De certa forma, a política atual da esquerda só pode ser uma política da indiferença”
– Vladimir Safatle, A Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome, p. 21
Nossa primeira luta é contra a desigualdade econômica (veja aqui). Mas o igualitarismo radical se soma, veremos, às demandas de reconhecimento na vida social. Portanto, nossa segunda luta é para que as diferenças não seja desigualdades, ou seja, sejam indiferentes. Aqui, Safatle argumenta de maneira contraintuitiva a respeito da:
Necessidade de uma ‘política da indiferença’. Uma maneira de compreender tal necessidade é partir da constatação do esgotamento da diferença como valor maior para a ação política”
– Vladimir Safatle, A Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome, p. 27
Tolerância Multicultural
A questão exige cuidado, pois as políticas de reconhecimento cultural e identitário fazem parte das pautas políticas da esquerda por todo o mundo. Onde está o problema então? Safatle afirma o perigo das pautas de reconhecimento perderem sua postura política radical e se tornarem simples pautas de tolerâncias culturais.
Pensar a diferença como o valor maior das lutas de esquerda, seja no campo sexual, racial ou de gênero, é cair em uma armadilha ideológica. É claro que estas demandas têm enorme importância dentro de nossa sociedade! Ainda mais se pensarmos na sociedade brasileira. Mas essas lutas correm o risco de caírem na exigência de mera tolerância multicultural e igualdade na opressão.
Uma sociedade verdadeiramente multicultural é uma sociedade radicalmente universalista e indiferente às diferenças”
– Vladimir Safatle, A Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome, p. 35
Onde está o erro? Quando problemas sociais fundamentais deixam a esfera política e se transformam em conflitos culturais. Não podemos cair em uma alternativa fácil de aceitações identitárias. O multiculturalismo estagnado pode impedir a verdadeira liberdade. Um problema de desigualdade social profunda, um problema grave de desigualdade política se transforma em choque civilizatório, questão cultural, demanda por aceitação e tolerância.
A Direita também ama a diferença
Estamos seduzidos pela ideia de diferença, mas não podemos esquecer que ela é um dos conceitos filosóficos mais capturados pelo capitalismo. Por isso cuidado, há perigo na esquina! A direita também ‘ama a diferença’, e Deleuze já nos alertava disso. Nos discursos, nos comerciais de televisão, nas prateleiras de supermercado vemos a diferença de direita se manifestar com Jingles e Slogans criativos. Claro, mas para organizá-la dentro de uma estrutura hierárquica. A organização classificatória e normativa também faz uso da diferença que tanto amamos, mas no campo meramente predicativo.
Esquecemos o conselho básico: Rótulos limitam. Em nossa sociedade, todas as diferenças são celebradas e convidadas a participar. Sim, mas desde que se sujeitem a certas regras: o negro, por exemplo, não precisa mais alisar o cabelo, desde que compre o produto X para cabelos crespos especialmente desenvolvido para ele; o homossexual, agora pode se casar, tudo bem, mas não precisa escandalizar as famílias de bem ao beijar seu companheiro em público; a mulher pode conseguir postos de trabalhos, sem problemas, mas sempre sujeitando-se ao padrão de beleza imposto e mantendo seu comportamento feminino. Ora, a diferença aparece constrangida pela desigualdade! É isso que a esquerda quer?
Em que condições a diversidade pode aparecer como a modulação de uma mesma universalidade em processo tenso de efetivação?”
– Vladimir Safatle, A Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome, p. 30
A direita fala de uma diferença homogênea, submetida, escrava do capitalismo: o sujeito é assujeitado, o predicado é a diferença inofensiva permitida pelo capital. Mas a diferença para nós é primeira! Temos que efetivá-la da maneira radical! Eis o paradoxo: A direita nos fala de diferença, mas todos terminam sempre iguais, enquanto a esquerda fala de igualdade como único meio possível de uma singularidade real e potente. Sendo assim, a diferença é consequência de muito trabalho em busca da igualdade!
Indiferença:
“Ele tem duas mães?” – Perguntou o pai, estarrecido
“Ele tem duas mães…” – Respondeu a criança, indiferente.
