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Tenho o direito de considerar-me o primeiro filósofo trágico – ou seja, o mais extremo oposto e antípoda de um filósofo pessimista. Antes de mim não há essa transposição do dionisíaco em um pathos filosófico: falta a sabedoria trágica”

– Nietzsche, Ecce Homo, O Nascimento da Tragédia, §3

Barnaby Ruhe

Existiram muitos psicólogos antes de Nietzsche, e muito vieram depois, mas apenas o pensador alemão se permite considerar o primeiro psicólogo trágico. Por que? A resposta é simples, com a morte de Deus, Nietzsche quer que a tragédia retorne! Uma concepção de mundo diametralmente oposta ao racionalismo socrático. Mas para entender o que Nietzsche quer dizer com Psicologia, antes precisamos abordar o que o filósofo entende por Trágico.

A reflexão sobre uma Psicologia Trágica começa com Apolo e Dionísio, ambos deuses da arte, porque os gregos julgavam que a vida só valeria a pena se fosse interpretada como fenômeno estético. Portanto, a arte é uma maneira de encarar a vida, uma forma de vivê-la e dar sentido a ela. O impulso apolíneo se manifesta nos sonhos, o impulso dionisiaco, na embriaguez. Apolo protege a individualidade da dor desnecessária, Dionísio  a despedaça em mil pedaços!

O impulso apolíneo não nega nem deprecia Dionísio e vice-versa. Cada um se relaciona diferentemente com as forças do caos, cada um mergulha nele e retira o que julga necessário. Apolo recorta as forças de modo mais contido, sóbrio; Dionísio traça linhas de fuga, desorganiza, multiplica-se. Na tragédia, encontramos a reconciliação destas forças que parecem opostas.

A cultura grega não fazia uma separação entre Apolo e Dionísio, pelo contrário, a tragédia compreendia a junção destas duas forças. A arte trágica é uma maneira do homem grego interpretar o mundo. Apolo é integrado a Dionísio, ambos como forças imanentes! Isso opõe-se com todas as forças aos ideais moralistas e dogmáticos. Não experienciar a vida como se houvesse algo a ser corrigido ou melhorado.

Trazer o pathos dionisíaco para a psicologia, este é o objetivo da obra de Nietzsche. Sua concepção de mundo traz em seu bojo duas forças que se manifestam nos homens, dois impulsos naturais que se efetivam fisiopsicologicamente nos seres humanos, duas formas de afirmação. Duas maneiras de lidar com o Caos: mergulhando ou navegando por cima dele! Dois caminhos: a medida e a desmedida!

A reconciliação entre Apolo e Dionísio mostra que os dois impulsos seguem na mesma direção. O que parece inverossímil em um primeiro momento, mas perfeitamente compreensível após as análises nietzschianas. A vida é a harmonia entre a medida e a desmedida; a vida é o delicado equilíbrio entre medida e desmedida. A vida quer a si mesma e seu além, conservar-se e seguir adiante, sustentar-se e crescer. Consistência e expansão; firmeza e exuberância; regularidade e esbanjamento.  

Apolo e Dionísio, ambos os deuses saíram vencedores da disputa: uma reconciliação no campo de batalha”

– Nietzsche, Visão Dionisíaca do Mundo, §1

O ritornelo expressa bem esta vontade: criar um ponto, um apoio, um centro, mas apenas para deixá-lo, para partir, para seguir outros rumos. Nunca se encontra um ponto final, porque não há finalidade nem ponto de partida. É tudo uma questão de conjunção de forças, como elas se harmonizam em um determinado momento do tempo. O equilíbrio que procura por seu oposto, a desmedida que procura por uma medida. O retorno depois da viagem sempre traz consigo a diferença, nunca se retorna para o mesmo lugar.

Podemos comparar o apolíneo e o dionisíaco com a Representação e a Vontade, tão caros a Schopenhauer. Mas não nos enganemos, Apolo e Dionísio são duas manifestação da realidade, duas maneiras que o mundo chega até nós, duas formas de experienciá-lo e de valorá-lo. Não temos acesso à coisa-em-si; melhor, a própria aparência, em suas mais diversas manifestações já é a coisa-em-si. A realidade não se esconde atrás de um Véu de Maia, ela se afirma das mais infinitas maneiras. Que fique claro: não há oposição entre Vontade (dionísio) e Representação (Apolo). Nietzsche desfaz este mal entendido! O vir-a-ser é a coisa em si, e sua manifestação é real, tanto em seu modo apolíneo quanto dionisíaco.

