Queimar, consumir-se, gastar-se, mas nunca economizar. Execrar a poupança”
– Michel Onfray, A Escultura de Si, p. 69
Para além de toda moral da adequação e submissão, nós encontramos outro modo de viver e de valorar, talvez por isso possamos nos intitular Razão Inadequada. Sendo assim, não diremos palavras ao vento nem carregaremos nossa ética como uma cruz! Sabemos diferenciar uma moral que se impõe de uma Ética que se constrói (veja aqui)! É preciso fazer desta uma atividade que se instala no real, para fazê-lo sua propriedade, seu campo de imanência. Temos Michel Onfray como nosso aliado nesta empreitada.
Instalar uma máquina ético-existencial consistente o bastante para não apelar para modelos transcendentes ou recompensadores/punitivos. Fazer da Ética um meio de excelência, distinção e multiplicador de diferenças! Pois bem, para isso precisamos torná-la dispendiosa! Sim, retirar do fluxo incessante, formas elegantes. Trata-se aqui de extrair do material bruto que somos nós um sentido, um estilo, uma obra, para além do bem e do mal, para além desta moral humana, demasiado humana. Trata-se aqui de aprender a recortar do excesso que é a vida uma ética para nós. Queremos distância da virtude embrutecedora do cristianismo e outros “ismos”… tão afamados, mas tão pouco práticos.
De um lado, o animal que estende seu território e percorre as regiões, do outro, o legume aparafusado ao lugar que o produziu. Eterno sedentário, ele desenvolve o orgulho da linhagem, da ascendência, um culto à árvore genealógica”
– Michel Onfray, A Escultura de Si, p. 107
A moral que nos ensinaram é a da contenção, do acúmulo, da reserva. Insuperável fase anal… tudo deve ser retido, regulado, controlado. Por quê? Aonde queremos chegar com nossos cofres cheios de ouro? O burguês vive como se não fosse morrer, ou melhor, como se nada devesse morrer. Seu sonho é mergulhar em uma piscina de moedas de ouro.
Já Onfray se coloca no extremo oposto desta prática e afirma um hedonismo dispendioso. Heráclito contra Parmênides, o Nômade contra o Sedentário! De um lado uma ética protestante da poupança atolada de cifrões; do outro, uma ética dispendiosa, execração do acúmulo, vontade de dar, de multiplicar, distribuir, até mesmo de desperdiçar.
Seja como for, nunca um sedentário descobrirá terras em outros lugares. É a tarefa dos nômades que vão e vêm, experimentam e vibram com a sua obra que praticam”
– Michel Onfray, A Escultura de Si, p. 110
Onfray propõe uma ética dispendiosa, como os grandes navegadores que saíram para ultrapassar o bojador; como os exploradores de cavernas que descobrem mundos subterrâneos em abismos de sombras; como os escaladores de montanhas que querem sempre subir mais alto para tocar o céu. Onde está a ética nestes atos? No fato de que a vida não se acumula, ela é um rio que corre para desembocar no mar. Não se vive submetido a diques e barragens, mas sim de corredeiras e cachoeiras! A vida é dispêndio, a vida é excesso que transborda. A ética de Onfray busca uma alegria na afirmação, um júbilo no ato de viver.
É preciso aprender a ser pródigo, aprender a dar, doar, ofertar. Ao menos criar as condições para isso! Somente o pródigo dá presentes, o rico faz negócios; somente o pródigo consegue distanciar-se de si, o rico está preso em uma cela apertada da qual não consegue escapar por maior que seja o número de zeros na sua conta bancária.
Procurar por uma ética dispendiosa é oferecer fragmentos de vivências que, como garrafas lançadas no mar, tem a chance de encontrar o outro. Uma ética dispendiosa mergulha na existência aprendendo como nadar em seu mar tempestuoso, como Heráclito que banha-se no rio sabendo que este não será o mesmo amanhã. É no excesso que há cultivo!
O que quer o pródigo é a metamorfose de sua própria existência em território permitido a experimentação de miríades de atualizações”
– Michel Onfray, A Escultura de Si, p. 107
Vida de experimentações, que geram, por sua vez, atualizações! Ah, existe melhor maneira de enfrentarmos o niilismo? Contra a contenção, o dispêndio; contra a retenção, o transbordamento! Sim, é isso que queremos! A vida só se dá pra quem se dá na mesma medida, pra quem, como diz o poetinha, abre o coração. É isso que quer Onfray, uma abertura por onde a vida possa passar, desentupir os poros para que possamos novamente (alguns pela primeira vez) respirar.