A política da diferença deve buscar a indiferença, alcançar o estágio onde a diferença é indiferente, acolhida calmamente, sem alarde, quase sem ser notada. Afinal, fixar os sujeitos em paradigmas identitários, todos sabemos, não seria liberdade, mas apenas um outro tipo de prisão. A esquerda precisa ter para si esta postura clara e determinada: a busca pela indiferença não é incompatível com a presença das mais variadas singularidades e com a busca pela igualdade. Enquanto a direita afirma as diferenças apenas para regulá-las e excluí-las, a esquerda abraça a diferença sem abrir mão, nem por um momento, da igualdade.
Hospitalidade Incondicional
Aqui, Safatle utiliza uma ideia que Derrida define como Hospitalidade Incondicional. Ou seja, a aceitação completa e incondicional das diferenças gera uma hospitalidade indiferente. Numa defesa da igualdade das singularidades, é possível oferecer direitos a todas as diferenças para que se manifestem igualmente de maneira singular.
Nação e estado devem ser assim absolutamente indiferentes às diferenças, no sentido de aceitá-las todas e esvaziar a afirmação da diferença de qualquer conteúdo político. O espaço do político não deve ser marcado pela afirmação da diferença, mas pela indiferença absoluta em relação a qualquer exigência identitária”
– Vladimir Safatle, A Esquerda Que Não Teme Dizer Seu Nome, p. 31
Conclusão
A identidade ainda age dentro da lógica da exclusão, ela é uma arma frágil para a esquerda. Contra a identidade estanque Safatle oferece uma pauta mais eficaz, a alteridade aberta. Diferenças que se articulam dentro de processos fluidos e transitivos, erráticos. Diferença é singularidade: a capacidade de expressão livre e individual de cada um no meio em que vive. A chance de agir e pensar de modo único, natural e livre.
Safatle nos convoca a ir adiante, não nos tornarmos presos às diferenças identitárias. A busca por reconhecimento, tolerância e respeito é essencial, mas não produz mudanças radicais. Aqui torna-se clara a distância política entre, por exemplo, uma identidade feminina (inserida numa sociedade exploradora) e um devir-mulher (aberta para novos modos de vida). Ou seja, os problemas das minorias não acabam com o reconhecimento de suas identidades, apenas começam.
Este é um ponto maior de impotência: a luta por reconhecimento funciona atualmente como uma espécie de compensação à inexistência de um discurso econômico de esquerda com clara força de transformação e com capacidade de implicar as classes empobrecidas. Conseguimos transformar tais pautas, profundamente justas em si, na única modificação concreta que a esquerda é capaz hoje de oferecer, já que estamos todos comprometidos com a gestão do mesmo modelo econômico, divergindo apenas sobre a intensidade da aplicação das mesmas políticas. Nossas lutas, entretanto, não devem ser organizadas a partir de tais pautas; devem ser geradas a partir delas, o que é algo totalmente diferente do que vemos hoje”
– Vladimir Safatle, Só Mais Um Esforço, p. 36
Penso que Políticas identitrárias têm funcionado muito mais para “destacar” minorias tornando-as alvo de reações conservadoras, do que de fato inserir essas minorias ao todo do tecido social.
Parece que tentou-se reprimir comportamentos preconceituosos com implantação de leis, antes de uma efetiva educação inclusiva que considere a pluralidade sócio-econômica do país tendo resultado em mais agressividade e violência.
Complicado tentar impor visão de mundo escandinava aos sertões e veredas brasileiras antes de sanar velhos déficits como habitação, educação básica, saúde, ssneamento., etc.
Muito bem dito Paulo, dentre tantos erros esse foi o maior no que se refere às políticas identitárias.
Devo divergir de Safatle em alguns pontos, mas também convergir. Primeiramente, a ideia de indiferença em relação às lutas identitárias sob o discurso de indiferença às singularidades é um problema enorme, pois é muito difícil separar identidade e singulardade se compreendermos a primeira como instrumento político de afirmação da própria subjetividade (não sendo, necessariamente, uma fixação essencialista) e a segunda como a expressão de uma subjetividade que se quer afirmar. Em segundo lugar, a indiferença não é constitutiva de qualquer relação de poder, o que nos leva à conclusão de que ser indiferente quanto à cor da pele, ao gênero,… Ler mais >