Skip to main content
CarrinhoClose Cart

É difícil crer na existência de algo público nesse governo onde tudo é de um só”

– La Boetie, Discurso da Servidão Voluntária

– Pawel Kuczynski

Como podemos crer na existência de uma democracia? Como acreditamos piamente que vivemos em uma república? Talvez por esta ladainha ser dita e redita diariamente. Mas certamente não a constatamos empiricamente. Sabemos, o poder está nas mãos de poucos que podem muito, uma pequena parcela da população desfruta de regalias e de uma absurda concentração de renda enquanto a maioria luta desesperadamente pelo pão de cada dia.

Somos livres? Não. Enquanto a justiça, o acesso à saúde, o direito à educação e à mobilidade, o poder monetário, a segurança e o respeito forem dados a apenas algumas pessoas, não seremos livres. Enquanto estas poucas pessoas se utilizarem de nossas forças para viverem em meio a riquezas e conforto, não seremos livres.

A verdade dói, somos escravos modernos: nossas casas são senzalas; nossa demissão, alforria; nossos salários, meio de subsistência. Desesperador, mas constatar isso talvez seja o primeiro passo. Vivemos para servir, fomos condicionados a isso, adquirimos reflexos de submissão. Dia e noite nos dizem que a ordem é nossa maior bênção, que a obediência é nossa maior virtude. Mas onde está esta zona de conforto? Não existe! Nosso momento de descanso está intimamente ligado às energias que devemos recuperar para voltarmos à labuta. Nossa distração está ligada à exploração. Vivemos na miséria enquanto 1% detém metade das riquezas produzidas. Quem são estes 1%? É difícil de acreditar, mas fácil de constatar: alguns poucos são sustentados no alto por muitos que são pisados embaixo.

Mas ó, bom Deus! O que é isso? Que nome damos a esse fenômeno? Que infortúnio é esse? Que vício é esse, ou melhor, que infeliz vício é esse? Ver infinitas pessoas servindo em vez de obedecer; sendo tiranizadas em vez de governadas; sendo desprovidas de bens e parentes, mulheres e crianças, até mesmo de uma vida própria! Sofrendo pilhagens, as obscenidades, as crueldades não de uma armada, não de um exército bárbaro do qual devam, antes de tudo, defender seu sangue e sua vida, mas sim de um único indivíduo; não de um Hércules nem de um Sansão, mas de um reles homenzinho”

– La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

Um reles homenzinho covarde, que nem merecia estar lá, mas está. Pode ser o presidente, o ditador, o chefe, o dono, o empreendedor, o comandante, qualquer um deles não passa de um reles homenzinho. Este homenzinho se sente melhor que os outros, talvez por sua pele ser mais clara, talvez por ter feito intercâmbio no exterior, talvez por sentir-se merecedor. Não interessa, estes homenzinhos sentem que os outros devem prestar-lhe contas e obedecer às suas ordens.

Onde há poder, há tirania. A pergunta é: por que alguém se submete? Ou melhor: por que muitos se submetem a tão poucos? Por que lhes engraxamos os sapatos, guardamos suas casas, passeamos com seus cachorros, cuidamos de seus filhos? La Boétie se questiona se seríamos covardes demais para fazer alguma coisa, o que numericamente seria fácil, afinal a diferença é gigantesca. Mas parece que criamos o hábito de nos submeter, é simplesmente mais fácil, gera menos transtornos.

Um milhão de homens não deveriam temer atacar apenas um, mas as engrenagens da sociedade rodam, lubrificadas, sem que nada escape… “é assim desde sempre”, dizem:

É o povo que se subjuga, que corta a própria garganta, que, podendo escolher entre servir ou ser livre, abandona a liberdade e toma o jugo, que consente com seu infortúnio e até mesmo o busca”

– La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

Somos escravos procurando por senhores, somos servos ávidos por um mestre! Não exigimos nem mais que assinem nossa carteira de trabalho! Parece que gostamos e preferimos assim, chamamos de mercado competitivo. Deste modo, tudo que nos pedem, fazemos; todas as ordens são prontamente seguidas sem qualquer questionamento, sem a menor reflexão. “É o meu trabalho, eu tenho que fazer“, “são ordens superiores, eu tenho que cumprir“, “é o que a lei diz, então precisa ser assim“. Ao obedecermos, o 1% se torna mais forte, praticamente invencível, do alto de seus arranha-céus, se tornam quase entidades divinas, mas não sabem nem limpar a própria bunda.

