvaloração da compaixão. Belíssimo trabalho; uma obra prima. Sua capacidade de citar autores… Ler mais >
Tenho gostado muito das tuas reflexões Rafael, muito obrigada! Você conhece essa:
Ԥ 264
A compaixão é muitas vezes sentir nossos próprios males nos males dos outros. É uma previsão hábil das desgraças em que podemos cair; socorremos os outros para empenhá-los a nos socorrer em semelhantes ocasiões; e os serviços que lhes prestamos são, propriamente falando, benefícios que nos outorgamos a nós mesmos por antecipação.”
LA ROCHEFOUCAULD, François de. Máximas e Reflexões. São Paulo: Escala, 2007.
Como a própria palavra diz, compaixão quer dizer sentir com o outro. Sofrer com o outro. Ora. No meu entendimento, sofrer, sentir com o outro não leva a paralisia ou inércia. Não leva necessariamente a passividade ou mesmo a culpa. A compaixão pode abrir estados de consciência mais amplos, onde, saindo de mim, me percebo também na realidades de outros! Tal amplitude de consciência me permite querer agir para além das minhas circunstâncias. Agir para um estado de realidade que englobe os outros para além de mim! Acredito na potência por trás da compaixão! Temos, no meu entender, mais chance… Ler mais >
Oi. Rafael. O seu texto me ajudou a refletir algumas coisas sobre a tese. Queria citá-lo, mas não encontrei a data. da publicação. Como faço?
Amigos , em uma opinião de cognição rarefeita , vi várias opiniões aqui sobre o conceito COMPAIXÃO que se confundem com o conceito EMPATIA .. Os conceitos são afins , mas diametralmente opostos. Com efeito , “… tenho dó de vc , mas ….”
Creio que o uso de apenas dois autores para assumir a compaixão como um afeto negativo, sem explicitar claramente a possibilidade de vivê-la em sua face de solidariedade, de empatia, de corresponsabilidade pela busca da solução do problema vivido me parece limitante da análise realizada. Definições outras e formas de vivê-las poderiam enriquecer sua análise.
É de enrijecer os mamilos: Que tesão de texto! Parabéns e muito obrigado.
Infelizmente, sou doente de compaixão.
Excelente abordagem sobre a compaixão em Nietzsche. Felicidade.