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O aqui e agora. Este momento que estamos vivendo, ele passou? Sim, como um rio que não para de fluir, não é? O presente já virou passado, não estamos mais na primeira frase do texto. O presente passa, é engolido pelo passado, some. O presente, coitado, não possui consistência… ele é este ponto mínimo que se esvai. Ele é tragado pelo passado, se perde nele, morre em seu leito. Mas… para onde vai? O que acontece quando o presente cai no abismo insondável do que não está mais aqui? O senso comum diz: o que passou, passou, acabou, já era. Bergson responde filosoficamente: o que passou não está no passado, está aqui. Esta é a inversão totalmente contra-intuitiva que Bergson realiza de maneira genial. No lugar de um buraco negro tragando tudo ao seu redor, temos agora a impressão de uma brisa suave que sopra. Bom, será nossa tarefa explicar esta afirmação.

O senso comum pensa o passado como algo similar ao espaço, diz que o passado está para trás, como uma peça que se move em um plano. Como se pudéssemos virar o rosto e encontrá-lo. O passado é algo que se esvai, pouco a pouco se torna mais fraco, distante, longínquo, pálido, empoeirado. Um retrato desgastado, que vai sumindo. É isso o passado? Algo que foi? Algo que está perdido? Como um ponto que fica para trás?

Ora, onde está então o passado? Se levantarmos a cabeça e procurarmos certamente não o encontraremos. Onde ele está? Queremos encontrá-lo! No cérebro, talvez, numa gaveta empoeirada da nossa mente? Em nossa memória? Escondido dentro de onde? Poderíamos simplesmente responder: “ora, o passado é só passado e pronto! Não há porque se preocupar! Esqueça!”. E nossa reação, ao pensarmos o tempo desta maneira, não poderia ser outra: “temos que viver o aqui e agora! Urgentemente! Carpe Diem!”.

“Vamos nos abraçar! Apenas o instante é que realmente importa! Viva o momento! Vamos pular de para-quedas! Viva a adrenalina e as emoções!” Não, dirá Bergson, a memória é o que dá o substrato da consciência! Este presente absoluto é perder-se de si mesmo. Por que gostaríamos de nos perder assim de nós próprios? Bergson jamais recomendaria isso, pois segue na direção oposta, para ele o passado nunca é realmente passado e jamais pode ser conjugado no pretérito perfeito.

Nossa duração não é um instante que substitui o outro instante: nesse caso, haveria sempre apenas presente, não haveria prolongamento do passado no atual, não haveria evolução, não haveria duração concreta. A duração é o progresso contínuo do passado que rói o porvir e incha à medida que avança

– Bergson, Evolução Criadora

A questão é: à medida que avança, roendo o porvir, ele se conserva, ele dura. Já vimos, o passado é duração, ele invade o tempo atual, ele está aqui. Ou seja, quem somos nós senão exatamente o nosso passado, absolutamente presente, concreto, neste momento? Uma brisa soprando, empurrando o barco adiante. Essa coisa do tempo pretérito ser como uma linha anterior e o instante como um ponto cria toda a sorte de ilusões, pois faz pensar que o futuro é um porvir e que uma parte não tem nada a ver com a outra. Pois nós dizemos que é tudo uma coisa só, o passado é uma coisa que cresce, incha, nada se perde, ele ultrapassa o presente em direção o futuro.

O passado se conserva por si mesmo, automaticamente”

– Bergson, A Evolução Criadora

Muito bem, podemos dizer então que o passado não está guardado em lugar nenhum! Porque não é algo físico, pretérito não é algo espacial, que se dispõe em um plano. Estamos falando de tempo, precisamos pensar diferentemente! Perguntar onde está o que já aconteceu é cair no erro de perguntar de maneira quantitativa algo que é qualitativo.

