A inteligência é um dos resultados da evolução, um de seus mais preciosos produtos. Isso significa que das mais divergentes linhas e direções que a vida segue, uma delas desemboca na inteligência. Desta maneira, só podemos concluir que ela é uma de suas ferramentas, é isso que veremos. Mas antes seria melhor comparar estas duas soluções que a natureza encontrou:
Há dois métodos diferentes de ação sobre a matéria inerte”
– Bergson, A Evolução Criadora, p. 102
Em primeiro lugar temos o instinto, sendo este a capacidade de utilizar e construir instrumentos organizados. Do outro, a inteligência, como a faculdade de fabricar e empregar instrumentos inorganizados. Enquanto o primeiro se especializa em utilizar os próprios órgãos do corpo, como o bico para comer sementes, ou a teia para pegar insetos; o segundo se especializa em criar seus instrumentos, uma pedra lascada que servirá para caçar e abrir um animal, ou cortar madeira e construir uma canoa. O instinto faz um movimento convergente; a inteligência, divergente. Aquele se fecha, este, se abre.
Instinto e inteligência implicam duas espécies de conhecimento radicalmente diferentes”
– Bergson, A Evolução Criadora, p. 106
Enquanto no instinto nós temos todos os animais que evoluem prioritariamente para usar seus próprios órgãos do corpo: asas, bicos, dentes, pinças, antenas e etc; do outro lado encontramos os seres humanos que se desdobram para fora, construindo instrumentos que ampliam sua capacidade de agir no mundo.
Tudo somado, a inteligência, considerada no que parece ser sua manobra original, é a faculdade de fabricar objetos artificiais, em particular utensílios para fazer utensílios, e variar indefinidamente sua fabricação”
– Bergson, A Evolução Criadora, p. 104
Nossa inteligência quer fabricar coisas, ela contempla o mundo como um grande reservatório para suas criações e invenções. O mundo é seu playground. Sua principal matéria prima? O sólido inorganizado. Seu grande objetivo? Dar-lhe uma forma útil para suas necessidades e ações, ampliar sua capacidade de agir no mundo. É da imobilidade que ela parte, do plano da matéria. Apenas lá se sente à vontade. É na ciência que a inteligência chega, indefectivelmente.
A inteligência assume o ponto de vista das coisas que não mudam, do imóvel. Ela sempre pensa a mudança como algo que vem de fora. E ela não está errada, é um ponto de vista possível. A coisa está lá, e vem outra de fora e a muda. É neste ambiente que ela sente bem! No meio de objetos inertes, para encontrar suas articulações possíveis, suas combinações. É da inteligência observando o plano que nasce a geometria, é o intelecto observando as coisas que cria a matemática.
Caso passássemos em revista as faculdades intelectuais, veríamos que a inteligência só se sente à vontade, só está totalmente em casa, quando opera sobre a matéria bruta, em particular sobre os sólidos”
– Bergson, A Evolução Criadora
A inteligência foi uma perspectiva que a natureza adquiriu de si mesma. Ela age sempre no espaço, se abre para o fora, e busca aumentar sua capacidade de receber e devolver estímulos. É um ponto de vista, uma maneira de pensar, e portanto uma maneira de agir. As tecnologias são mãos e olhos! Um telescópio é um olho amplificado. A faca, o garfo, são mãos estendidas. Um satélite é um ouvido que fica sobre nossas cabeças. Um carro são pernas velozes.
A inteligência só consegue lidar com o que é igual, ela traça um retrato imóvel da matéria onde nada se distingue de nada. Plano quadriculado, tudo pode ser dividido e colocado em outro lugar. Ela precisa do descontínuo para atuar, sabe lidar apenas com imagens. Mas, argumentarão, os objetos se não se movem? Sim, a inteligência sabe disso, ela não é burra (com o perdão do trocadilho). O movimento existe, mas ele se faz sempre sobre um plano quantificado, o objeto X se movendo do ponto A para o ponto B. Tudo medido e calculado, nada mais interessa.
