Vimos três formas sociais de dominação. Três conceitos que permitem um diagnóstico da nossa presente sociedade. Disciplina, Controle e Crise são maneiras distintas pelas quais se exerce o poder. Sabemos que todas elas estão entrelaçadas e, cotidianamente, interferem nas nossas relações. Mas sabemos também que elas não são as únicas, inúmeras são as formas de opressão, como inúmeras são as formas de resistência. O pensamento não pode dar conta de toda a variação, mas pode identificar quais são os processos predominantes, pode construir um mapa político. Essa cartografia é essencial para pensar a atualidade de nossas sociedades.
O ensaio “Sociedade do Cansaço” de Byung-Chul Han se estabelece como uma tangente às análises sociais de Foucault e Deleuze. Aproxima-se de ambos, mas não se deixa misturar. Cita ambos os autores, mas busca outras proposições. A discussão é essencialmente a mesma. Começa-se com uma análise das formas de violência atuais, ressaltando que vivemos numa sociedade que se afasta cada vez mais do esquema imunológico do dentro/fora, do inimigo, da disciplina. Muito próximo da ideia de Sociedade de Controle, onde a diferença é capturada, transformada em material exótico, atrativo para turistas. O problema deixou de ser o outro para tornar-se produção do mesmo. Como perpetuar a igualdade por sob a diferença? O Cansaço será o resultado de uma vida posta para trabalhar. Um estágio posterior ao adestramento do corpo e à captura dos desejos.
A violência em nossa sociedade é neuronal. Não se trata de eliminar a alteridade, mas de controlá-la a partir de dentro. Funciona como uma fábrica de subjetividade, já não é novidade… A negatividade da repressão se contrapõe a positividade de um poder produtor. Antes, segundo o esquema imunológico, a negatividade do outro era a prática de violência. O agente de Estado nega a negatividade do outro, reprimindo-o, marcando-o, encarcerando-o. Agora, segundo o esquema neuronal, a positividade é a prática de violência como resultado da superprodução, do superdesempenho, da supercomunicação. O poder é cada vez mais imanente, ele brota de modos de vida corrompidos. Assim, a violência não é privativa, mas saturante; não excludente, mas exaustiva.
Na era da Depressão, do TDAH, da hiperatividade, do Burnout, a violência só pode ser neuronal. Somos oprimidos a partir de dentro. Engolimos as demandas. Nos sentimos incapazes ou capazes de mais. Tristes ou felizes demais. Superaquecemos por um excesso de positividade! Não há saída para quem tem o mundo à disposição, como nós. Somos atingidos por bombas de imagens, sons, vídeos, anúncios, produtos. Temos o mundo ao alcance das mãos e nos nossos bolsos. Parece que não há mais espaço para criar mundos. Eles já estão todos aí com as devidas hashtags.
A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos de obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos”
– Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han, p.22
Desempenho é o nome da mais nova forma de dominação. As forças afirmativas foram novamente submetidas às negativas. Os novos Sacerdotes Ascéticos são os publicitários. O poder agora é capaz de submeter até o desejo transbordante: o excesso é de Nada. Consumir ou sumir? Nossa sociedade é a das academias fitness. Andamos sem sair do lugar… Produzimos em demasia, consumimos bobagens. Estamos, nós mesmos, na esteira da vida, como ratos em gaiolas. Vivendo em inércia. “O poder na Sociedade de Desempenho é o verbo modal passivo.” Yes, We Can. Substituímos a lei pela iniciativa, pela motivação. Tudo é questão de projeto. Ser é um projeto.
Se a Sociedade Disciplinar era uma sociedade do Não do poder, a do Desempenho é a do Sim, mas igualmente submetida. Se uma produz loucos e delinquentes, a outra produz deprimidos e fracassados. Quem não encontra a maneira adequada de produzir capital, produzir desejo, produzir pensamento vive à margem dessa sociedade. O Cansaço aparece como uma maneira de existir. Afinal, estamos todos um pouco exaustos, não é? Mas continuamos a trabalhar. Somos presas fáceis. Maximizar a produção, é o axioma que se instalou em nossas cabeças. Um inconsciente social. O mais triste é que o poder não cancela o dever. Cansados somos também disciplinados. Nada ficou para trás, ao contrário, somos formados por todo esse caldo entornado. O corpo se tornou esta vasilha onde nunca se chega à última gota.
O imperativo do Desempenho nos leva ao Cansaço. Não se vive bem sob essa pressão. Não é possível produzir para si sem produzir a si. Não se cria vida sem um pouco de resistência. Cuidar de si envolve negar, envolve um pouco de Não. Hoje, nós também adoecemos por falta de negação. Para falar em termos nietzschianos, nós adoecemos por dizer sim ao não. O último homem que anunciava Zaratustra está em vias de se realizar em massa. Aí está o animal trabalhador com suas depressõezinhas, ‘porque ninguém é de ferro’. A vida mais próxima do mínimo possível.
