Encontrar a (im)pertinência política dos nossos afetos às vezes passa por resgatar algumas palavras em desuso. Depende de uma atividade parecida com a mineração. Nós queremos dobrar a linguagem, fazer os sinônimos se diferenciarem. Assim, podemos abrir espaço para novas interações com o mundo. Não podemos menosprezar a linguagem como modo de valoração. Precisamos dela para construir outros mundos possíveis. Extrair da língua seus pensamentos silenciados, suas palavras não ditas, suas vozes caladas para criar inúmeras novas chaves de interpretação, conforme a conveniência de incontáveis novas ideias.
Neste sentido é que retomamos a Ira: como um afeto longamente esquecido, como uma palavra empoeirada dentro dos livros, como um rumor inaudível, uma ideia escrava de um jeito antigo de pensar. “A ira dos deuses” ou “A ira do povo” são expressões abandonadas… deixadas para trás. A questão é que a circulação deste afeto não interessa mais às nossas sociedades cansadas. Os dias de ira devem ser esquecidos, dizem os especialistas.
Diversos afetos são suprimidos por serem perigosos demais. Precisamos lembrar o quanto o desejo é revolucionário? Alguns são substituídos ou redirecionados como massa de manobra, como a esperança; outros são transvalorados pelo niilismo negativo. Sabemos que os afetos que circulam em nossa sociedade são selecionados de acordo com sua utilidade e conveniência.
É preciso, antes de tudo, limpar terreno: raiva, ódio e irritação não são afetos próximos da ira. São antes seu avesso. Eles são responsáveis por não dar vez à ira. São válvulas de escape para que a vida triste persista. O corpo social depende de fluxos de irritação para se manter coeso. É a ebulição dos componentes mais perigosos que mantém a temperatura dentro do aceitável; ou a linha de frente de um exército em guerra – um sacrifício calculado. É, ainda, e talvez esta seja a melhor definição, um sistema coletor de transbordamentos! Uma permissão para o extravasamento dada aos que sabem o momento de fazê-lo. Irritar-se com o erro do outro no trânsito permite que continuemos a tolerar nossa vida engarrafada. Onde está a criação nisso?
A dispersão geral que marca a sociedade de hoje não permite que surja a ênfase e a energia da ira. A ira é uma capacidade que está em condições de interromper um estado, e fazer com que se inicie um novo estado. Hoje, cada vez mais ela cede lugar à irritação ou ao enerva-se que não podem produzir nenhuma mudança decisiva”
– Byung-Chul Han, Sociedade do Cansaço
Em nossas sociedades, tudo se passa como se nada pudesse mudar. Como se só o futuro abrigasse a alegria. Uma hipnose social é o que vivemos. Trabalhamos adormecidos em ambientes corrompidos. Somos robôs mal pagos: disciplinados, controlados, cansados e sempre em crise. Antropomorfização do inorgânico. A ira realiza uma interrupção, um basta às agressões cotidianas. Ela permite que deixemos de escorrer em vida. Concentra-se no momento, tira o presente do futuro e restabelece nossa presença. Devolve a atenção ao seu devido lugar: aos afetos!
Se aceitarmos a existência de um sistema bancário não monetário, então a observação de que bancos de um tipo diverso, concebidos como depósitos centrais de afetos, podem administrar economicamente a ira de terceiros tanto quanto bancos monetários trabalham com o dinheiro dos clientes mostra-se elucidativa”
– Peter Sloterdijk, Ira e Tempo, p. 179
Aí está o perigo de nossas sociedades, como circulam nossos afetos? Esta é a pergunta que nos fazemos em cada texto desta série. Em quais afetos nós investimos? Quais esquecemos de sentir? E o melhor: quais são os que ainda não foram inventados? Estas questões são importantes para pensar nossa sociedade monopolítica e, portanto, monoafetiva! A política de esquerda e de direita funcionam canalizando nossa ira. Mas talvez estejamos sendo conduzidos por caminhos que não são nossos.
A ira é um afeto de erupção! “Força fundamental no ecossistema de afetos” (Sloterdijk). É a maneira mais altiva de se alargar os limites. É mais do que um não, é um sim com voz de trovão. Um ilustre gesto transformador. Para bom entendedor, é o sinal de que as coisas mudaram definitivamente. É uma postura! Quase dá pra ouvir o rugido do Leão. A ira ultrapassa a irritação pois não opera na base da reatividade. É um afeto ativo da mais bela estirpe de que apenas os nobres são capazes. É o mais puro estado de não-captura, pois diz: “não há poder sobre mim“, “não te sirvo“, “sou“, “quero“!
A nobreza da ira foi completamente desvalorizada em nossa sociedade, trocada pela irritação, pelo stress, pela grosseria, pelo aborrecimento. A ira faz terraplana, abre espaço, alarga horizontes, diferente dos afetos reativos que debilitam e consomem. Sem ira, nos resta apenas espera, expectativa. Por isso, nossa pergunta é simples: devemos reprimir a ira? Devemos sempre sacrificá-la em nome da compreensão, da zen contemplação, da ataraxia estoica? Ora, talvez exista um pouco de razão em toda ira, e um pouco de ira em toda razão. Uma Razão pode ser suficientemente inadequada para abrigar a ira dentro de si.