De maneira submissa, entregamos nossos ganhos, abdicamos de tudo produzido arduamente e colocamos de bom grado no colo de nosso senhor. E ainda agradecemos! Não é incrível? Nos movemos como que enfeitiçados por alguma coisa maior. Sem nunca desviar de nosso curso. Nossa servidão nos despoja de nossos bens, construímos casas… para eles, montamos carros… para eles, costuramos roupas… para eles, e assim a vida segue.

Aquele que tanto vos domina não tem senão dois olhos, duas mãos e um corpo, e em nada difere do homem ordinário de nossas grandes e infinitas cidades, exceto pela vantagem que vós lhes concedeis para vos destruir”

– La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

– Pawel Kuczynski

Servidão é heteronomia: é o desejo submetido ao outro. É a vida vivida sob o signo da falta. Há sempre uma distância entre aquilo que se quer e sua realização. Servidão é o sentimento de vazio, alienação de nossa própria vida; desejo como privação, carência que nunca pode ser devidamente preenchida, satisfeita; servidão é impotência, uma vida de contrariedades. A tristeza, a melancolia, a raiva, a frustração, a esperança, o medo são seus afetos (bio)políticos.

Mas de que adianta? O rei diz: eu sou a lei! E todos abaixam a cabeça. O primeiro ministro diz: eu estou no comando! E todos aquiescem. O presidente diz: fui eleito! E ninguém grita “foi golpe!“. O império do poder se faz sempre presente, e esconde-se atrás da pretensa legalidade para seu arbítrio e opressão. Todo discurso de poder é metafísico e teológico, já dizia Espinosa! Sustenta-se em supostas atribuições divinas e elevadas, mas não passa da imposição de um modo de vida servil e impotente.

Como tal pessoa teria tanto poder, senão com nosso próprio consentimento? Não há armas e ameaças o bastante que um único homem possa segurar ou dizer que obrigasse todos a se submeterem! Um único homem! Como ele faz? Ele jamais poderia intimidar a tantos sem o consentimento de outros que estão logo abaixo dele e já o servem! Como uma pirâmide montada onde cinco ou seis servem a este um, onde cinquenta ou sessenta servem a estes cinco ou seis, e assim por diante, tomando conta da cidade inteira, até chegar na nação inteira, milhões de indivíduos sorrateiramente conectados ao fio da servidão. Um cozinha, o outro lhe penteia o cabelo, o terceiro o leva de carro até o trabalho, um quarto lhe prepara um café, e assim por diante. Todos devidamente marcados, vacinados, hipnotizados, garantindo que tudo ocorra da maneira como o 1% gosta.

Não são as tropas de cavaleiros, não são os corpos de infantaria, não são as armas que protegem o tirano. À primeira vista, parece difícil crer, mas é a verdade: são sempre quatro ou cinco que mantêm o tirano, quatro ou cinco que mantêm todo o país em servidão”

– La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

 

A servidão tem a forma de uma pirâmide! Simples assim! Aquele que está mais embaixo sustenta o que está imediatamente acima. Até chegar no topo da pirâmide, onde está toda a riqueza, ostentada, gasta na superfluidade, perdida em meio às aparências. Como um imã, tudo é atraído para o alto da pirâmide, todos os olhares, toda a atenção, toda a inveja, enquanto nos rastejamos aqui embaixo.

Mas como pode ser assim, se nada nos obriga a servir? Nada determina que seja assim! Mas é assim! Só olhar para o lado e ver. O vendedor, sorrindo falsamente, apenas esperando sua hora de ir embora; o garçom que cuspiria na bebida de seu cliente se não precisasse sustentar seus filhos; as pessoas em situação de rua recolhendo latinhas e papelão para ganharem uma miséria na reciclagem e comprarem um prato de comida.

Os teatros, os jogos, as farsas, os espetáculos, os gladiadores, os animais exóticos, as medalhas, os quadros e outras drogas afins eram para os povos antigos, as iscas da servidão, o preço de sua liberdade […] as pessoas, apatetadas, achando belos esses passatempos, entretidas por um vão prazer que lhes passava diante dos olhos, acostumavam-se a servir”

– La Boétie, Discurso da Servidão Voluntária

Há três meios pelo qual um tirano chega ao poder: pode passar de pai para filho, através do sangue (supostamente azul, mas sabemos que não); por força das armas, que o tomam de maneira violenta; ou, pior, por eleição do próprio povo, que escolhe o senhor a quem vai servir de quatro em quatro anos. Esta última deveria ser a mais insuportável, pois envolve nossa conivência. E é difícil aquele que subiu ao poder por “vontade popular” queira largá-lo facilmente.

