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Reconhecemos um filósofo pelo mundo que ele nos faz ver juntamente com o horizonte de problemas que nele se apresentam. Já em 1935, Albert Camus em seu primeiro livro, com apenas 22 anos, constata o absurdo enquanto condição do homem no mundo. Noção que é desenvolvida anos mais tarde em “O Mito de Sísifo” e colocada no centro de seu pensamento, inaugurando uma linhagem filosófica que não se encaixa perfeitamente nem no niilismo nem no existencialismo.

Amanhã, tudo vai mudar, amanhã. De repente, ele descobre que amanhã será igual, e depois de amanhã, e todos os outros dias. E essa irremediável descoberta o esmaga. São ideias semelhantes que nos fazem morrer. Por não conseguir suportá-las, as pessoas se matam – ou, quando se é jovem, fazem-se frases sobre elas”

– Camus, O Avesso e o Direito, A ironia

O absurdo é o niilismo tornado sensível, é uma percepção acerca da vida e da morte que inevitavelmente leva o homem a viver em perpétua contradição. A repetição enfadonha de uma vida que não encontra sentido e que, ainda por cima, precisa dar conta da morte lança o filósofo ao primeiro problema: por que esperar? Matar-se não é a solução para a falta de sentido? É a partir da inevitável questão do suicídio que Camus vai mover uma série de conceitos para responder, com toda a força: Não!

A ausência de suporte a qualquer sentido eterno e imutável não se traduz na impossibilidade de dar sentido àquilo que se vive. Se a repetição dos dias nos empurra à beira do abismo, é preciso encará-lo por alguns instantes. Não é pessimismo, mas envolve uma boa parcela de fatalismo. Não queremos morrer e, no entanto, morreremos mesmo assim. A consciência da morte nos força a admitir a necessidade não de morrer, mas de viver. A falta de sentido é um convite à criação sem amanhã.

O homem está cara a cara consigo mesmo, desafio-o a ser feliz…”

– Camus, O Avesso e o Direito, Com a Morte na Alma 

O suicídio não é uma solução, porque ele não resolve o problema, ele abre mão do problema, o que é muito diferente. As soluções que um filósofo encontra para os problemas que destaca são conceitos. A tensão que uma questão traz ao pensamento extrai dele ideias que nos impulsionam. Por mais contraditório que possa parecer, a morte como problema traz a vida como solução. Questões noturnas exigem a criação de ideias solares. São dois lados indissociáveis, como as faces opostas de um tecido, o avesso e o direito.

Recusar o salto para fora da vida nos coloca dentro do mundo, mas não nos obriga a aceitar todas as condições que ela nos apresenta. Aceitar viver não implica em aceitar tudo do jeito que é. A injustiça, a desigualdade, a inconstância não nos convenceram a pular fora. Decidimos apostar na vida, mas isso não significa que temos agora que nos resignar com tudo. Querer viver, afirmar-se em conjunto com o mundo não é a aceitação plena de suas incongruências. Ao contrário, é em nome de uma felicidade possível que reconhecemos a nossa condição de revoltados.

Proclamo que não creio em nada e que tudo é absurdo, mas não posso duvidar de minha própria proclamação e tenho de, no mínimo, acreditar em meu protesto. A primeira e única evidência que assim me é dada , no âmbito da experiência absurda, é a revolta”

– Camus, O Homem Revoltado, Introdução

“O absurdo é, em si, contradição”. Entramos contrariados na vida, não por falta de vontade, mas pela própria condição de viver em face da morte. A condição pela qual escolhemos viver, isto é, recusar a morte, significa desafiá-la o tempo todo. Não há como viver senão revoltando-se com a condição de ser para a morte. Em tempos de barbárie como as duas grandes guerras entre as quais Camus viveu, a contradição entre a vida e a morte se amplia e o problema inicial se desenvolve: como tolerar a racionalização do assassinato?

O problema do suicídio se desenvolve no problema do assassinato tendo a morte como ponto comum. Se a vida ela mesma é a fiadora de nossa aposta contra a morte; se partimos dela para recusar o assassinato de nós mesmos, é um tanto óbvio que devemos recusar também o assassinato do outro. A incorporação do absurdo nos empurra a um só imperativo: viver e, sobretudo, deixar que se viva. Podemos facilmente recusar o assassinato por nós mesmos, mas como permanecer coerentes quando se mata a troco de nada?

