Generalizar de fato a forma ‘empresa’ no interior do corpo ou do tecido social; quer dizer, retomar esse tecido social e fazer que ele possa se repartir, se dividir, se desdobrar, não segundo o grão dos indivíduos, mas segundo o grão da empresa”
– Foucault, Nascimento da Biopolítica
A generalização da forma empresa é a formação de um indivíduo que passa a ver, pensar e agir sempre pela ótica da empresarial. Ele fala de liberdade, como liberdade de empreender. Ele inscreve sua vida como indivíduo utilizando a ótica e os conceitos empresariais.
Afinal, nós somos o que? Micro empresas individuais, não é? Somos pequenas empresas querendo fazer grandes negócios? Somos microempreendedores procurando o lucro. Todos nós somos profissionais autônomos, queremos ter o nosso próprio negócio, ganhar o nosso dinheiro.
Pois é, o circo está armado. A partir daí todo o nosso raciocínio será levado para este lado. O modelo do investimento-custo-lucro torna-se nosso horizonte. Trata-se pura e simplesmente de uma economização irrefreável da vida.
Somos microempresas individuais no meio de outras microempresas individuais. Não indivíduos, somos sociedades anônimas de capital aberto; não somos trabalhadores, somos microempreendedores; não somos uma classe, somos concorrentes no mercado de trabalho. Todos nós estamos apenas preocupados em sobreviver na selva monetária de boletos e empréstimos. Afinal, nesta competição empresarial, apenas os mais fortes sobrevivem.
O neoliberalismo americano se apresenta evidentemente com uma radicalidade bem mais rigorosa ou bem mais completa e exaustiva. No neoliberalismo americano, trata-se de fato e sempre de generalizar a forma econômica do mercado. Trata-se de generalizá-la em todo o corpo social, e generalizá-la até mesmo em todo o sistema social que, de ordinário, não passa ou não é sancionado por trocas monetárias. Essa generalização de certo modo absoluta, essa generalização ilimitada da forma do mercado acarreta certo número de consequências ou comporta certo número de aspectos”
– Foucault, Nascimento da Biopolítica, p. 333
O modelo das relações sociais toma a forma empresarial. Trata-se de desdobrar o modelo de oferta e procura dentro da subjetividade. Somos todos empresários! Mas como não temos nada nem ninguém, no fim das contas, somos apenas empresários de nós mesmos, investimos e exploramos a nós mesmos. Ou seja, apenas importamos conceitos e ideias para nossa própria subjetividade, nossa maneira de pensar e agir.
Temos aqui a melhor definição: uma análise economista do não econômico. Em outras palavras: tudo passa a ser visto como compra, venda e investimento, lucro. É assim que nascem frases como “não há nada que o dinheiro não compre” ou “tudo tem seu preço”. A forma empresa se espalha por nossa sociedade de cima a baixo e nos impõe o seu raciocínio.
Enfim, a própria vida do indivíduo – como, por exemplo, sua relação com seu casamento, com os seus seguros, com a sua aposentadoria – tem de fazer dele como que uma espécie de empresa permanente e de empresa múltipla”
– Foucault, Nascimento da Biopolítica, p. 331
Qual a maneira de entender uma relação entre pais e filho? Religiosa? Cultural? Psicológico-afetiva? Não, dirá a ideologia neoliberal, a melhor maneira de compreender a relação familiar é a econômica. Qual o tempo que o pai e a mãe investem no filho? Dando carinho, dando amor, ensinando a ler e escrever? Quais brinquedos, quais alimentos eles compram para seu bebê? A criança colocada na escola X e na faculdade Y, dará retorno econômico no futuro? O filho devolverá esse carinho com juros no futuro?
Outro exemplo. Qual o melhor modo de se analisar a relação entre um casal? A união matrimonial já não pode ser pensada como a união entre duas almas apaixonadas unidas religiosamente. Devemos pensar a relação em termos biológicos? Claro que não! Ora, o casal investe em si mesmo! Eles juntam dinheiro, unem suas forças, aplicam sua atenção, seu carinho, empregam seu tempo na relação.
Qual a relação do indivíduo com a sua propriedade? Ela pode ser um capital aberto a investimentos! Seu carro pode ser o mais novo integrante da frota de Uber, sua casa pode ser uma nova possibilidade de escolha no Airbnb. Cabe apenas ao indivíduo investir em sua propriedade para frutificá-la e dar lucro.
As relações sociais passam pela mesma transformação na análise. O ladrão, bandido, o delinquente, aquele que rouba um celular, por exemplo. É necessário calcular economicamente o funcionamento da justiça penal, ele dará quanto de custo na prisão? Ele será capaz de produzir na cadeia? Ele pode ser ‘regenerado’?
O próprio Estado passa a utilizar exclusivamente o pensamento econômico. A educação dá lucros? A saúde deve ser pública ou privada, qual é mais eficiente? Um parque público: ele produz alguma coisa? Esta é a lógica por trás das privatizações, tudo deve adotar a forma da empresa, com o máximo de eficiência e o mínimo de tempo e dinheiro disperdiçãdos.
Mas o próprio Estado se torna vítima deste raciocínio, ele é um bom gestor do dinheiro público? O que ele faz com o nosso imposto? Se o país não crescer, não melhorar sua economia, isso quer dizer que este partido não serve para governar o país. O governo só possui credibilidade se aumentar o PIB, se controlar a inflação.
Conclusão: somos sujeitos de interesse, egoístas, levamos nosso desejo ao livre mercado e queremos saber se vale a pena investir. Começamos a olhar para tudo em termos econômicos.
O vocabulário econômico reflete que a forma empresa se espalhou e se embrenhou em nossa subjetividade. A grade de inteligibilidade tornou-se de ordem econômica. Este tipo de racionalidade monetário aparece hoje como o mais natural dos raciocínios. Mas isso não é absolutamente verdade. O sujeito vítima desta lógica não pensa por si, é levado a pensar.