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Foucault quer mostrar que a governamentalidade (base para a Biopolítica) se concretiza através de mecanismos heterogêneos e inesperados, como por exemplo a religião cristã. Ou seja, na genealogia da Biopolítica está o poder religioso.

A imagem de que um Rei, um Deus, ou um Chefe seja o pastor e os homens o seu rebanho está em várias religiões do oriente mediterrâneo. No Egito, na Assíria, na Mesopotâmia, mas, principalmente, entre os Hebreus.

Mas o pastor também é uma metáfora rara no vocabulário grego. Há apenas uma exceção: Platão. Claro, quem mais seria? Mesmo assim, o filósofo grego não utiliza a imagem como definitiva para o político, ele a substitui pela do tecelão.

Ou seja, a história do pastorado começa realmente apenas com o advento do cristianismo. Cristo se sacrifica na cruz para trazer de volta o seu rebanho para o bom caminho. A igreja deve, a partir de então, guardar, as ovelhas, cuidar do rebanho. 

Ou seja, ao longo de toda a sua história, o cristianismo, e suas técnicas de subjetivação, manteve-se, essencialmente, afastado do poder. Enquanto o Rei é Rei, o Pastor é Pastor. Poder Místico e soberano separados: “Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21)

Em sua tecnologia interna, o poder pastoral vai permanecer absolutamente específico e diferente do poder político, pelo menos até o século XVIII”

– Foucault, Segurança Território e População, p. 205

Foucault quer mostrar como o tema do pastorado se transformou em ferramenta do poder político, e passou a fazer parte da governamentalidade. Num primeiro momento, parece que são duas coisas absolutamente diferentes: a soberania é o poder de um Rei sobre um território, súditos, enquanto o pastorado é o poder do Pastor sobre um conjunto de pessoas escolhidas, um rebanho. Ou seja, o poder do Pastor não é sobre um território, mas sobre uma multiplicidade em constante movimento.

O pastorado no cristianismo deu lugar a toda uma arte de conduzir, de dirigir, de levar, de guiar, de controlar, de manipular os homens, uma arte de segui-los e de empurrá-los passo a passo, uma arte que tem a função de encarregar-se dos homens coletiva e individualmente ao longo de toda a vida deles e a cada passo de sua existência”

– Foucault, Segurança Território e População, p. 219

A condição da governamentalidade, segundo Foucault, nasce quando o poder pastoral começa a se misturar com o poder imperial. Ela é o pano de fundo de um processo que se espalha por todo o campo político. E daí nasce o Estado de Polícia.

Qual o objetivo da pastoral? Ora, muito simples, a salvação do rebanho, zelar por ele. O pastor não pensa em si mesmo, apenas em suas ovelhinhas.

O poder pastoral é um poder de cuidado. Ele cuida do rebanho, cuida dos indivíduos do rebanho, zela para que as ovelhas não sofram, vai buscar as que se desgarram, cuida das que estão feridas. O pastor zela por seu rebanho, está a serviço dele, é seu intermediário”

– Foucault, Segurança Território e População, p. 170

Mas o poder pastoral é, acima de tudo, um poder individualizante. Afinal, o pastor deve reconhecer todas as suas ovelhas com facilidade, cada uma delas com um único olhar, sem exceção. 

Foi a igreja cristã que coagulou todos esses temas de poder pastoral em mecanismos precisos e em instituições definidas, foi ela que realmente organizou um poder pastoral ao mesmo tempo específico e autônomo, foi ela que implantou seus dispositivos no interior do Império Romano e que organizou, no coração do Império Romano, um tipo de poder que, creio eu, nenhuma outra civilização havia conhecido”

– Foucault, Segurança Território e População, p. 174

Aprendemos, durante séculos, que somos ovelhas entre ovelhas, e devemos nos portar como tal. Há séculos pedimos a salvação e ansiamos por pastores que possam cuidar de nós. “O senhor é o meu pastor, nada me faltará” (Salmos 23:1). O pastorado exerce exatamente esta função: está intimamente relacionado com a ideia de salvação, lei e verdade. Condução das condutas em direção a um lugar melhor.

Ao mesmo tempo, guia para a salvação das almas, prescrição da melhor Lei e ensinamento da verdade:

  • Salvação: o pastor deve estar disposto a sacrificar-se por suas ovelhas (ou pelo menos fingir que está) e as ovelhas devem trabalhar para a salvação de sua própria alma. Como? Através da sutil economia dos pecados e das obras, méritos e deméritos. O pastor conduz suas ovelhas até que, finalmente, Deus decida.
  • Lei: obediência a Deus e ao pastor, seu intermediário. É simples: Deus prescreve as leis, o pastor as recebe, cabe ao rebanho apenas obedecer. Há aqui uma dependência integral, uma relação de submissão, uma hierarquia clara. O indivíduo se coloca nas mãos de seu pastor. Até que, pela graça divina, alcance o estado de confiança e obediência absoluta e irrestrita. 
  • Verdade: o pastor carrega consigo a Verdade e deve ensiná-la, mostrar o caminho, com seus exemplos e exortações. Deve guiar a consciência do rebanho que pode estar perdido e confuso, para que assim tome a melhor direção. 

O pastorado preludia a governamentalidade. E preludia também a governamentalidade pela constituição tão específica de um sujeito, de um sujeito cujos méritos são identificados de maneira analítica, de um sujeito que é sujeitado em redes contínuas de obediência, de um sujeito que é subjetivado pela extração de verdade que lhe é imposta”

– Foucault, Segurança Território e População, p. 243

O poder pastoral é ao mesmo tempo totalizante, todas as ovelhas, e individualizante, cada uma delas. O sujeito é assujeitado através de intervenções individuais que o preparam e levam ao universal. É fácil ver como isso se reflete na macroliberdade pregadas pelo liberalismo que só é possível exercendo-se através de micropoderes sobre uma multiplicidade. O pastoreio é o trabalho sujo sobre as subjetividades.

O poder do pastor se exerce menos sobre um território fixo do que sobre uma multidão em deslocamento rumo a um objetivo; ele tem como papel fornecer ao rebanho a sua subsistência, zelar cotidianamente por ele e assegurar sua salvação; enfim, trata-se de um poder que individualiza, concedendo, por um paradoxo essencial, tanto valor a uma ovelha quanto ao rebanho inteiro”

– Foucault, Segurança Território População, p. 490

Desta maneira, Foucault revela como o poder passou lentamente de “vivemos na terra do Rei” para “seremos conduzidos da maneira correta em direção ao bem e salvação de todos”. O governo liberal promete não interferir na economia, mas necessita constantemente pastorear e criar inescrupulosas condições estruturais e subjetivas para que tudo funcione corretamente. 

O poder se dá agora sobre as almas, sobre as vontades, os desejos, os interesses. O pastorado se encarrega desta conduta das almas. Não é o sujeito que pensa sua conduta, sua conduta é pensada pelo poder. Qual o objetivo pastoral liberal? Tornar o sujeito tanto mais incitado pelo funcionamento do mercado quanto mais fechado para outras possibilidades.

Se antes as ovelhas iam à igreja, hoje vão ao mercado, com suas parcas economias, submeterem-se à palavra dos pastores do dinheiro.

Texto da Série:

Biopolítica

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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