Mas depois de todo um caminho percorrido, entre Duração e Memória, sabemos agora que não cairemos no conto do vigário, pensando que a inteligência nos dará todas as respostas. Certamente é contraintuitivo, afinal, somos os famosos seres racionais, homo sapiens sapiens. Mas não pensamos apenas com a Razão, e sim, ela possui suas limitações.
Apesar de extremamente útil, a inteligência não foi feita para pensar a continuidade. Seus movimentos são mecânicos, seu objeto de estudo, inerte. Ela é uma ferramenta indispensável para nossos tempos (e é realmente uma pena que alguns a usem tão pouco), mas certamente não dará conta da realidade como um todo, pois sua própria maneira de atuar já é limitada. Bergson justifica que ela consegue perceber apenas um lado da existência, a matéria pura (sendo o outro lado a Duração Pura).
Apostarmos todas as fichas no intelecto e na razão é como pensar que podemos efetuar qualquer conserto apenas com um único instrumento. Um martelo, por exemplo, não é o bastante, precisamos de uma caixa de ferramentas, ou tudo que faremos será martelar as coisas por onde passarmos. Mesmo um intelecto sobre-humano não saberia dizer as direções que a vida segue, uma vez que o caminho não está traçado de antemão e não pode ser calculado com fórmulas e operações matemáticas.
Há coisas que apenas a inteligência é capaz de procurar, mas que, por si mesmo, não encontrará nunca. Essas coisas, apenas o instinto as encontraria; mas não as procurará nunca”
– Bergson, A Evolução Criadora, p. 112
A evolução explica a inteligência. Mas a inteligência não é capaz de explicar os caminhos da evolução. O intelecto cria ferramentas, e isso já é ótimo, mas ele não consegue dar passos além. Por isso, depois da descoberta do Big Bang, foi tão difícil conceber o universo como se expandindo, ele deveria sempre, de alguma maneira, permanecer no mesmo lugar, estacionário. Pela mesma razão tivemos dificuldade em aceitar que a vida evolui, os animais deveriam estar sempre aí, da mesma maneira. É difícil aceitar o novo. A inteligência anseia pelo equilíbrio, pelo ponto final, ela não concebe a continuidade e a duração a menos que seja violentada pela intuição.
Limitemo-nos a dizer que o estável e o imutável são aquilo que a nossa inteligência se prende em virtude de sua disposição natural. Nossa inteligência só concebe claramente a imobilidade”
– Bergson, A Evolução Criadora
É preciso aqui muito cuidado porque não estamos fazendo uma apologia à ignorância. Isso nunca! Estamos apenas indicando o momento em que a razão encontra seus limites. O diagnóstico do intelecto não pode fechar a porta para as mudanças imprevistas. A inteligência não pode nunca se dar o direito de fechar a realidade, simplesmente porque a realidade está muito acima dela!
É nossa responsabilidade retirar a inteligência do campo do “é assim” e levá-la para o campo do “está se fazendo assim”. A vida sempre será maior que nossa capacidade de submetê-la às nossas fórmulas matemáticas. E isso é bom! Sinal que a ciência sempre terá outro desafio pela frente! Toda a questão, para Bergson, é mostrar que o intelecto é um instrumento da evolução da vida, e é assim que deve permanecer.
A vida transborda a inteligência”
– Bergson, A Evolução Criadora, p. 41
Resta entender o que seria essa força que nos move e que ultrapassa nossa capacidade de entendê-la racionalmente. Bergson a chama de Elã Vital, aqui entra a filosofia.
Podemos dizer que a inteligência, ou intelecto, faculdade humana centrada na consciência, é diferente do pensamento, atributo da Natureza, portanto inconsciente, seguindo Espinosa?) Se sim, o que transborda a inteligência humana é o pensamento da Natureza? Isso pode ser traduzido por força vital, por conatus? Isto seria equivalente ao Élan Vital?