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Um grande filósofo faz divergir palavras em conceitos. A partir disso, um substantivo já não é mais usado da mesma maneira, uma frase já não tem o mesmo significado. Aliás, um conceito tem muitos nomes. A filosofia de Camus propõe uma política imanente a partir da ideia de presença.

No século em que a política revolucionária tinha a realização futura como bússola para a ação, Camus propôs que se olhasse para o presente. Não há realização possível sem uma vida verdadeiramente vivida. Enquanto nossos olhares estiverem perdidos no horizonte porvir, o essencial estará ausente: a maneira como vivemos. A ética não está ausente quando se faz política, ao contrário, a forma como vivemos é nossa luta particular e cotidiana.

O futuro é a única transcendência dos homens sem Deus”

Camus, O Homem Revoltado, Os Assassinos Delicados

Para Camus, o marxismo tem um grande defeito, ele é profético. Isso é facilmente percebido se o comparamos com o cristianismo. Os revolucionários são mártires que se sacrificam imaginando um mundo melhor. Há um gosto pelo suplício, expresso na vontade de morrer pela causa. Não questionamos a grandeza do que se reivindica. O desejo de uma sociedade sem classes dá à filosofia de Marx uma nobreza indiscutível. Mas o fato é que, assim como Hegel, ela submete o devir à história, e isso não se pode perdoar.

A filosofia da história alinha-se com uma imagem de pensamento cristã. De outro lado, os gregos, por exemplo, não viam na história o desenrolar do divino, viam apenas a natureza seguindo seu curso. Os cristãos tentam dominar a natureza, enquanto os gregos acham melhor obedecê-la. Podemos dizer que o socialismo é o empreendimento de divinização do homem, é o desenrolar da sociedade perfeita pelo movimento da história. Não há espaço para uma natureza não-humana, não há desvio possível na reta que leva ao futuro.

É sabido que tanto Hegel quanto Marx pretendiam fazer uma filosofia imanente. Concordamos que a análise econômica marxista o fez, mas a ideia de revolução não funciona sem as garantias de um futuro promissor. Assim, quando Marx diz que “a destruição da burguesia e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis”, isso nos soa como uma profecia revolucionária. Camus, no entanto, questiona que imanência é essa que se atira ao futuro? 

A utopia substitui Deus pelo futuro”

Camus, O Homem Revoltado, A Profecia Revolucionária

O que é o sofrimento para quem acredita no futuro? Na perspectiva da profecia, nada importa. A ditadura provisória é justificada, o suicídio é justificado, o assassinato é justificado. Aceita-se matar e em nome de uma ideia, bem como aceita-se morrer enquanto indivíduo. É o custo a se pagar pelo futuro prometido. Mas, perguntamos, para além da promessa, onde está este futuro? 

A garantia dada pela dialética é muito pouco para quem busca viver no presente. A vida ausente, perdida em um amanhã que nunca chega, não é um problema exclusivo da filosofia marxista. Ao contrário, a presença coloca dificuldades para qualquer revoltado. Será que, para viver em luta, precisamos abdicar da vida presente? É difícil não pensar no futuro quando se vive um presente medíocre. 

As multidões que trabalham, cansadas de sofrer e morrer, são multidões sem Deus. Nosso lugar, a partir de então, é a seu lado, longe dos antigos e dos novos doutores”

Camus, O Homem Revoltado, Além do Niilismo

Em 1957, no auge da militância francesa intelectualista, Camus tem a audácia de criticar a ideia de “tomar o poder”, ele diz: “No Século XX, o poder é triste”. O partido age como se fosse dotado de uma espécie de graça histórica, pensa que sua interpretação dos fatos é a única verdade, aceita matar e morrer sem questionar. O dirigente intelectual do partido se afasta dos trabalhadores na medida em que sobe ao altar da história para dizer-lhes o que fazer e como pensar.

A despeito da organização partidária, Camus propõe que se recupere a alegria na luta. A revolta é uma afirmação – essa é a força que se perde quando ela assume o papel do negativo na dialética. A filosofia hegeliano-marxista vê no proletário um não absoluto em nome de um sim adiado para o fim dos tempos. Camus vê no revoltado um não imediato firmemente apoiado em um sim presente. É preciso “dedicar-se ao seu tempo, à casa que defende, à dignidade dos seres vivos”. Pisar na terra, cuidar do plantio antes de pensar na colheita.

A verdadeira generosidade em relação ao futuro consiste em dar tudo no presente.”

