Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora”– Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos
Entre as acusações feitas a Espinosa, Ateu talvez seja a mais previsível. Vejam, o que mais poderiam dizer, no século XVII, de um filósofo que escreve “Deus é a natureza”? Que ia ainda mais longe ao dizer que os profetas são apenas homens de viva imaginação e que os dogmas se mantêm apenas por hábito. Claro que isso não poderia ser bem recebido.
A introdução do Tratado Teológico Político levanta uma bandeira de resistência para toda a filosofia. Lá, Espinosa apresenta um projeto de separar a filosofia da religião, assim como retirar da política a teologia. Como ele pretende fazer isso? Estudando de maneira racional e histórica as escrituras. Dissecadas etimologicamente e filologicamente, as histórias sagradas acabam por se tornar estórias antigas.
Espinosa percebeu melhor do que ninguém que um Deus empoderado significa um império da ignorância. Enquanto o povo acreditar que Deus é um soberano poderoso, viverá amedrontado sob o jugo de interesses alheios como os dos monarcas e profetas. Se a busca é por um conhecimento libertador, o dever do filósofo é desconfiar de um Deus assim.
Estão completamente enganados os que invocam a vontade de Deus sempre que não sabem explicar uma coisa. Que maneira mais ridícula de confessar a ignorância!”
– Espinosa, Tratado Teológico-Político, VI
Espinosa é Ateu? Só se o Deus que estivermos falando for este Ser transcendente, cuja eminência nos joga contra a terra. Deste Deus, ele com certeza duvidava. Não pode ser que Deus exista e crie coisas que não fazem parte dele. Por que um criador onipotente teria inventado o mal e se isentaria de aperfeiçoar a existência? Não faz o menor sentido!
Assim, Espinosa só pôde ter sido acusado de Ateu por ter sido um ferrenho crítico do Deus demasiado humano. Espinosa pensava Deus de outra maneira: se ele existe, então é porque tudo faz parte dele. Deus é a causa da sua existência e de tudo o que existe, ele é a absoluta potência produtiva, ele é a natureza.
Ou seja, é por ter proposto um Deus tão, mas tão diferente, que Espinosa foi considerado Ateu. Foi por ter negado um Deus poderoso e proposto um Deus potente que ele foi excomungado. É por ter apostado em uma natureza imanente, onde todos estão incluídos e participam de Deus, independente de suas crenças, que ele foi amaldiçoado. O povo eleito não pôde suportar tamanha afronta.
O filósofo holandês tornou-se rapidamente um demônio aos olhos dos profetas e um subversivo aos olhos dos monarcas. Mas de maneira nenhuma pode-se dizer que Espinosa era, no sentido estrito do termo, Ateu. Ele simplesmente propunha outra maneira de pensar o Ser, mas essa maneira era tão distante da tradição que parecia o seu negativo. Aos ouvidos de um ortodoxo, dizer que Deus é aquilo que existe exatamente da maneira como é pode muito bem soar como a afirmação da inexistência de Deus.
“Infelizmente, as coisas chegaram a tal ponto que os homens, fazendo abertamente profissão de não possuir qualquer ideia de Deus, e só conhecê-lo pelas coisas criadas (das quais ignoram as causas), não se sentem envergonhados de acusar os filósofos de ateísmo.”
– Espinosa, Tratado Teológico-Político, Cap.II
Em verdade, o que preocupava Espinosa não era provar se Deus existe, pois para ele o simples existir era a maior prova. A essência de Deus é ser causa de si mesmo, não há motivo para se estender nesse ponto, ele é evidente. O que de fato interessa é como se vive. Há, na filosofia espinosista, uma denúncia das paixões tristes. As superstições e ilusões que mantêm o homem separado de sua potência são aquilo que ele abominava e o que de fato movia seu interesse filosófico.
Na Ética, ele se dedica a descobrir um caminho que leve da servidão à liberdade. Nesse sentido, ele começa por recolocar Deus em um lugar que nos favoreça. É preciso libertar Deus de sua responsabilidade e defini-lo como pura necessidade. Deus não age por capricho, não realiza milagres, ele existe e produz segundo sua necessidade e essa é sua derradeira liberdade. O homem vive entre a esperança de ser beneficiado e o medo de ser castigado, pois acredita que Deus interfere no curso da existência por mera vontade.