Ainda vivemos como escravos, todos nós que nos submetemos aos mais vergonhosos empregos, às mais humilhantes relações hierárquicas. Nascemos e vivemos dentro destas condições, assim como todos os nossos ancestrais, desde os mais antigos, nem por um minuto imaginando que poderia ser diferente. Enfim, é o povo que gera o seu próprio infortúnio, pois foi ensinado a servir, e assim segue, do começo ao fim de sua vida. Saberiam fazer de outra maneira? Difícil responder, pois outra pergunta se torna agora ainda mais importante: gostariam eles de fazer de outra maneira ou servem voluntariamente?

Texto da Série:

La Boétie – Servidão Voluntária

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

Mais textos de Rafael Trindade
Subscribe
Notify of
guest
9 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
Ricardo
Ricardo
6 anos atrás

Olá Rafael ,primeiramente gostaria de parabenizá-lo pelo belo e ao mesmo tempo revoltante texto . Sou leitor fiel de todos os artigos e cada um deles me toca de uma maneira diferente e me faz refletir cada vez mais acerca da realidade que me rodeia.
Tenho muita vontade de cursar psicologia,e gostaria que ,se houvesse possibilidade,você falar um pouco de como foi sua faculdade e de como é ser psicólogo.
Grande abraço e ,novamente, parabéns pelos textos.

Trosobão
Trosobão
6 anos atrás

Como visto em South Park toda eleição é sempre entre um “Babaca Inútil” e um “Sanduíche de Merda”, e como visto na Sereníssima República de Machado de Assis, o problema não é o sistema de governo e nem os governantes que estão aí, é a humanidade que está se desumanizando.

Zé
6 anos atrás

Somos prisioneiros de nós mesmos. Coisa estranha a verdade: onde você está, ela não está.

Luis
Luis
5 anos atrás

Fabuloso

Silvana
Silvana
5 anos atrás

Boa tarde Rafael! Sou de Belém do Pará e estou encantadíssima em ter “encontrado por acaso” seu blog, pois foi procurando no google sobre a biografia do filósofo Nietzsche que cheguei até aqui. Muito curiosa que sou, entrei, cadastrei meu e-mail e estou estonteada com a leitura desse magnifico texto! Estou cursando Licenciatura em Sociologia e seus textos irão me ajudar muito! Parabéns!! Já sou fã do Razão Inadequada! Sucessos a você!

Alexandre Augusto Martim
Alexandre Augusto Martim
5 anos atrás

Uma crítica: os magnatas tem nos feito acreditar que todo o problema do mundo deve-se aos politicos, pra impor seu conveniente sistema neo-libera, e a primeira gravura nos faz suspeita de um político em um pronunciamento. Como bem sabemos…. a maior submissão que existe é ao capital, e teria sido melhor botar um banqueiro com nariz de porco. rrsrsrs

Valério Augusto
Valério Augusto
4 anos atrás

Rafael. O escritor está chovendo no molhado. Em 1930 já, W. Reich declarava, e com razão, que a família funciona como um núcleo fascista, cada família. E tudo começa aí, o medo e a consequente servidão. Enquanto somos uma sociedade neurótica (e boa parte miserável material e mentalmente), outros, de berço de ouro desenvolvem uma personalidade criativa, carismática e dominante. É natural. E esses serão os donos do mundo, porque tiveram a sorte de não serem massacrados desde o nascimento. A democracia pura é uma ilusão, e o capitalismo, dos males é o menor.

João vitor Lovato daré
João vitor Lovato daré
3 anos atrás

Estava traçando meus mapas, e vim me permitir aos afetos que vcs smpre trazer pra mim por meio dessa razao inadequada. Bom demais o texto. Sinto sempre que to num rio lendo vcs. Algumas cooisas preciso me segurar, e ter mais tempo, outras me permito ser afetado por outra forma de ler. Nao tinha vindo ler as coisas de vcs no site, desde que comecei a estudar mais de Deleuze e Guatarri, tbm com vcs… e quando li “milhões de indivíduos sorrateiramente conectados ao fio da servidão” bateu forte …. (kkk mudou de cor aqui e eu n sei mudar)…… Ler mais >

Jorge Chasssira
Jorge Chasssira
4 meses atrás

wau, texto com todo rigor, radicalidade e globalidade que a filosofia exig. Desde ja, passo a reflectir emabalado em grande inquietude.