Onde Schopenhauer recua diante do abismo, Nietzsche mergulha de cabeça. Dois impulsos fundamentais, absolutamente indissociáveis e também irreconciliáveis. A Tragédia Antiga nasce pela coexistência deste dois impulsos em relação. O abismo do Uno Primordial e o mundo das imagens e das formas. Nos gregos estas forças pulsam. Objetivação das forças dionisíacas por meio das forças figurativas apolíneas e desagregadoras dionisíacas, as duas reais e afirmativas.

Essa reconciliação é o momento mais importante na história do culto grego: para onde quer que se olhe, são visíveis as revoluções causadas por este acontecimento. Era a reconciliação de dois adversários, com a rigorosa determinação de respeitar doravante as respectivas linhas fronteiriças e com o periódico envio mútuo de presentes honoríficos: no fundo, o abismo não foi transposto por ponte nenhuma”

– Nietzsche, Nascimento da Tragédia, §2

Barnaby Ruhe

Nietzsche quer manter as condições de criação e superação do homem. Precisamos encontrar estas forças para encarar as agruras da existência, para enfrentar as dificuldades do caminho que escolhemos. A tragédia não era escrita para homens comuns, apenas para heróis, que se colocavam à prova e amavam a luta, que queriam a batalha e o enfrentamento!

Os helenos acreditavam que os deuses colocavam percalços em seu caminho porque a sabedoria só advinha por meio do sofrimento. A filosofia de Nietzsche procura restabelecer exatamente estes valores, estas concepções. Na tragédia, os personagens procuram suportar a forças demolidoras da vida sem sucumbir, mergulhar no caos mas retornar mais forte. As cenas diziam das mais variadas formas de viver, da mais profunda dor até a mais profunda alegria, mas aqui e agora, neste mundo, nesta realidade.

Transfigurando uma imagem schopenhaureana: o pêndulo que oscila entre Dionísio e Apolo, entre a medida e a desmedida! Já dissemos, não há uma oposição Apolo Dionísio! A oposição agora é entre as forças imanentes (apolíneas e dionisíacas) e o socratismo, o cristianismo, enfim, os valores ascéticos em geral, que não nos preparam para enfrentar as dificuldades e dores.

Um outro ideal corre à nossa frente, um ideal prodigioso, tentador, pleno de perigos, ao qual ninguém gostaríamos de levar a crer, porque a ninguém reconhecemos tão facilmente o direito a ele: o ideal de um espírito que ingenuamente, ou seja, sem o ter querido, e por transbordante abundância e potência, brinca com tudo o que até aqui se chamou de santo, bom, intocável, divino”

– Nietzsche, Gaia Ciência, §382

Uma filosofia para os fortes, para os que procuram por excessos. Negar os entorpecentes para aliviar o que não deve ser aliviado! Desprezar os purgantes para o que não deve ser purgado! Ignorar antídotos para curar o que não é veneno. Não somos tão frágeis assim, não precisamos aceitar a vida medíocre que nos oferecem! Dominamos a natureza por medo, insegurança, matando e exterminando suas forças vitais; nos sentimos seguros em nossas casas, trancafiados, separados do mundo por muros altos. Não é isso que Nietzsche nos propõe!

Eu prometo uma era trágica: a arte suprema do dizer Sim à vida, a tragédia renascerá quando a humanidade tiver atrás de si a consciência das mais duras porém necessárias guerras sem sofrer com isso” – Nietzsche, Ecce Homo, O Nascimento da Tragédia, §4

A pergunta nietzschiana continua válida: quanta vida suporta um espírito? Qual é o ponto onde ele precisa se esconder? A superação dos horrores da vida só é possível através de uma concepção artística da existência. E os gregos amavam a existência o bastante para não negá-la, muito pelo contrário, seu esforço constante era encontrar meios de afirmá-la com mais intensidade.