O trompete lembra as notas que tocou? Onde está a memória do trompete? Talvez guardada em sua essência? Não, o trompete é apenas uma máquina complicada, matéria alterada. Se nós não sabemos tocá-lo é porque ainda não há memória o bastante em nós. Entregue o instrumento a um músico profissional e ele tocará notas que nem sabíamos que estavam lá. A memória é apenas uma maneira de passar, uma maneira diferente de fluir. Nosso agir, nosso próprio viver se faz através da maneira como o mundo nos toca.

– Fabian Oefner

Da mesma maneira que só apreendemos uma parte do espectro de luz (não vemos infra-vermelho nem ultra-violeta), o mesmo acontece com nosso passado. Ele está aqui, por inteiro, em nós, nos constituindo neste momento, mas temos apenas uma parte dele na nossa consciência. Sentimos que somos algo mais concreto que o presente fugidio, nós temos uma história, somos parte de algo que continua acontecendo, que cresce enquanto avança, se acumula. Não é bonito?

Vimos ao falar da percepção que mesmo o presente se constitui de um pouco de passado, ele é mais tanto memória quanto percepção! Porque o passado invade o presente, estende seus tentáculos, está aqui agora. Reconhecemos as letras e palavras que estamos lendo, esse processo se deu em outro momento de nossas vidas, mas é atualizado agora. Concluímos que estamos lendo um texto de filosofia, por algum interesse particular, e esse interesse antigo se atualiza no aqui e agora, para dar sentido ao que está sendo feito. Tudo dura, tudo é atual.

Afinal, como lembramos de nosso cachorro? E como ele lembra de nós? Certamente não é apenas pelo presente que se mostra, mas por todas as lembranças que temos dele, dos momentos juntos, das experiências pelas quais passamos. Se ele abana o rabo, é porque o passado ainda permanece no presente, e se atualiza. Se ele vem em nossa direção é porque o passado o empurra para nós. Nosso ser se constitui como duração, que mantém para si tudo que pode nos ser útil.

Se abraçamos a pessoa amada é porque nossas lembranças estão no presente. Se a abraçamos é porque se atualiza em nós um antigo amor. O passado está encarnado no presente, ele é o vento que infla as velas do barco que navega. Podemos sentimos o seu sopro em nós. Em diferentes graus de atualização, mas é ele que dá sentido ao instante. Enquanto a estrutura interna do presente é passar, é fugir, o passado se avoluma, cresce. Conclusão filosófica: O instante não é, enquanto o que foi, é.

De modo geral, de direito, o passado só retorna à consciência na medida em que possa ajudar a compreender o presente e a prever o porvir: é um batedor da ação”

– Bergson, Energia Espiritual

Não é que o instante que passa, e então vira aquilo que não é mais. É exatamente o contrário! O passado que pressiona o presente para frente. A vida inteira entendemos errado! Em vez do presente passar e deixar de existir, é o passado que está suposto no presente, e o pressiona adiante. O passado é a condição de existência do presente, para que este faça sentido e se abra em novas direções. Não é lindo? Essa passagem, essa diferença, essa inversão é difícil de pensar em um primeiro momento. O passado coexiste com o presente, simultaneamente, enriquecendo-o, dando-lhe diferentes tonalidades. Somos ao mesmo tempo presente e passado, coexistindo. Uma duração contínua que se atualiza.

Nós vivemos no meio do passado e do presente, da memória pura e da percepção. Somos como a vela do navio que se estende para captar todo o passado possível, ventando e empurrando o barco para frente, a quilha da embarcação corta o presente em direção ao porvir: novas terras se anunciam. Toda a questão está aí! Como se faz esse intercâmbio, essas passagens? A intenção de Bergson é compreender o ponto onde a a memória toca a percepção, onde o espírito toca a matéria. Ou, em outros termos, como a memória se atualiza em ação.

Texto da Série:

Memória

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Renato Vieira
Renato Vieira
5 anos atrás

Belo texto, Rafael. Foi um prazer preencher meu passado-presente com seus escritos filosófico-poéticos.

Vera Castro
Vera Castro
5 anos atrás

Essa série de textos do Bergson está demais! Obrigada!

Douglas
Douglas
2 anos atrás

Excelente