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Em “O Homem Revoltado”, Camus se propõe a analisar a revolta nos últimos séculos. Começando pela revolta metafísica, ele ressalta o caráter niilista causado pela falência dos valores universais que leva a uma revolta como negação raivosa da vida ou a sua exaltação afirmativa. O segundo momento é o da revolta histórica, onde a moral e a virtude reaparecem nas lutas constituintes e revolucionárias.

No começo da era moderna, o homem renascia e levava, pouco a pouco, Deus à morte. A filosofia, a ciência e a arte gradualmente se libertaram da teologia, deixando de lado o respeito com as coisas sagradas. Os reis ungidos foram questionados em sua divina legitimidade e foram levados à guilhotina. Declarava-se o reino da liberdade, fraternidade e igualdade, mas isso acabaria apenas por criar uma nova igreja.

O novo evangelho

O Contrato Social de Rousseau é um também um catequismo, do qual conserva o tom e a linguagem dogmática”

Camus, O Homem Revoltado, O Novo Evangelho

Rousseau é quem fundamenta essa nova religião cujo deus é a razão, e cujo representante na terra é a vontade geral. O homem é naturalmente bom pois possui a razão, basta fazer com que a racionalidade de todos entre em convergência e a sociedade justa será realizada. O trono antes ocupado por Deus nem bem esfriou e será novamente ocupado, agora pelo homem e sua história.

No antigo regime, a soberania era divina, o rei era declarado por Deus. Quando Deus morre, tudo se reconfigura. Agora, a ideia que conduz a revolta será a justiça e é ela que se buscará realizar pela revolução. É preciso inverter a ordem do poder, a soberania deve subir do povo. É assim que o princípio da graça será substituído pela justiça dos iluministas. A vontade geral – considerada sagrada, inviolável, absoluta por Rousseau – dá a luz à noção de soberania popular.

Não se trata de questionar em absoluto a legitimidade da revolução, mas de apontar os pontos onde ela fracassou. A despeito do fato de que se elege um novo Deus e se estabelece uma grande igreja, é preciso avaliar onde leva a revolta quando apoiada em uma razão absoluta. Se a revolta proposta por Camus deve ater-se à condição absurda da qual é fruto, a racionalidade total não acaba ultrapassando os limites?

A resposta é sim. Um valor absoluto justifica tudo e, assim, retorna à mesma lógica sanguinária do antigo regime. Rousseau, inclusive, foi um dos primeiros a defender a pena de morte, tamanha era a sua fé nos ditames da razão. Veremos isso se repetir muitas vezes na história, uma ideia transforma revoltados em assassinos. É isso que Camus não consegue tolerar. Em termos gerais, o que acontece? Os cadafalsos do rei são abolidos e substituídos pelos do povo, o modus operandi permanece o mesmo: o assassinato.

A religião da virtude

A partir de 1789, começam os tempos revolucionários. A revolta adentra o campo político e se torna histórica. Saint-Just busca realizar na história o que Rousseau havia teorizado. A vontade geral exige a morte do rei, pois todo rei é um usurpador do povo. Por mais que o povo perdoe o rei, a vontade não o pode fazer. A guilhotina serve de culto a esse novo conceito de vontade, que não se liga diretamente ao desejo do povo, mas a uma espécie de dever histórico. 

A nova república inspira-se no reflorescimento da virtú romana enquanto força que varre para longe os vícios e a corrupção. A moral se torna o alicerce da política. O que impede a realização dessa nova forma de governo? As facções, as divergências e, assim, instala-se um princípio de repressão infinita. Saint-Just diz “Ou a virtude ou o terror”, começa uma estranha guerra santa.

Saint-Just enuncia o grande princípio das tiranias do século XX: “Patriota é todo aquele que apoia a república no geral; quem quer que a combata no detalhe é um traidor”. Quem critica é traidor; quem não apoia ostensivamente a república, um suspeito. Quando nem a razão nem a livre expressão conseguem firmar sistematicamente a unidade, é preciso decidir-se a eliminar os corpos estranhos.”

