“O mito é nada que é tudo
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo
O corpo morto de Deus
Vivo e desnudoFernando Pessoa”
Se buscarmos em “O Homem Revoltado” um personagem conceitual como aquele de “O Mito de Sísifo”, este só pode ser Prometeu. Entretanto, Camus não deu ao segundo o mesmo destaque que ao primeiro. No ensaio sobre a revolta não há uma análise dedicada ao mito de Prometeu, o que, aos nossos ouvidos, soa como um convite para fazê-la.
Sísifo é o absurdo encarnado. Rolar a pedra montanha acima para vê-la cair – uma, duas, três, infinitas vezes – lembra a condição humana mais cotidiana. A vida segue seu curso independente de qualquer sentido, como a pedra que insiste em rolar montanha abaixo antes de voltar a pesar sobre nossos ombros. No entanto, Camus nos desafiava a imaginar Sísifo feliz. O que pensar de Prometeu?
Prometeu por Ésquilo
Existem diversas versões do mito, sendo a de Ésquilo a mais famosa e, muito provavelmente, a que Camus se refere quando diz logo no começo d’O Homem Revoltado: “Prometeu é o modelo da rebeldia”. Nada melhor do que o pai da tragédia grega para nos contar a história daquele que escolheu a humanidade em vez dos deuses:
Eis-nos chegados aos confins da terra, à longínqua região da Cítia, solitária e inacessível! Cumpre-te agora, ó Vulcano, pensar nas ordens que recebeste de teu pai, e acorrentar este malfeitor, com indestrutíveis cadeias de aço, a estas rochas escarpadas. Ele roubou o fogo, teu atributo, precioso fator das criações do gênio, para transmiti-lo aos mortais! Terá pois, que expiar este crime perante os deuses, para que aprenda a respeitar a potestade de Zeus, e a renunciar a seu amor pela humanidade”
Ésquilo, Fala de Cratos a Hefesto, Prometeu Acorrentado
Um filho de titãs que rouba o fogo, “fonte de todas as artes e ciências”, um recurso fecundo, e entrega aos homens garantindo a eles a esperança infinita no futuro, “o fim do desejo de morte”. Prometeu foi condenado por enganar Zeus em favor da humanidade, mas qual foi seu verdadeiro crime? Ele é quem diz:
Vede, eis aqui, coberto de correntes, um deus desgraçado, incurso na cólera de Zeus, odioso a todas as divindades que frequentam seu palácio, tudo isso porque amei os mortais…”
Ésquilo, Prometeu Acorrentado
Na peça de Ésquilo, ao contrário dos escritos de Homero, Zeus é claramente caracterizado como um tirano. Prometeu, amarrado às pedras nos confins do mundo, conversa com Oceano e suas ninfas, uma bela imagem trágica de pedras e ondas. Eles concordam que Zeus sacia sua crueldade abusando dos seres celestes, e isso durará até que “um esforço feliz lhe arranque um poder”.
Prometeu, aquele que vê com antecipação e prudência, conta que ajudou Zeus contra Cronos, na vitória que o consagrou como o mais poderoso dos deuses, mas que não tolerou o desejo de Zeus de eliminar a humanidade. Prometeu foi o único a se opor ao todo poderoso: “Eu havia previsto tudo… Eu quis cometer o meu crime”. Ou seja, Prometeu não apenas subverteu as ordens de seu superior, como havia antevisto seu crime, e continuou afirmando-o após tê-lo cometido.
Oceano, então, aconselha Prometeu a se calar, para que Zeus não o escute e lhe cause um castigo ainda pior. No entanto, Prometeu segue desafiando Zeus. Ele salvou os homens e foi condenado, “a inteligência nada pode contra a fatalidade”, mas esse não é o seu fim, ele desafiará uma vez mais a potestade. Prometeu diz a Io – uma das paixões obsessivas de Zeus que passa por Prometeu em fuga para o Egito – que conhece o destino de Zeus, sabe como ele será destituído de seu trono e a aconselha a seguir fugindo, pois ela terá um papel a desempenhar na queda de Zeus.
Sabendo disso, Zeus envia Hermes, seu mensageiro, que aparece para ouvir Prometeu, mas este se recusa a contar o que sabe. Hermes diz: “Não é pela revolta – tu bem o sabes! – que se alcança a complacência de Zeus”. Prometeu responde: “Sabes que eu não consentiria em trocar minha miséria por tua escravidão”. Assim, Prometeu, o revoltado, afirma seus valores contra o senhor dos senhores.
Zeus não hesita em exercer sua tirania e envia, junto com seus terríveis raios, um castigo ainda maior: um abutre insaciável que come o fígado de Prometeu, que prontamente se regenera, e assim por toda a eternidade. Sabe-se que Ésquilo escreveu outras peças sobre Prometeu que foram perdidas. De qualquer maneira, é assim que o mito de Prometeu entra na história do pensamento: a partir da ideia de revolta, sofrimento e penitência.
Prometeu na História
Aqui termina o surpreendente itinerário de Prometeu. Clamando seu ódio aos deuses e seu amor pelo homem, ele dá as costas a Zeus e caminha em direção aos mortais, para levá-los a tomarem de assalto o céu”
Albert Camus, O Homem Revoltado, Totalidade e Julgamento
Para Camus, a tragédia de Prometeu está na história. O que se vê repetidamente ao longo dos últimos séculos é a tentativa de realizar a revolta em larga escala e frustrar-se em algum tipo de terror. Em nome de ideais diversos, a vida foi deixada de lado. A dimensão humana da revolta foi diversas vezes perdida em meio aos corpos amontoados.