Camus, O Homem Revoltado, Além do Niilismo

A presença é um atributo da revolta quando esta se faz imanente. É um cuidado com a maneira como nos movimentamos dentro das lutas que partilhamos. Nenhuma luta vale o desperdício de nossas vidas. Buscamos as condições em que nossas vidas se implicam nas lutas. Nenhuma forma de contestação é tão eficaz quanto a própria maneira como se vive.

Lembramos aqui do Comitê Invisível – entre outros membros do partido imaginário – que propõem a substituição da ideia de revolução pela de insurreição. Para “dar tudo no presente”, é preciso deixar de esperar, e só encontraremos as condições da ação presente onde estão nossos interesses, onde nossa vida se coloca à disposição, por inteira.

A revolta,  na verdade,  lhe diz e irá dizer-lhe cada vez mais alto que é preciso tentar agir, não para começar um dia a existir,  aos olhos de um mundo reduzido ao consentimento, mas em função dessa existência obscura que já se manifesta no movimento de insurreição”

Camus, O Homem Revoltado, Revolta e Revolução

Camus era entusiasta das comunas e dos sindicatos. A revolta apoia-se nas realidades concretas, como a profissão, a aldeia, a comunidade, nas quais transparecem a existência, “o coração vivo das coisas”. Cada ser, de cada lugar, lutará em frentes diferentes, pois trará medidas diferentes em seus corpos. Isso jamais será um problema, pois não almejamos a realização de nenhum absoluto.

Cada um de nós combate em seu próprio território, de acordo com os seus limites, acompanhado pelos seus companheiros. E isso não significa “luta de todos contra todos”, pois Camus aposta na vida enquanto valor comum. Entre nós, pode variar o interesse; o impulso que nos faz revoltados, entretanto, é o mesmo, é a vida. A única verdade que exigimos do revoltado é que ele crie sentido e dignidade para sua vida, pois não há maneira melhor de enfrentar a morte.

Camus foi, ele mesmo, um homem revoltado. A desigualdade que experimentou desde a infância em sua terra natal não permitiria que fosse de outro modo. No entanto, como ele diz, a tristeza teve de aprender a conviver com o sol. A combinação da consciência revoltada com o pensamento mediterrâneo faz surgir uma ética solar, onde a contestação e a alegria se encontram na lucidez da vida presente.

A pobreza nunca foi uma desgraça para mim: a luz espalhava nela suas riquezas”

Albert Camus, Prefácio ao O Avesso e o Direito

A presença é a capacidade de habitar o presente. Mas, atenção, não se trata de um carpe diem desqualificado e conduzido pelo consumo. O presente plenamente vivido é aquele que percebe que carrega em si mesmo o futuro. A ação que encontra potência em si mesma é a que tem maiores condições de criar futuro. É a entrega de si a uma causa no presente que abre o futuro para novas possibilidades.

Para estarmos presentes, precisamos deixar de cultuar a história, pois, nessa história de revolta, “não são palavras otimistas que ressoam, mas palavras de coragem”. Os militantes trocam o presente pelo futuro, adiam a alegria para mais tarde, não acreditam mais naquilo que existe, no mundo e nos seres vivos. A revolta nos faz constatar que não podemos trocar o presente pelo futuro, pois tudo o que temos é presente e o que nos falta é presença.

Texto da Série:

O Homem Revoltado

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Carlos Filho
Carlos Filho
4 anos atrás

Camus ainda é obscuro para mim. Decidi então ler mais algumas obras e provar, de fato, que ele é obscuro em sua natureza de escritor. Algumas vezes até displicente.

Carlos Filho
Carlos Filho
4 anos atrás

Camus frequentemente aparece obscuro para mim. Resolvi então ler mais algumas obras e mostrar que, de fato, ele é obscuro como escritor. Até displicente vez ou outra.

Valério Augusto
Valério Augusto
4 anos atrás

“… A filosofia hegeliano-marxista vê no proletário um não absoluto em nome de um sim adiado para o fim dos tempos. Camus vê no revoltado um não imediato firmemente apoiado em um sim presente. É preciso “dedicar-se ao seu tempo, à casa que defende, à dignidade dos seres vivos”. Pisar na terra, cuidar do plantio antes de pensar na colheita.” “Para estar presentes, precisamos deixar de cultuar a história, pois, nessa história de revolta, “não são palavras otimistas que ressoam, mas palavras de coragem”. Os militantes trocam o presente pelo futuro, adiam a alegria para mais tarde, não acreditam mais… Ler mais >

Almir Moura
Almir Moura
4 anos atrás

Excelente, fiquei deslumbrado.com sua narrativa e capacidade crítica.