O que deve doer e ser digno de lamentação é a vida ser curta demais, efêmera demais para tudo que queremos dela. Afinal, buscamos por uma existência ativa, em meio aos mais diversos sofrimentos e agruras, superando mesmo os maiores desafios e provações.

Como poderíamos nós, após tais visões, e com tal voracidade de ciência e consciência, satisfazermo-nos com o homem atual?”

– Nietzsche, Gaia Ciência, §382

A vida é artística, e o artista justifica a vida. Nietzsche pode considerar-se o primeiro filósofo trágico porque quer reconciliar conhecimento e vida. Sem que a primeira precise dominar a última. Filosofia e vida precisam ser colocados novamente do mesmo lado, no mesmo plano. A realidade não é mais um campo a ser descoberto, mas um mar cheio de possibilidades de criação, sem certo e errado, para além do bem e do mal. É nisso que a sabedoria trágica consiste: Afirmação plena da existência!

Viver apolínea e dionisiacamente significa caminhar entre a medida e a desmedida, na linha tênue que separa um do outro, mas que os mantém unidos. O conhecimento de si a serviço das possibilidades de desconhecimento de si! Esta é a linha onde queremos nos equilibrar, nós poderíamos chamá-la de prudência. Nietzsche propõe a travessia do niilismo através deste caminho, para não cair no desespero de um niilismo passivo, mas na afirmação de um niilismo ativo, capaz de transvalorar valores.

A tragédia é a junção entre Apolo e Dionísio, na forma de Palavra e Música, medida e desmedida, Ética e Estética: imanência pura. Apolo como o além-do-homem e Dionísio como o arauto do Eterno Retorno! Contra a moral, a Psicologia Trágica trata da busca pela afirmação da vida, mesmo em seus aspectos mais dolorosos e insuportáveis. A psicologia trágica alça voos inimagináveis para Sócrates e Schopenhauer e o cristianismo que usam o conhecimento contra a vida, contra a existência, contra este mundo.

A psicologia trágica se explica por um excesso de força, sem necessidade de purificação. Eterno retorno da vida, que procura afirmar-se, crescer, dominar, prevalecer. Fluxo de forças que querem a si mesmas. Com Psicologia Trágica, constatada nos helenos, Nietzsche encontrará material para todos os conceitos que desenvolverá posteriormente em sua obra. O trágico nunca deixará de estar presente e Dionísio será companhia constante nesta caminhada pelos picos e vales da filosofia.

O dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos – a isso chamei dionisíaco, nisso vislumbrei a ponte para a psicologia do poeta trágico. Não para livrar-se do pavor e da compaixão, não para purificar-se de um perigoso afeto mediante sua veemente descarga – assim o compreendeu Aristóteles -: mas para, além do pavor e da compaixão, ser em si mesmo o eterno prazer do vir-a-ser – esse prazer que traz também em si o prazer no destruir… E com isso toco novamente no ponto do qual uma vez parti – o Nascimento da Tragédia foi a minha primeira transvaloração de todos os valores: com isso estou de volta ao terreno em que medra meu querer, meu saber – eu, o último discípulo do filósofo Dionísio – eu, o mestre do eterno retorno”

– Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, O que Devo aos Antigos, §5

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Renata
Renata
7 anos atrás

Maravilhoso o texto, Rafael! Parabéns pela sequência de ideias! E muito obrigada por partilhar conosco seu conhecimento!

Joaquim Ramos
Joaquim Ramos
7 anos atrás

Sem querer ser chato, talvez valesse a pena corrigir o “Houveram” no início do texto! Parabéns pelo conteúdo!

marcosouzablog
7 anos atrás

É bem válido que Nascimento da Tragédia foi a gestação do conceito de trágico no campo filosófico. Tem o livro de Roberto Machado a esse respeito “Nascimento do Trágico” , um belo trabalho sobre esse conceito. Existe uma diferença muito forte entre o gênero trágico artístico e o que vem a ser o conceito trágico filosófico e seus precursores. Em Humano Demasiado I, Nietzsche fala um pouco sobre a diferença entre compadecer e padecer. E como as pessoas usam a fé do padecer para deixar no campo da compaixão e da purgação.

Karlos
Karlos
5 anos atrás

Muito massa!