Pairando sobre o solo Disciplinar de nossas sociedades há o Controle. Apenas duas maneiras de se exercer o poder, mas grandes mecanismos de dissociação do Corpo e sua Potência. No século XX, o ser humano demonstrou ser um exímio produtor de técnicas de dominação, estamos impressionados. O poder corre solto, a potência anda às pressas com medo de ser assaltada. Se ficar a Disciplina marca, se correr o Controle captura. Poderíamos dizer, então, que estamos em crise. Mas aparentemente esta palavra também foi capturada. Já vivemos em crise há algumas décadas. É hora de suspeitar: Sociedade em Crise? Quem o diz?
Às nossas anciãs instituições de educação, saúde, prisão somam-se agora também os bancos, a mídia, a publicidade. Toda instituição já nasce velha. A própria República, esta jovem senhora, anda curvada – executa dores, legisla misérias e julga besteiras. Três poderes podres para muitos tigres tristes – as empresas tomaram conta do Estado. A democracia passa longe – a representação já não serve nem de ilusão. E os economistas a gritar: “Crise!”. Se nossa crise fosse financeira, estaríamos bem mais contentes. A verdadeira catástrofe é existencial.
Não vamos reivindicar a palavra Crise. Sua potência foi capturada. Ela anda na boca das reacionários, é cuspida ao chão pelos donos da mídia, é baba raivosa das nossas oligarquias. Crise é, sim, dos Bancos. As árvores no quintal vão muito bem, obrigado. O que queremos dizer é que é preciso pensar para além da Axiomática do Capital, pois eles falam em Crise e continuam com lucros recordes. É preciso dispor de novos conceitos. Negri&Hardt em Império, falam de Oni-Crise. É exatamente isso. A crise global como um estado perpétuo. Que significa? A crise, não como um estado de passagem, mas como um discurso. A quem interessa?
“Atualmente, é cada vez mais difícil para os ideólogos dos Estados Unidos nomear o inimigo, ou melhor: parece que há, em todos os lugares, inimigos menores e imperceptíveis. O fim da crise da modernidade engendrou uma proliferação de crises menores e mal definidas na sociedade imperial de controle, ou como preferimos dizer, gerou uma Oni-Crise“
– Michael Hardt, A Sociedade Mundial de Controle
Sociedade em Crise nos diz sobre um modo de funcionamento da nossa sociedade, que não está em crise “apesar de”, mas que vive em crise porque nela funda a legitimidade de suas ações. O livro “Aos Nossos Amigos” do grupo anônimo autodenominado Comitê Invisível é, como dizem os autores, uma pequena peça de uma inteligência partilhada da situação. Ele funciona na base mais interessante do pensamento filosófico, que, apesar das academias o professarem, não é a pesquisa científica, mas a atualização do pensamento. É preciso utilizar os conceitos! É preciso tomar de assalto as ideias dos velhos livros. Atualizar o pensamento é fazer a filosofia respirar, dar novos ares à velhas ideias.
Assim, pensamos a ideia de crise como mais uma forma pela qual o poder se exerce em nossas sociedades. A crise produz um tipo de névoa, na medida em que altera nosso ambiente tirando-nos a visão. Em meio a profusão cotidiana de informações, perdemos a precisão de nossas análises. Além da memória, acabamos com a vista curta. Vivemos este cotidiano de exceção aos sobressaltos, como diz Eliane Brum. Um absurdo a mais, um a menos, já nem vemos a diferença. A crise apodrece os pensamentos.
“Ao adotar a gestão da crise como técnica de governo, o capital não se limitou apenas a substituir o culto do progresso pela chantagem da catástrofe, ele quis reservar para si a inteligência estratégica do presente, a visão de conjunto sobre as operações em curso. E isto que é importante disputar com ele. Trata-se, em matéria de estratégia, de voltarmos a estar dois passos à frente em relação à governança global. Não há “crise” da qual é preciso sair. Há uma guerra que precisamos ganhar”
– Comitê Invisível, Aos Nossos Amigos
“Nós, os revolucionários, somos os grandes cornos da história”. Acreditávamos na crise. Tínhamos fé na potência da crise. Nem percebemos que aos poucos a crise foi se tornando cada vez mais uma peça-chave do arsenal neo-liberal. Uma arma ideológica que dispara projéteis de medo em cápsulas de insegurança. Nem percebemos o sorriso contido no canto da boca dos nossos ministros ao anunciar “reformas necessárias”. Merry Crisis and Happy New Fear! – começa o calendário de mais um ano de espoliação.
Hoje as crises são experimentos. Já devíamos ter percebido há pelo menos 40 anos, quando o golpe ao estado chileno instaurava um inédito regime neoliberal. Estamos atrasados. Não podemos mais crer na crise. Vamos morrer esperando a revolução? Cada crise será o grande sinal do fim do mundo? Não podemos mais ser tão inocentes. É melhor deixar o lado profético do marxismo para trás. As crises cíclicas do capital, movidas pela exposição cada vez maior das suas contradições, não se mostraram suficientes para a tomada de consciência das classes trabalhadoras. Marx conhecia a Disciplina, mas não o Controle, e não contava com a captura da ideia de Crise.
