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A história da revolta começa pela metafísica. A razão vem ao mundo embebida de uma nostalgia, uma vontade de unidade que não encontra em lugar algum. Esse é o sentimento que caracteriza o absurdo como a condição da experiência humana. Vivemos, mas não somos integralmente contemplados na vida. Pensamos, mas não temos absoluta certeza de nossos pensamentos.

A Morte de Deus

O que em outras épocas garantia nossa grandeza morreu: Deus foi a primeira vítima da revolta. O Criador de um mundo absurdo não pode ser venerado, ele precisava morrer para dar chance à lógica. Não podemos crer que a dança macabra da vida tenha um regulador transcendente, não queremos jogar segundo suas infames regras, não suportamos ser criaturas do pai da morte.

A revolta metafísica é o movimento pelo qual um homem se insurge contra a sua condição e contra a criação”

Albert Camus, O Homem Revoltado, A Revolta Metafísica

Se há revolta, é porque há o mal. Frustrados com a criação, os revoltosos só concebem viver se a eles for dada a chance de criar um mundo novo. Não há crueldade maior do que viver em um mundo imperfeito determinado por um único criador. Assim, matamos Deus para nos absolver de sua criação. Não temos nada a ver com isso, nós imaginamos um mundo melhor.

A questão é que negar a divindade é negar também a universalidade de seus valores e isso é o que se costuma chamar de niilismo. A partir do momento em que se nega Deus, assume-se a falta de critérios para justificar qualquer absoluto. Assim, o revoltado tem apenas o seu próprio senso de justiça para contrapor ao mundo, portanto, a unidade que busca só poderá ser singular, ainda que compartilhada com outros.

O niilismo pode ser uma doença, mas junto ao absurdo, torna-se uma sensibilidade, uma consciência de que qualquer maneira saudável de viver renuncia à totalidade de uma verdade entronada. Pretender o universal é o primeiro passo rumo ao totalitarismo. Aos olhos do revoltado, o que falta à dor do mundo é uma justificativa, mas ela não precisa ser a mesma para todos.

O revoltado arranca Deus de sua eternidade estável e imóvel, para fazê-lo habitar suas contrariedades. O que não significa que a história da revolta seja feita de ateus, uma coisa pouco tem a ver com a outra. A revolta, antes de ateia, é blasfêmia, ela delata o supremo escândalo que é viver sob a sombra de qualquer sagrado. 

A história da revolta, tal como a vivemos atualmente, é muito mais a dos filhos de Caim do que a dos discípulos de Prometeu”

Camus, O Homem Revoltado, Os Filhos de Caim

Apesar de Prometeu ser a representação mítica da revolta, a revolta metafísica é menos grega do que judaico-cristã. A Europa do niilismo é aquela que vive como se o Deus único ainda sustentasse seus valores, mas que, no fundo, sabe que ele já não está mais lá. Nesse contexto, Camus organiza em duas categorias as diversas formas de revolta surgidas nos últimos séculos.

A Negação Absoluta

Se o mal é necessário à criação divina, então essa criação é inaceitável.”

Camus, O Homem Revoltado, A Recusa da Salvação

Entre os românticos do XVIII e XIX vemos surgir um mesmo tipo de revolta metafísica que se apoia na absoluta negação das coisas como são. A morte de Deus causou uma grande ressaca sentida como um profundo abandono. O mundo é feito de dor sem sentido e por isso não pode mais ser afirmado.

Temos Marquês de Sade como um exemplo, um homem de letras raivosas dirigidas contra si mesmo e contra o mundo. O homem moral como criatura desprezível, a volúpia sem limites como única redenção. Ele diz: “Abomino a natureza, gostaria de atrapalhá-la … mas não consigo”. Um revoltado alucinado que defende uma liberdade frenética para além de todos os limites e acaba defendendo a morte como forma de prazer.

Outro exemplo, os Dândis: Baudelaire, Byron, Wilde, Vigny. A tristeza sem consolo dos ultrarromânticos na figura de adolescentes perdidos. Uma vida a caminho da morte, buscando justificação na atitude honrosa de uma vida estética. Um prazer no sofrer,  o spleen, uma estética do sofrimento, uma exaltação da tormenta. Um heroísmo nostálgico de um bem impossível, que passa então a cobrir-se de luto e tomar os palcos.

O maior exemplo é Dostoiévski. Enquanto se revoltam e negam por ódio, pela frustração que têm com a vida, o romancista nega por amor. É com a famosa frase de Ivan Karamázov que o niilismo contemporâneo começa: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. É uma verdadeira revolução metafísica. De uma vez por todas, propõe-se o ser humano no lugar de Deus. Todo o brutal poder do Criador não vale a lágrima de uma criança.