Cada homem engendrou, com base em sua própria inclinação, diferentes maneiras de prestar culto a Deus, para que Deus o considere mais que aos outros e governe toda a natureza em proveito de seu cego desejo e de sua insaciável cobiça. Esse preconceito transformou-se, assim, em superstição e criou profundas raízes em suas mentes, fazendo com que cada um dedicasse o máximo de esforço para compreender e explicar as causas finais de todas as coisas.”
– Espinosa, Ética, I, Apêndice
Quem acredita que Deus muda o curso de sua natureza em seu proveito desperdiça o máximo esforço. Quem conhece o conceito de Conatus sabe o quanto isso é sério. É preciso cortar este mal pela raiz: aceitar que a natureza, a existência, a vida tem razões que nos ultrapassam em muito, mas nem por isso estamos justificados a acreditar em nossos delírios.
Ao contrário, é pensando a pura necessidade que conseguiremos encontrar alguma coerência. É tentando comungar com esse Deus no qual estamos mergulhados que talvez sejamos capazes de alguma liberdade. É tomando parte naquilo de que somos parte que uma vida potente pode abrir-se para nós. Para encontrar Deus, não temos que nos afastar de nossa natureza. Não devemos renunciar à vida na terra para encontrá-Lo de braços abertos no outro mundo, ao contrário, devemos buscar a melhor vida possível para salvar-nos ainda em vida.
O que justifica acusar Espinosa de Ateu é a sua descrença em um Deus opressor, mais nada além disso. E, nesse sentido, consideramos Ateu um grande elogio. Deus-Natureza é um verdadeiro convite para dançar. Nietzsche dizia que não acreditava em Deuses que não soubessem dançar, e nós sabemos o exímio bailarino que é o Deus de Espinosa.
Ótimo texto, tenho aprendido bastante desde que passei a acompanhar o trabalho de vocês.
Quero apenas apontar um erro de digitação que pode ter passado desapercebido: O homem vive “entra” -(seria entre?) – a esperança de ser beneficiado e o medo de ser castigado, pois acredita que Deus interfere no curso da existência por mera vontade.
Obrigado pela correção 🙂
Não temos revisores, então, acaba tendo uns errinhos.
Abraços, Alison!
Acredito que realmente seja “entre”, pois daria mais sentido contextual.
Talvez Espinosa diria: ” Permitam-me que eu interprete Deus assim, de forma que suas imaginações e hábitos tenham o mesmo poder de pensar diferente”.
Excelente texto, sintetiza muito bem a obra e pensamento de Espinosa.
Obrigado 🙂
Essa série de textos é uma boa introdução aos fundamentos do pensamento espinosista.
Também acredito nesse Deus que Spinoza descreve tão bem. Mas para grande parte Da massa isso ainda é uma heresia, pois ainda estão mergulhados nos dogmas e nas histórias metafórica e alegóricas da Bíblia.
Acho que não há necessidade de atacar a crença dos outros, a sua não é melhor do que a de ninguém e a de ninguém é melhor que a sua, muito menos uma é mais cientificamente embasada que a outra. Não faz sentindo ter aquilo qur você acredita como a verdade e e o resto como dogma, essa é a verdadeira ignorância.
Onde houve crítica às religiões na colocação do autor? Ele apenas comentou o pensamento de Espinosa sobre sua visão de Deus…
Porque espinoza foi chamado de ateu?
Qual a diferença entre o pensamento de um ateu e o pensamento de Spinoza?
No meu entender, Spinoza acreditava que deus era o universo. Os ateus acreditam no universo. não percebo diferença.
Deixo aqui manifestada minha gratidão pelo seu trabalho, simplismente formidável!
Espinosa ainda é desconhecido para mim, um amigo me falou sobre seus pensamentos acerca da existência divina e então comecei uma busca pela internet e encontrei seu trabalho e ratifico ser imprescidível, muito obrigado!
Valeu, Gustavo! Que bom que te ajudou. Vale muito a pena conhecer a filosofia de Espinosa. Um abraço!
Muito bom. Bastante esclarecedor.