Por falta de repouso nossa civilização caminha para a barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto. Assim, pertence às correções necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento contemplativo”
– Nietzsche – Humano, Demasiado Humano
Numa Sociedade do Cansaço estamos sempre fadados a falhar. Se não com o trabalho, com a família. Se não com a família, com os amigos. Se não com os amigos, com os projetos pessoais. O lamento do depressivo, “não posso mais…”, só é possível numa sociedade que crê que nada é impossível. “Não-mais-poder leva a uma autoacusação destrutiva e a uma autoagressão”. O ócio é o pecado capital por excelência. O sujeito do desempenho encontra-se em guerra consigo mesmo. Produção irrefreada de nada ou improdução estagnada de má consciência.
O último homem, o sujeito do desempenho, está livre da dominação de seu senhor. Ele responde apenas a si mesmo. Ou melhor, ele é submisso a si mesmo. “Nós encontramos a felicidade” dizem os últimos homens em Zaratustra. Mal sabem eles que, ao contrário de qualquer possibilidade de tornarem-se Sábios, o que eles fizeram foi coincidir liberdade e coação. Uma fórmula tão cômica quanto paradoxal: ajo segundo minha própria vontade produzida por outros. Quem poderia imaginar tal ironia? Livre coerção = auto-exploração. Eis a fórmula mais eficaz que o nosso capitalismo foi capaz de inventar, pelo menos até agora. Muito mais eficaz do que a exploração do outro é a exploração de si mesmo.
Hoje o que mais se disputa é a atenção. “Olhe para mim por alguns segundo que seja. Um like serve, mas um compartilhamento é melhor“. Nossa cultura pede por um tipo de atenção dispersa, multitask. Todos são capazes de fazer qualquer coisa sem deixar de olhar para o celular. Não é à toa que o déficit de atenção é uma das patologias que mais vende remédio. É difícil se concentrar com uma geringonça apitando a cada 5 segundos no seu bolso. É difícil terminar de ver um programa na TV quando ela vocifera comerciais a cada 5 minutos na sua sala. O mais bizarro é como nos entendiamos. Nossa hiperatividade nos leva a um tédio insuportável quando escutamos uma música longa, quando ficamos ao sol, quando lemos uma poesia, quando escutamos alguém falar, quando cozinhamos.
Quem se entendia no andar e não tolera estar entediado, ficará andando a esmo inquieto, irá se debater ou se afundará nesta ou naquela atividade. Mas quem é tolerante com o tédio, depois de um tempo irá reconhecer que possivelmente é o próprio andar que o entendia. Assim, ele será impulsionado a procurar um movimento totalmente novo. […] Comparada com o andar linear, reto, a dança, com seus movimentos revoluteantes, é um luxo que foge totalmente do princípio do desempenho”
– Byung-Chul Han, Sociedade do Cansaço, p.35
Perdemos a presença. Só o demorar contemplativo tem acesso ao longo fôlego. Precisamos desacelerar. Precisamos cuspir a demanda. Recusar o óbvio. Não queremos uma promoção no trabalho, nem na loja. Queremos tempo para demorar-nos em coisas pequenas. Queremos criar histórias e viver boas horas sob o sol. Encontrar o meio-dia. Sentir o sabor da comida e rir sem pressa. Cézanne dizia: “A paisagem pensa em mim, eu sou sua consciência”. Devir requer atenção, requer estar à espreita. E a atenção, aquela que se atém ao que interessa, leva tempo, testa o tédio e desafia os relógios.
A vida se tornou tão transitória em nossas sociedades que realmente não conseguimos mais reter nossa atenção, mas o déficit é de vida… e reagimos com mais velocidade. Hiperatividade, histeria do trabalho, paranoia da produção. Precisamos reconstruir essa máquina e só podemos partir de nossos corpos. Precisamos reaprender a ver, a escutar, a falar, a pensar… Precisamos oferecer resistência aos estímulos. Reagir a qualquer impulso é o primeiro sinal da decadência. Falta de cultivo, falta de espírito.
A principal carência do homem ativo – Aos ativos falta usualmente a atividade superior […] e nesse sentido eles são preguiçosos. […] Os ativos rolam como rola a pedra, segundo a estupidez da mecânica”
– Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos
Para invertamos uma saída, dois afetos precisam ser substituídos, ou melhor, precisam atingir o ponto de ebulição. O Cansaço precisa se tornar Esgotamento. A Irritação precisa se tornar Ira! Ambos são interrupções do modo de funcionamento do corpo. São saídas eruptivas. Corpo tal qual Vulcão! A potência de efetuar encontros, de afetar e ser afetado de inúmeras maneiras é o que mais queremos (conatus). A impotência é o seu oposto, sabemos disso. Mas essa potência positiva deve brotar de uma potência de dizer Não. Uma potência negativa que não é oposta à potência, mas que se complementa a ela. Para criar valores é preciso saber dizer Não, tal como o Leão aprendeu. Saber dizer não depende de um dizer sim que subjaz, uma afirmação latente, por assim dizer. Negamos para afirmarmos melhor. Afirmar o que se compõe conosco, afirmar o que nos torna mais fortes, afirmar o que nos apropria, o que segue diretamente de nossa natureza. Do contrário, continuaremos marchando Cansados sob a canção do Desempenho.