Se o desejo de colocar limites ao que considera ilegítimo é o próprio movimento da revolta, então o revoltado não pode se abster disso em si mesmo. A rebeldia tem um elemento ígneo, combativo, contestador, sabemos e não podemos privá-la disso. No entanto, não é ofensa nenhuma pensar quais ações vão longe demais. Se todos os limites são desprezados, o revoltado se transforma no tirano que enfrentava.
Prometeu, e apenas ele, tornou-se deus e reina sobre a solidão dos homens. Mas ele só conquistou a solidão e crueldade de Zeus; ele não é mais Prometeu, é César.”
Albert Camus, O Homem Revoltado, Totalidade e Julgamento
Quando Prometeu se coloca acima dos demais por ter-lhes dado a semente da revolta, quando ele diz ser o único a conhecer o caminho, quando ele almeja a totalidade e julga tudo a partir de seu ponto de vista – ele se torna César. Quando um revoltado se eleva por sobre a multidão, a própria causa da revolta perde contato com o solo de sua reivindicação.
Uma revolta proposta por um ditador não é uma revolta, é um constrangimento. Basta pensar que a base da revolta é a diferença que cada um de nós carrega em seus valores e propõe em suas medidas. Uma revolução que precisa suprimir a singularidade para alcançar seus fins já deixou de ser uma revolta legítima há muito tempo.
O verdadeiro, o eterno Prometeu tem agora a cara de uma de suas vítimas. O mesmo grito, vindo do fundo dos tempos, ressoa sempre no fundo do deserto da Cítia.”
Albert Camus, O Homem Revoltado, Totalidade e Julgamento
Uma revolta que fracassa não é apenas aquela que não alcança seus objetivos, mas aquela que passa a aceitar qualquer coisa em nome deles. Na revolta, os meios e os fins devem ser igualmente considerados. Não há luta justa sem a reflexão dos meios que emprega. Prometeu estará fadado, como Zeus, a se tornar uma vítima de seu próprio poder enquanto estiver disposto a matar e morrer.
Para Camus, a revolta permanece legítima quando permanece dentro de alguns limites, recusando o totalitarismo, dispensando a morte, encontrando medidas para a ação, criando sentido para a vida. Ele jamais negará a necessidade da revolta, mas afirmará a necessidade de pensá-la sem trégua. A partir disso, será possível transfigurar o mito de Prometeu a ponto de torná-lo personagem de uma prática revoltosa interessante?
O Resgate de Prometeu
Em Prometeu, a dor torna-se o sinal característico do gênero humano. […] Todos os séculos viram nele a imagem da Humanidade. Todos se sentiram acorrentados ao rochedo e frequentemente participaram no grito do seu ódio impotente. Embora Ésquilo o tenha encarado sobretudo pela via dramática, a concepção fundamental do roubo do fogo encerra uma ideia filosófica de tão grande profundidade e grandiosidade humana, que o espírito do homem jamais poderia esgotar.”
Werner Jaeger, Paideia: a Formação do Homem Grego
Prometeu é a revolta personificada, seu longo silêncio amarrado continua a gritar. Assim como ele, estamos todos amarrados às nossas rochas, condenados a não agir, submetidos às agruras do mau tempo e aos desígnios dos poderosos. Não há opção senão resgatar Prometeu, isto é, reinventar a revolta.
Um indício desse caminho é o pensamento mediterrâneo. O esforço de Camus, lembrando Nietzsche, era sair da imagem de pensamento europeia e judaico-cristã. “O segredo da Europa é que ela não ama mais a vida”, escreveu o argelino. A Velha Europa está dominada pelo niilismo, não tem vitalidade para a invenção de uma ética solar. O primeiro passo é, então, procurar o pensamento em outro lugar.
“O mundo onde eu me sinto mais à vontade: o mito grego” escreveu Camus. Os mitos remontam a uma época anterior à invenção do mal e à culpabilidade do vir-a-ser, por isso são histórias de grande vitalidade, ainda que trágicas. A revolta dos gregos não é vingativa, nem caluniadora. Eles não se voltam contra a natureza, pois fazem parte dela. Para os gregos, culpar a natureza é tão ridículo quanto chicotear o mar com açoites.
Resgatar Prometeu é recuperar o que há de interessante na noção grega de revolta. Etimologicamente, e também na mitologia, Prometeu é o prudente, o previdente, dotado de antevisão. Não seria, portanto, aquele que pondera suas ações? Aquele que conhece o destino é justamente o que pode pensar a melhor maneira de compor-se com ele. A revolta não aceita passivamente o destino, ela o toma nas mãos.
E o que fez Prometeu? Roubou o fogo, não por ódio a Zeus, mas por amor à humanidade. Então, sua revolta não começa com a negação dos deuses, mas com a afirmação dos mortais. Aqueles que morrem, desprezados pelos deuses, podem ainda viver com alguma esperança – esta é a grandeza da revolta prometeica. A revolta se faz em nome da alegria possível, eis a dignidade da luta.
Tão inflexível quanto o rochedo ao qual foi acorrentado, Prometeu aceita seu destino. O fruto de sua revolta é a criação da humanidade, castigo nenhum lhe tira tamanha conquista. Ainda que o sofrimento seja inevitável, sua prática se coloca além dele. Sua vitória é tão incontestável quanto o seu castigo, pois nunca se derrota a revolta que aposta em multiplicar as condições de viver bem. É preciso imaginar Prometeu feliz.
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