“É de conhecimento público que, em 2010, o recém-nomeado diretor do Instituto Grego de Estatísticas falsificou continuamente as contas da dívida do país, tornando-as mais graves e dando, assim, justificativas para a intervenção da Troika […]. Tratava-se ali, de experimentar, em escala real, num país europeu, o projeto neoliberal de reformulação completa de uma sociedade, os efeitos de uma boa política de ‘ajustamento estrutural'”
– Comitê Invisível, Aos Nossos Amigos
Vivemos uma guinada à direita em que os ventos mais conservadores são produzidos pela Crise. “O momento crítico costumava ser o momento da crítica. Hoje já não resta mais nada disso”. A crise funciona como uma permissão para as medidas mais hediondas e, por isso mesmo, ela é desencadeada propositalmente. “Agora, fala-se de crise a propósito daquilo que se pretende reestruturar”. Os períodos de crise são os momentos ideais para os golpes autoritários, para o sucateamento do equipamento público, para o lançamento de candidatos políticos. Em suma, a crise é a desculpa perfeita para que se instaurem fluxos ilegítimos (de capital, de influência, de poder, de informação). As guerras no oriente médio são bons exemplos disso.
As grandes empresas adoram as crises. Ela cria oportunidades, pede por inovação, convoca os empreendedores. É a sobrevivência dos mais fortes no mundo do Capital. Mas a crise se instaurou também dentro de nós. Ela cria subjetividade. Vivemos sob o conflito da produção. “O que estou fazendo da minha vida?”. Não ter carro, emprego, cartão de crédito pode levar-nos a loucura. É preciso resistir. Devemos lembrar a todo momento que a produção de capital é, por natureza, a mais desinteressante e triste. Toda a verdadeira intensidade se passa em outro lugar.
De nada adianta pensar em crise se não for para admitir que ela nunca irá embora. Crise presente, permanente e omnilateral. “Um final sem fim, apocalipse sustentável, suspensão indefinida, diferimento eficaz do afundamento coletivo, estado de exceção permanente”. Para nós, crise deve significar o governo cresce. Toda vez que esta palavra circula, há por trás uma grande intenção de captura, um mecanismo refinado de poder. A crise atual não leva a nada. Nossa Sociedade em Crise é, na verdade, sociedade da crise.
“A crise atual já não promete nada: ela tende, pelo contrário, a libertar quem governa de toda e qualquer contrariedade quanto aos meios aplicados”
– Comitê Invisível, Aos Nossos Amigos
Devemos desconfiar de perguntas que convocam heróis: “Quem poderá nos ajudar?”. A resposta é sempre pensada de antemão. É como uma promoção para vender um produto encalhado no estoque. A crise é por si só uma medida emergencial que apela a si mesma para colocar em marcha as forças mais abomináveis. Lembremos: não precisamos de ajuda, precisamos nos organizar. Em vez de temer as crises, precisamos viver em guerra. Devemos reestabelecer as bases da Sociedade, para que então possamos criar conceitos dignos desse nome.
Lembrou-me quando a polícia militar ficou em greve aqui no Espírito Santo e ouvi dizer que os próprios policiais cometeram atos ocultos para causar medo na população, por exemplo, assassinando “marginais” de dia e em público. A internet aumenta muito o caos também, quando teve a lama da Samarco que chegou aqui no ES o pessoal mandava áudios de ditos especialistas ou profissionais onde diziam informações falsas e causavam medo compartilhável…
Outra questão que lembrei foi em relação à crise hídrica (cidades próximas daqui ficaram dias sem receber água), à crise ecológica (a camada de ozônio esburacada, a Amazônia sendo incendiada) , esta sim eu acredito ser a derradeira crise da vida, perante a qual as crises econômicas e políticas não passam de artificialidades…
Sem dúvida. Fora a crise de subjetividade. Tem uma série sobre isso aqui no site.
Obrigado pelos acréscimos!
O livro chama-se Aos Nossos Amigos, nao crise e insurreicao. Esse subtitulo traducao herbet richars eh coisa da N-1. Acho que nao custa nada manter o titulo original, que conta na capa brasileira tb. Facilita buscar a referencia e nao avacalha o titulo com esse nome forcado
Verdade. Vamos mudar…
Mas o nome Crise e Insurreição não nos parece forçado, rs.
Amanhã vou dar aula sobre esse texto do comitê invisível e o necropolítica do Mbembe. Espero fazer uma articulação interessante. O site de vocês sempre sendo uma ferramenta com inúmeros fins. Deixo registrado o meu agradecimento…
Que legal, Adriano!
Espero que a aula tenha sido legal! 🙂
Abraços!