O cansaço tem um coração amplo”
– Maurice Blanchot
Transformamo-nos em máquinas de desempenho. Precisamos recuperar um cansaço fundamental. Um estado onde ‘as presilhas da identidade se afrouxem’. Precisamos recuperar nossa capacidade de indeterminação. Precisamos transformar o corpo novamente numa zona heterogênea e permeável, flexível e articulável. Precisamos voltar a produzir afetos longamente esquecidos ou até mesmo nunca antes experimentados. Precisamos descobrir os “não-para” dos nossos corpos. Corpos-sem-órgãos. Nossas vidas não são para o trabalho… estranho precisar dizer coisas tão óbvias! Nossos sorrisos não são para a propaganda! Nossas peles não são para a cor! Nossos gêneros não são binários! Nossas sexualidades não são para a reprodução! Dessas descobertas depende o para-isso de nossos corpos. Temos um mundo novamente a inventar! Temos uma sociedade a desmontar! Temos um corpo novo a pensar!
Esse artigo remete-me imediatamente ao que dizia a Lacan a respeito da inversão do Super-eu: já não se trata mais de uma sociedade que reprime a espontaneidade do desejo, mas de uma sociedade que o solicita e o torna a sua Lei. Daí o paralelo com esse texto: o novo imperativo categórico consiste em dizer: goza! Não mais a interdição, mas a obrigação de gozar. Não se é mais culpado por desejar, mas por não desejar, por não seguir seus sonhos, por fracassar no empreendimento de si. Trata-se de uma captura do desejo.
Sim, Raony.
Faz todo sentido a aproximação …
Adorei seu texto, Rafael. Parabéns pela visão de um mundo real que nos leva a um prazer irreal!❤️
Rafael, tú é bom!
Agradecido! 🙂
Muito bom!
Mas muito angustiante tudo isso. Me vejo nesse tipo de mundo, imerso, infeliz sem nem saber o porquê. Custo a entender as transformações do mundo e como estou agindo dentro disso tudo, muitas vezes sendo levado pela correnteza…
Muito bom um texto assim que te faz parar, pensar e se questionar…
Rafael, ao ler seu texto, lembrei-me do título de um filme que vc não deve ter visto: “nunca te vi, sempre te amei” (se não viu, veja!) Minha irmã postou um texto sobre Han e o livro “A sociedade do cansaço”. Desconhecia a ambos. Só que o artigo tinha diversos erros de português e isso me exasperou um pouco. Daí fui atrás de outras referências e comentários sobre o filósofo coreano e me deparei o texto acima. Luminar, eu diria. Minha área é a Sociologia da Educação e meu “guru” é Pierre Bourdieu, que é aquele cara que desvenda mecanismos… Ler mais >
Não vi o filme, Ramires. Vou procurar.
Fiquei contente que o texto afetou ..
Muito obrigado!
Ai, não me chama pelo sobrenome não, que é muito formal. E meu apelido, vc pode ver pelo meu e-mail, é Lula, desde priscas eras! rs Vi agora que dá pra ver o filme, legendado, no YouTube. O título orginal é 84 Charing Cross Road, que é justamente onde estão as antigas livrarias de Londres, que vendem raridades que só se encontram lá mesmo. Qual é a tua formação? Abs, Lula
Excelente. Altamente elucidativo.
Que texto BOM, Rafael! Deu uma tristeza perceber o quanto estamos no piloto automático…A maternidade além de me trazer um cansaço físico, me faz pensar em tudo isso o tempo todo e o seu texto trouxe o embasamento filosófico que eu precisava para refletir ainda mais. Obrigada!
Que bom, Priscilla.
Procure o livrinho do autor, é bem rápido de ler.
Abraços!
Adorei teu texto.
Oih Rafael! Primeiramente, parabéns pelo texto! Vocês poderiam fazer um podcast com esse tema? Seria muuuuito legal!
Eu sou muito fã do trabalho de vocês e esse texto realmente me trouxe uma grande reflexão hoje, precisamos aprender a dizer não a esse mar de informações e exigências infinitas. Queria elogiar a escolha pelo trabalho do Emiliano Ponzi que não tenho palavras para descrever, dizer que é fantástico seria pouco.
Enfim, sucesso pra vocês e forte abraço pra toda a equipe do Razão Inadequada! *sensacional esse nome*
Oi Danielly,
Obrigado pelas palavras! 🙂
Um podcast com esse tema deve rolar, com certeza, num futuro próximo…
Ilustramos toda a série de monopolítica com o trabalho do Ponzi, realmente muito bom.
Valeu,
Abraços!
Muito bom o texto. De fato, a nova forma de dominação maior do capitalismo, pois não é a única, considerando que a coerção propriamente dita ainda coexiste (ressalva que faço) é muito mais efetiva que outrora, pois nós somos a todo momento nossas próprias fiscais, condicionadas por toda uma estrutura que grita que se não estivermos produzindo – para o capital – perdemos a nossa serventia, somos inúteis. Faço mais uma vez a ressalva de que não é um mecanismo sob o qual temos controle na lógica da sociedade capitalista, mas podemos e devemos nos mover, como fala o texto,… Ler mais >