Por mais cristão que seja, Dostoiévski renúncia à salvação. Sua revolta faz com que ele negue as regras divinas. Mesmo se Deus existir, a verdade não vale tal preço. A vida ela mesma, é feita para amar sem saber o porquê. Se não há virtude, se não há lei, há apenas aquilo que fazemos de nossa consciência.

A Afirmação Absoluta

Se o niilismo é a incapacidade de acreditar,  seu sintoma mais grave não se encontra no ateísmo, mas na incapacidade de acreditar no que existe, de ver o que se faz, de viver o que é oferecido. Esta deformação está na base de todo idealismo” 

Camus, O Homem Revoltado, Nietzsche e o Niilismo

Como polo oposto, temos aqueles que foram levados pela revolta a afirmar tudo. Em choque direto com a civilização, os afirmadores são aqueles cuja revolta exige que eles mesmos matem Deus dentro de si. Apenas quando a vida se desprende de seus ídolos ela se torna livre e autêntica.

O primeiro exemplo é Stirner, rindo de qualquer crença. “Nossos ateus são gente piedosa” diz ele. Ele recusa qualquer instância que transcenda o indivíduo. Deus, Estado, Humanidade, nada está acima do eu-proprietário. Apenas um novo egoísmo, pensado para além de toda moral, pode ser o fundamento de uma verdadeira afirmação. A liberdade desse revoltado é nada servir, afirmar apenas aquilo que se transforma diretamente em potência para o Único.

Como segundo exemplo, Nietzsche, o filósofo do martelo. O primeiro a analisar o niilismo como fato clínico. Sua genialidade está no fato de que ele percebe como causa do niilismo justamente o que era usado como freio do niilismo: a moral. É ele quem mostra que a nossa recente história não é senão a tentativa de substituir Deus por valores que o valham. A revolta de Nietzsche parte da constatação de que Deus está morto, mas dirige-se contra as tentativas de substituí-lo. Por que continuar vivendo da mesma maneira impotente se já não existe um ser transcendente que o justifique?

Nietzsche busca a afirmação absoluta do mundo como derradeira liberdade, mas partindo da constatação do niilismo, essa liberdade se torna difícil. O problema é justamente como justificar a afirmação se parecemos estar condenados ao relativismo. Se todo valor decai, uma adesão total ao mundo depende então da criação de valores e esta, por sua vez, parte de uma vida que encontra em si mesma as suas afirmações.

Para Além do Niilismo

Para Camus, o problema de ambas as lógicas é o mesmo. Por tenderem a uma postura absoluta, eles acabam, em alguma medida, consentindo com o assassinato. E este não é um limite que ele se permite cruzar. Se a recusa da morte como condição humana é a mola que impulsiona toda a revolta metafísica dos niilistas, então é preciso que se pense limites para o assassinato.

Enquanto a revolta for cega a ponto de se prender a lógicas do tipo “tudo ou nada” e “todos ou ninguém”, ela não poderá avançar nesse terreno. Simplesmente não são posturas interessantes. Para além de qualquer extremismo, uma revolta coerente precisa encontrar uma proporção entre a negação e a afirmação, para que tenha capacidade de lutar sem consentir com a racionalização da morte.

Como resposta ao niilismo, o próximo passo do homem revoltado é a história. “Matar Deus e erigir uma igreja é o movimento constante e contraditório da revolta”. No século XX, começa a marcha do revoltado em direção ao império. Ao “eu me revolto, logo existimos” ele acrescenta: “e estamos sós”.

Texto da Série:

O Homem Revoltado

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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Silvana
Silvana
4 anos atrás

Maravilha de estudo! Excelente!

r Rogerio L Novo
r Rogerio L Novo
4 anos atrás

Boa tarde!!!
Otimo texto com uma analise incisiva do aspecto humano no contesto de mundo.

Aline Alencar Francisco
Aline Alencar Francisco
4 anos atrás

Muito bom!!!!

Reinalvo Orecic
Reinalvo Orecic
4 anos atrás

Excecionalmente maravilhoso texto…

Roberto Autran Nunes
Roberto Autran Nunes
1 ano atrás

No meu ponto de vista, tudo isso que estamos vivendo não passa de um resultado mecânico de fatores físicos impessoais que culminaram, através de entidades informacionais auto-replicantes – no nosso caso, o DNA –, em nossa existência enquanto máquinas, portanto sem livre-arbítrio, conscientes de si mesmas e tendo, por sua própria natureza, o objetivo da perpetuação, que por sua vez não tem objetivo algum.

Marcos
Marcos
Reply to  Roberto Autran Nunes
2 meses atrás

Pelo q eu entendi, vc quis dizer q somos programados e sem objetivo! Isso é contraditório, pois um ñ existe sem o outro. Um paradoxo.