Foi Kant quem fez a distinção: o que se mostra para nós, fenômenos; o que não se mostra para nós, a coisa em si mesma. Mas foi Schopenhauer quem tomou para si a tarefa de decifrar este mistério. Para isso, saltou para dentro de si, o corpo era o melhor caminho, mas dentro da caverna se abria ainda outra caverna, desta vez mais assustadora. Ao atingirmos o fundo do abismo, o enigma da coisa em si, encontramos a Vontade em si mesma! Olhando para cima, vemos os fenômenos, distantes, mirabolantes, cheios de movimentos inúteis e desnecessários.
Schopenhauer, eterno devedor de Kant, chegou ao limite! Para além dos fenômenos encontramos a decifração do enigma, da essência do mundo: a Vontade. Onde Kant recuou, Schopenhauer seguiu adiante! O que há por detrás do véu de Maia? O que se escondia das respostas científicas e religiosas? Não é a clareza, não é a luz da razão, não é um mundo melhor, não é a salvação! É apenas e eternamente a Vontade.
Onde se descreve o procedimento mais original e mais importante de minha filosofia, qual seja, a passagem, que Kant declarara impossível, do fenômeno à coisa em si”
– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação, parte 2
O problema é que esta Vontade não quer nada de objetivo, não tem um rumo, não busca uma unidade ou um fim. A Vontade é o plano de imanência de Schopenhauer! Este plano é vivido em toda a sua pureza somente se deixarmos os fenômenos de lado. É nela que tudo se passa! Ela é o plano onde todas as forças circulam. Ela é a origem de tudo, o motor-imóvel. O vir-a-ser é a parede na qual se rebatem os fenômenos, que, em sua pureza, só podem ser considerados Vontade, e nada além disso.
Podemos nos consolar, voltar para a superfície, olhar as coisas, analisá-las, falar sobre elas. Mas não podemos esquecer a escuridão que vimos. Somos o mito da caverna ao contrário. Olhamos o abismo e ele nos olhou de volta. Todos os fenômenos inorgânicos são forças primordiais que são assimiladas pelo reino vegetal, dando-lhes outro rumo, outra racionalidade. Estas mesmas forças vegetais são apropriadas pelas forças animais que as consomem, digerem, absorvem, dando-lhe novamente outro sentido. Esta luta de todos contra todos chega no homem, que se acha no meio desta guerra travada desde todos os tempos, por todos os seres orgânicos e inorgânicos. Esta angústia é vivida exatamente da mesma maneira internamente, em nossos pensamentos, volições, desejos, fantasias.
A Razão é apenas um ponto ínfimo, um barquinho frágil buscando não afundar neste mar de forças caóticas e indiferentes. Continuamos próximos de Kant, mas agora muito distantes de seu otimismo da razão. Os fenômenos podem ser organizados pelo intelecto, mas a Razão Pura soçobrou diante da Vontade, que faz uso dela da maneira que mais lhe apraz, tornando a Razão mera serva da Vontade. O que há abaixo das coisas não é uma benevolência divina e organizadora, é uma força atroz, cega e insaciável.
Há aqui a completa inversão! E ela será definitiva! Podemos pensar na imagem de um iceberg, a representação é a força da consciência que se eleva acima do mar, mas a grande potência de sustentação, que permite a consciência, é um acúmulo de forças primitivas e disformes organizadas pela brutalidade das mais variadas formas da vida. Se, no campo dos fenômenos, o mundo é nossa representação; do ponto de vista da Vontade o mundo é força irracional, se manifestando, se expressando através dos fenômenos.
Do corpo chegamos analogamente à natureza. Mas agora podemos ver que a Vontade é um conceito que se tornará cosmológico, ela é a essência íntima de absolutamente tudo. A decifração do enigma do mundo: tudo, sem exceção, é Vontade. A coisa em si, a verdade íntima e indestrutível de todas as coisas, todas as manifestações, presente na menor partícula do universo, nas galáxias e na consciência dos homens.
O mundo como Representação é um carrossel que gira em torno de si mesmo, um caleidoscópio, um fogo fátuo. O mundo como Vontade é um motor imóvel, absoluto. O mundo como Representação é um teatro de marionetes movido por fios invisíveis. O mundo como Vontade é a necessidade cega desta peça não ter destino, não ter um ato final. O mundo como Representação é a consciência calma que mede as coisas e prevê sua trajetória. O mundo como Vontade é o fundamento sem fundamento, o uno que se manifesta em todas as pluralidades e para todos os lados ao mesmo tempo, o eterno que faz o tempo e espaço rodarem. Tudo isso para nada! Tudo isso a troco de nada!
Esse insano desperdício coloca-nos em assombro”
– Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação II, Cap26
Rigorosamente falando, por mais paradoxal que pareça, a Vontade quer, sem saber o quê. Ela não quer nada de específico, não é uma flecha seguindo em direção determinada. A Vontade quer. Simplesmente isso. E nós, nesta condição, enquanto sujeitos do querer, jamais obteremos felicidade e paz. Afinal, todo querer nasce de uma necessidade, de uma carência, de um sofrimento, de uma necessidade ontológica. A satisfação põe fim ao sofrimento, mas para cada desejo satisfeito nascem dez novos, como da Hidra de Lerna brotam novas cabeças.
Que mundo é esse que Schopenhauer propõe com sua filosofia? Ora, com certeza não é um mundo platônico, recheado do Bom, do Belo, do Justo e do Verdadeiro; com certeza não é um universo kantiano regulado pelo otimismo da Razão; também está a anos luz de distância do melhor dos mundos, de Leibniz. Se fosse obra de alguma divindade, só poderia ser concebido por um deus muito, muito cruel! Mas aí está, o filósofo mergulhou na caverna, vislumbrou a escuridão mais tenebrosa, encontrou seu plano de imanência, seu incondicionado, e agora volta para contar aos outros. Quais seriam as repercussões desta descoberta?
Mais um texto muito bem pensado e muito bom de Rafael Trindade.
Brilhante
Muito bom!!! Explicou muito bem!