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Há pelos menos dois milênios uma pergunta não sai da nossa cabeça: “O que somos nós?”. De bípede sem penas a animal político, temos ensaiado uma enorme variedade de respostas. É assim mesmo, vamos inventando conceitos e tentando dar conta da imensa variedade de respostas possíveis a uma pergunta aberta como essa. 

Espinosa é um dos que responde a essa irresistível questão de um jeito que nos excita musicalmente. Ele diz, Somos Modos!, uma maneira pela qual o Ser se expressa. Mais do que isso, ele dirá que somos o desejo de perseverar em nós mesmos, tendência e esforço a continuar existindo. Nós somos os modos singulares pelo qual Deus [ou a Natureza] se expressa.

Aos nossos ouvidos, essa resposta soa como a música modal. Aquela que encontramos nos cantos tribais e também em alguns álbuns do Miles Davis. Um tipo de música onde a ausência de movimento harmônico privilegia a exploração melódica de um mesmo centro tonal, que permanece como alicerce subjacente, gravitacional, por toda a peça.

Ao contrário da música tonal, o que conta no modalismo não é a modulação de uma tonalidade em outra, que é o que proporciona essa sensação de saída, passeio e retorno. Podemos dizer que o tonalismo é uma maneira inteligente de usar o ritornelo, a modulação incita o movimento de diferenciação: quando retornamos à tônica já não somos mais os mesmos.

Quando falamos em modos, estamos pensando em outra coisa. Os modos dizem respeito às medidas fundamentais que nos fazem ser o que somos. Não apenas aquilo que temos de único – a isso chamamos de timbre – mas aquilo de que somos capazes na relação de nossas partes entre si mesmas e com o mundo. Somos modos capazes de diferenciação, mas contemos sempre alguma constância em nossas relações.

Na música, são as proporções e distâncias estabelecidas entre as notas de uma escala que dão à melodia uma sonoridade distinta. Uma determinada relação constante entre um grupo de notas produz uma sonoridade qualitativamente diferente. Se andamos sempre de tom em tom, produzimos uma escala simétrica chamada hexafônica. Se andamos intercalando tom e semitom, produzimos uma outra escala chamada diminuta. Ou seja, alterando-se as medidas produzem-se outras sonoridades e, o que aqui é mais importante, parte-se do mesmo material, uma seleção dentro do mesmo conjunto de doze notas.

Podemos pensar em cores também. A modalidade na música se assemelha às matizes das cores. Se misturamos azul e verde, temos o ciano; juntamos vermelho e verde, temos o amarelo e assim por diante. Mais do que isso, se colocamos mais de uma cor e menos de outra modificamos o resultado. Ou seja, a variação acontece dentro de uma proporção de combinação dos mesmos materiais.

A mesma coisa funciona basicamente para nós. Somos resultados diversos e singulares da combinação dos mesmos elementos. Assim, podemos dizer que somos modificações da mesma substância. Somos tal qual os modos possíveis de uma escala e também as tonalidades de uma cor, variações de uma mesma potência de existir. De um mesmo material básico – sejam frequências ou moléculas – se compõe toda a diversidade.

O músico brinca com as distâncias das notas e cria outra atmosfera para a sua peça; a natureza modifica-se e expressa-se através de nós em sua imensa diversidade. E se perguntarmos por que o músico o faz, ele responderá “Ora, porque posso” e o mesmo concluiremos ao indagar a natureza. A potência com que a vida se efetua é motivo suficiente para que nos dediquemos mais a compreender o “como se dá” do que o “por que se dá”.

Jackson Pollock

Agora com relação à segunda parte da definição. Espinosa diz que somos um esforço de continuar existindo e, conscientes desse esforço, somos os nossos desejos. O que é o modalismo senão um cálculo preciso feito com a intenção de se permanecer em um determinado lugar? A música modal é uma esquiva de tudo o que descentra, desloca as notas fundamentais. É uma busca cuidadosa pela preservação do que for considerado primordial, é o cuidado que se tem com o oikos (ecos), a casa.

Muitos criticaram Espinosa, Nietzsche entre eles, por essa definição inercial de nossa existência, como se existíssemos apenas para a conservação. O exemplo musical pode ajudar a entender porque essa crítica não faz sentido. Ao permanecer no mesmo centro, abrem-se as portas para um outro tipo de experimentação musical, como o dos timbres. É toda uma outra forma de valorização das melodias que se descobre na ausência de movimento harmônico.

Se nossa sobrevivência depende de uma conservação de proporções fundamentais, como a concentração de glicose no sangue, por exemplo, não significa que isso nos disponha à inércia total. Ao contrário, quando compreendemos bem nossas medidas, descobrimos sempre novas maneiras de nos relacionar com o mundo pelas quais expandimos esse núcleo duro que é a mera sobrevivência. A manutenção de alguma constância é necessária para a experimentação.

Há ainda outra questão. A música tonal muitas vezes corre o risco de ser aprisionada, canalizada no movimento dominante-tônica, presa na repetição da tensão-resolução. Atingindo, muitas vezes, o máximo de variação de que ela é capaz no malogro dessas expectativas, como no caso da cadência de engano. Se não é feita com cuidado, essa obrigatoriedade do movimento no tonalismo pode acarretar um cansaço aos ouvidos, um esgotamento da criação musical.

É mais ou menos como a obrigação de mudar de personalidade conforme a situação. No trabalho é de um jeito, na família é de outro, com os amigos é ainda de outro. Podemos nos adaptar para tirar proveito de todas as situações, mas isso pode acabar nos levando a exaustão. Essa modulação constante pode ser violenta exatamente por nos atirar nesse movimento incessável em que nunca nos sentimos nós mesmos. A sensação da mudança é melhor quando sabemos que ela é feita sob uma base que respeita nossas medidas, que diz sobre o que somos.

Não se trata de eleger a melhor maneira de fazer música, muito menos de viver. É uma questão de proporção, um pouco de constância e um tanto de variação. Encarar a vida pela perspectiva modal, significa entender que somos a expressão singular de um encontro inédito entre determinadas partes do todo. Nesse sentido,  basta encontrar uma sonoridade interessante para a vida, uma base que favoreça. Aqui lembramos de um ditado musical: “Se soa bem, que mal tem?”

Texto da Série:

Filosofia em Tom Maior

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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David Cesar
David Cesar
1 ano atrás

Lindo, a natureza é linda.