Nada saberemos enquanto não soubermos se temos o direito de matar este outro que se acha diante de nós ou de consentir que seja morto”

– Camus, O Homem Revoltado, Introdução

Camus Suicídio Assassinato

Alberto Giacometti

Nossa condição de seres vivos em face da morte nos faz optar rapidamente pela vida, mas a contrariedade a que somos lançados vem do fato de que não vivemos em um mundo ideal. Recusar a morte como fuga é o primeiro passo, mas outra questão se coloca a partir daí, o que pensar da morte como meio para a realização de um mundo mais justo? É permitido matar em nome da pátria? É permitido matar para sobreviver? É permitido matar em nome de uma ideia? É permitido matar em nome da história? 

Vejam, o assassinato é o principal problema para o homem revoltado. É preciso investigar quais são os limites que tornam legítima a revolta e quais são os limites que, se ultrapassados, abrem o caminho para que a revolta se alie não à vida, mas à morte. Deus trapaceia, o mundo é inconstante, a vida é rara, o suicídio é a questão dos tempos de paz. A ideologia nega apenas os outros, eles trapaceiam, eles atrapalham, o assassinato se torna a questão nos tempos de guerra. Recusar a si mesmo encerra tudo, recusar o outro inicia uma máquina suicidária, cujo exemplo maior é o nazismo.

Parece simples então, basta erigir novamente o velho mandamento “Não matarás” que a revolta não ultrapassará seu princípio vital. Aí está a contradição, todo mandamento acaba se tornando uma restrição à revolta. Se o revoltado se filia completamente a uma ideia, acaba perdendo sua potência disruptiva. Será então que, em última análise, a revolta depende do assassinato? É mais complicado do que isso. A revolta sem exame, acaba consentindo em matar, e esse é o problema. A tentativa de Camus é de mostrar que a revolta pode seguir outro caminhos que não o do assassínio. Trata-se de cuidar para que o levante pela vida não se torne o fazer deitar da morte.

Em nossos tempos, a razão serve para tudo, inclusive para transformar juízes – ou prefeitos, governadores e presidentes! – em assassinos. O assassinato racional, as políticas de extermínio, exigem de nós a revolta. É necessário perguntar até que ponto nos é permitido levá-la. Não somos indiferentes à vida e precisamos permanecer dentro dos limites da afeição que temos por ela, mesmo em nossos movimentos de odiosa recusa.

A não violência absoluta funda negativamente a servidão e suas violências; a violência sistemática destrói positivamente a comunidade viva e a existência que dela recebemos.  Para serem profícuas, essas duas noções devem encontrar os seus limites.”

– Camus, O Homem Revoltado, O Assassinato Histórico

Acusam Camus de contradição, o que só pode ser considerado uma crítica na boca daqueles que consideram que a vida está isenta de contrariedades. Estamos em um campo em que dois extremos devem ser evitados: o suicídio e o assassinato, isso serve como regra de ação. A primeira recusa nos conduz à segunda: nem morrer nem matar. É preciso deixar para trás o extremismo – pai de todo terrorismo – e pensar quais são as possibilidades para a revolta dentro desses limites. 

Todo revoltado defende a causa da vida. Se formos levados ao ponto da necessidade de matar para dar meios à nossa revolta, perderemos justamente a força que nos fundamentou no começo, o valor inquestionável que é a vida. Compreender o que é a revolta e até onde ela pode ir, eis o derradeiro passo da filosofia de Camus. A vida é constantemente esvaziada de sentido pela morte. Nossa luta é voltar a preenchê-la, e isso não poderá ser feito com base em nenhum tipo de lógica que conduza à morte.

A consequência da revolta é recusar a legitimação do assassinato, já que, em seu princípio, ela é protesto contra a morte.”

Camus, O Homem Revoltado, O Assassinato Niilista

Texto da Série:

O Homem Revoltado

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Lena Gomes
Lena Gomes
4 anos atrás

Parabéns Rafael Lauro, pela sua rica interpretação.

Alan Muniz
Alan Muniz
4 anos atrás

Texto excelente. Estou lendo “o Homem Revoltado” nesse momento, e como fã e entusiasta de Camus, tenho imergido nessa contradição do assassinato e da revolta. Pensando nesse período que vivemos no país, está sendo bastante difícil dialogar com Camus nesse ponto, onde sua argumentação as vezes me parece de uma benevolência quase inalcançável.

Alan Muniz
Alan Muniz
Reply to  Rafael Lauro
4 anos atrás

É conflitante demais.

Caramba, te agradeço Rafael. Não sou muito ligado nos podcasts, mas quero ouvir o de vocês. Já segui no Spotify.

Rafaela Galdino
Rafaela Galdino
4 anos atrás

A sua escrita é incrível, muito fluida mesmo!! No entanto, acessar esse site é mais sobre perguntas do que sobre respostas… Sempre saio mais inquieta do que chego. Obrigada por sacudir a minha cabeça.

Lavinia
Lavinia
2 anos atrás

Admiração pelo trabalho amoroso de vocês.