Camus, O Homem Revoltado, O Terror

Qual a diferença entre revolta e revolução? A revolta enquanto é apenas o depoimento de uma experiência, é um corpo que constata um limite e o impõe por meio de uma ideia. A revolução é a tentativa de realizar a ideia na história. Enquanto a revolta reivindica alguma unidade, a revolução busca a totalidade. É nesse ponto que as coisas tendem a se complicar.

Saint-Just inaugura o terror na modernidade pois coloca um ideal acima da revolta. Combinada à justiça de Rousseau, a virtude deve se realizar na história não importando quantos devam morrer neste processo. Percebemos assim que o niilismo não foi abandonado, ao contrário, ele apenas se intensificou. A revolta histórica não vence o niilismo, apenas o nega, reportando suas ações não à ausência de valores, mas à existência de valores absolutos. 

A História

Hegel é um dos que percebem o problema: é preciso acabar com a transcendência. A verdade, a razão, a justiça, devem encarnar o devir. Esses ideais devem deixar de ser referências, pontos luminosos e estáticos, eles precisam ser dinâmicos como a história, eles mudam junto conosco. 

Ao contrário de Saint-Just, Hegel afirma as facções, a diferença de pensamento, a luta, o conflito que move a história. A oposição não é um problema, ela tem seu lugar na história. Enquanto para o jacobino todos são virtuosos, para Hegel ninguém é, mas todos serão. É assim que os ideais em aceleração perpétua tornam-se fins.  

A originalidade incontestável de Hegel ter destruído definitivamente toda transcendência vertical, e sobretudo a dos princípios. Sem dúvida, ele restaura o devir do mundo, a imanência do espírito. Mas esta imanência não é fixa, ela nada tem em comum com o panteísmo do pensamento antigo. O espírito está e não está no mundo […] É preciso agir e viver em função do futuro. Toda moral torna-se provisória”

Camus, O Homem Revoltado, Os Deicídios

Alberto Giacometti

O espírito progride, toma cada vez mais consciência de si mesmo, realiza-se no tempo que passa, operando sínteses entre contrários, satisfazendo as condições de ambos. Hegel proclama um futuro glorioso onde o absoluto se realiza inaugurando novas eras ao mundo. Um vir-a-ser que realiza a ideia no tempo do mundo, este é o movimento da história para o alemão.

É assim que a revolta é submetida à história. Não importa exatamente o que se faz, o espírito segue seu curso e tem destino certo. Os problemas todos que virão com as revoluções do século XIX vêm de uma concepção de mundo que reserva unicamente à história o cuidado de produzir o valor e a verdade no curso de seus acontecimentos.

São duas as questões que Camus apresenta. Primeiro, será que a filosofia de Hegel é realmente imanente? Senhor e escravo, opressores e oprimidos, reconhecerão uns aos outros algum dia, realizando no mundo as ideias antes tão distantes? Mas o que é esse “algum dia”? Não é o futuro uma espécie de transcendência? Para Camus, qualquer filosofia que recuse a presença é uma filosofia transcendente.  

Segunda questão, o que exatamente é legitimado pelo momento histórico? Qualquer ação move o espírito? Como colocar limites coerentes a um movimento aparentemente independente da razão humana? O problema de Camus com a moral hegeliana é que tudo pode ser legitimado em nome da realização histórica. Não há ética possível para uma revolta submetida à história.

O fim justifica os meios? É possível. Mas quem justificará o fim? A esta questão, que o pensamento histórico deixa pendente, a revolta responde: os meios”

Camus, O Homem Revoltado, O Assassinato Histórico

Toda a preocupação de Camus é com os meios que a revolta toma para realizar seus fins. Os fins sempre podem ser justificados em si mesmos, mas jamais diríamos que todos os meios servem. Fundamentada na ideia de progresso, a filosofia hegeliana pode ser usada para justificar qualquer ação, incluindo, se necessário, o assassinato. Assim, o próximo passo é analisar que leitura faz a revolução perder-se no terror.

Texto da Série:

O Homem Revoltado

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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freepornpics
4 anos atrás

I wish mankind victory over disease