Não há vida sem excesso, não há excesso sem movimento em direção à desmedida. O trabalho de quem se preocupa com valores consiste em dizer até onde a prodigalidade pode ser praticada, ou seja, reivindicada” – Michel Onfray, A Escultura de Si, p. 121
Contra a medida que escraviza, Onfray propõem uma vida de desmedidas calculadas! Sim, é preciso prudência, mas os valores existem para serem ultrapassados. O próprio ato de afirmação gera a desmesura. Qual a graça de uma existência que não se abre, não vai além, não descobre o que existe para além de si? O excesso é a coroação da Vontade de Potência, a sensação de que se deu mais um passo para além do comedido e metódico. O mundo é um trampolim para algo mais dentre dele mesmo.
Portanto, quanto mais dispendioso, nós afirmamos, maior a chance de encontros alegres! Este é o raciocínio hedonista por excelência: uma ética que no seu excesso gere júbilo, alegria, prazer. Lembrar do Sol, principalmente o Sol espinosista, que em seu puro excesso gerou e sustenta toda a vida na terra. Por interesse? Não, por dispêndio, simplesmente. Calor perdulário!
Mas que fique bem claro, uma ética dispendiosa é muito diferente do escoamento desenfreado. O esbanjamento e o vazamento parecem próximos mas não são. Falamos de um excesso direcionado, conduzido, até mesmo, poderíamos dizer, condicionado. Tudo proporcionado por uma bela forma, capaz de dar um curso aos impulsos, sem deixá-los cair na incoerência. Para que fique claro, o vulcão que explode é diferente do sangue que escoa pela artéria cortada.
A ética dispendiosa é aquela que permite devires! Porque é a única que permite encontros com aquilo que ainda não se sabe o que é. O dispêndio é a reação química que transforma os dois elementos em dois outros, resultado: ninguém sai incólume de um devir, da mesma maneira que ninguém gasta sem transformar-se no processo. Há sempre um transbordar-se que torna-se sinônimo de transmutar-se. Onfray sabe disso melhor do que ninguém, sua ética busca estes espaços ainda não habitados, malvistos pelo senso comum. Ora, o desconhecido gera medo porque é sempre mantido à distância, olhado de soslaio, considerado com insegurança.
A ética dispendiosa é a luta contra o nivelamento, o igualitarismo, o fechamento e, portanto, o individualismo. Se estamos fechados, afetivamente, não é à toa que imaginamos mil regras de medidas e reservas para nos precaver do perigo. Perigo de quê? Não sabemos onde está este perigo; ou melhor, temos outra resposta para esta pergunta: o único perigo é não viver este mundo, esta realidade, esta vida! Contra o individualismo que nos fecha, contra a ética da contenção, Onfray nos mostra um caminho que abre novos horizontes. Uma prática onde o Sim supera o Não, onde o além sobrepõem-se ao aquém! O dispêndio é nossa melhor arma para acessar o outro, é nossa via para realizar encontros! A mão que se estende é sempre resultado de uma superação.
Uma vida dispendiosa paga a si mesma no processo, sem necessidade de testamentos e inventários. Esta vida tal como a concebemos pode inclusive ser um jogo onde se termina com mais do que se começou! Não é esta a beleza da existência? Quem disse que é um jogo que sempre acaba empatado? O desafio hedonista é multiplicar não apenas os pães, mas os prazeres em suas mais variadas formas, a alegria e todos seus subprodutos. Os afetos não são finitos, esta é a graça do processo, eles são fonte renovável de energia.
Prefiro o excesso dos loucos à ponderação dos sábios. Alguns triunfam nos seus fracassos, enquanto que outros encalham em seus sucessos”
– Michel Onfray, A Escultura de Si, p. 71
Estamos, enfim, no campo da ética-estética, ética da doçura. A magnificência é o motor da Ética Dispendiosa. Criar a possibilidade de ser magnânimo é um de seus principais atributos, onde belos fins supõe belos meios. Não mais (con)sumir, mas aprender a produzir; não mais reter, mas aprender a exceder; superar a carência e a escassez através do júbilo ético daquilo que quer sempre mais. Eis aí uma ética hedonista, materialista e digna de nosso respeito!
Dar e gozar, gastar e jubilar, pois é nessas práticas toda a exibição do excesso que fascina, lá onde, às vezes, o estrito necessário falta. Assim é com a energia, com a força, com o caráter, com o temperamento ou com a virilidade que transborda e seduz por sua potência”
– Michel Onfray, A Escultura de Si, p. 124
Oi, Rafael, eu adorei este texto! A primeira leitura, ele passou sem me afetar, a segunda leitura foi de teimosia, porque achei que deveria ter algo a me tocar, mas não vi; a terceira leitura comecei a perceber, e como diriam os protestantes, “o espírito voltou a soprar. Entendi, entendi de forma concreta o que pode ser uma “Ética dispendiosa” na minha vida, no meu cotidiano. E como consequência desse entendimento, desencadearam-se outros entendimentos de outros conceitos da Filosofia deste blog, que tanto me tocam. Tudo isso para mim é um novo “Evangelho”, no sentido estrito do termo, talvez eu… Ler mais >