“Uma forma intensiva de disponibilização e de transferência de energias…” (Sloterdijk), a ira é um canal, um sulco cavado violentamente no deserto da existência. Por ali passa algo. Uma força dionisíaca, que nos faz perder as dimensões da realidade, que descola nosso ser de nossa forma cansada, servil, formalizada.
Se nos deixarmos guiar pela imagem da efervescência, uma imagem que já tinha levado os autores antigos a falar de furor, de ferver e de lançar-se arrojadamente para frente, então veremos o quanto a noção de ira possui um traço marcado pela ação de presentear, sim, um traço paradoxalmente generoso”
– Peter Sloterdijk, Ira e Tempo, p. 77
É possível que guerra e felicidade estejam do mesmo lado. Luta e alegria! Talvez o guerreiro agradeça à sua ira a oportunidade de subir no palco dos acontecimentos e fazer valer a sua força! A ira é um presente da vida, algo que definimos como Virtude Dadivosa. Todo guerreiro sabe que a ira é uma virtude! “Como pura ‘extraversão’, a ira expressa sem reserva, ‘borbulhante’, acrescenta à existência dos fatos do mundo complementos extremamente ricos em energias” (Sloterdijk).
A ira é uma força que nos carrega, que sabe tirar do corpo ainda um pouco de saúde. Plenitude de afirmação que só destrói para criar algo em seu lugar. Em nossas sociedades, a ira pode ser um corte no deslizar lamacento das atividades. Um obstáculo aos fluxos de capital. Um sabot nas engrenagens do poder. Uma força de autoafirmação. Buscamos a ira como um tesouro perdido, mas que sabemos enterrados nas praias da nossa mediocridade cotidiana.
Como aqueles que buscam transvalorar todos os valores, colocamos a ira na balança e vemos a necessidade de seu peso em nossa sociedade. Não nos surpreende todos os mecanismos de neutralização armados contra ela. Queremos reacender a chama da ira que permanece queimando. Deixar para trás os dias de humildade vingativa, trocá-los por uma boa e saudável inteligência timótica! É hora de resgatar os dividendos desta poupança de ira latente. Toda e qualquer vingança adiada cria uma reserva de ressentimento que fica rendendo juros e corre o risco de nos contaminar.
O essencial é não deixar a ira ressentir-se! Não adiar nem um dia a mais que seja este quantum de força que quer crescer, não esperar pelo dia seguinte. A nós, que buscamos a nobreza dos afetos, cabe jamais inocular ódio na ira! Nosso caminho é outro, é mantê-la intacta dos fracos e falhados, procurar por uma ira inocente, para além do bem e do mal, como um vulcão que explode. Como os guerreiros antigos que em seu frenesi ardente entravam em devir. Ansiamos pela circulação da ira novamente entre nossos afetos correntes, para que ele não fuja de lutas necessárias e nem busque lutas supérfluas.
Oi, Rafael, bom dia!
Por que vocês sempre falam em “afetos ( bio) políticos, por que bio? Eu entendi um pouco, mas gostaria de entender mais. Obrigada.
Leia o texto central da série, Lucia. É só ir na aba sobre o blog > micropolítica > afetos (bio)políticos
Rafael, lembrei-me que a palavra – ira – vem para a atualidade como adjetivo, uma gíria – irado- que significa algo excelente, muito bom. Você tem razão, a força deste vocábulo foi atenuada no seu significante, e se houver uma hierarquia entre as palavras, ela perde força ao sair da classificação de substantivo para adjetivo. Ahahaha! Isso está uma aula de Língua Portuguesa, perdoem-me, mas assim faz muito sentido para mim.
Obrigada.
O budismo tibetano tem um tipo de ação chamada ação irada, esta é a quarta das quatro formas de ação: “Essa perspectiva de análise — caracterização, culpa, julgamento, condenação e penalização — é super complicada, é mais fácil contornarmos esse aspecto. Às vezes vamos precisar de um enfrentamento direto, mas essas quatro ações são a primeira coisa. O primeiro ponto é nós não nos perturbarmos, que significa o lodo (emoções negativas) não gerar lodo (emoções negativas) em nós. O segundo ponto é a ação tranquilizadora, desarticular aquilo. O terceiro ponto, a ação incrementadora. O quarto ponto é a ação irada,… Ler mais >
Hahahaha, olha…. Que texto prazeroso de se ler, eu li isso dando risada, e com uma palavra estampada na cabeça: “genial!”. Acho que a palavra que melhor descreve o que eu estou sentindo agora é empolgação. A ira é “rizomática” na medida em que rompe, quebra e rasga, sendo uma uma potencia gerada e “vazada” sem acumular-se em conservação, portanto, é ativa; fugindo de qualquer modelo “arbóreo” que fixaria tal afeto a ponto de tornar-se reativa, transmutando-se em outros afetos citados no texto, como o stress, ódio, e “humildade vingativa” (ooooo delicia de designação esta ultima em; nada melhor para… Ler mais >
Riso e empolgação! Duas reações que sempre esperamos ao escrever um texto … Muito mais do que reflexão …
No mais, concordo!
E mais um golpe da luta perdida contra a ignorância, obrigado por me apresentar a ira!