Skip to main content
CarrinhoClose Cart

Henri Bergson faz parte de seu tempo, e por isso, sua escrita não pode fugir de seu momento histórico. Vejamos a sua tese de doutorado, que é também o seu primeiro livro publicado: “Ensaios sobre os Dados Imediatos da Consciência”, de 1889. Com ele, Bergson se insere na discussão filosófica, psicológica e científica da segunda metade do século XIX.

Tudo parte de uma ideia antiga, o paralelismo (de Descartes, Leibniz e Espinosa), onde a mente seria paralela ao corpo. Isso quer dizer que todos os eventos que acontecem na mente são considerados paralelos aos eventos do corpo, um se refletindo ou traduzindo no outro.

Esta tese leva a psicologia nascente a pensar que a mente e o corpo possuem um funcionamento semelhante: se o espaço é o meio onde os objetos se movimentam, então a mente só pode ser o espaço onde sentimentos e pensamentos se movimentam.

Locke e Hume, por exemplo, foram filósofos que pensaram que todas as ideias da mente derivavam de sensações físicas ocorrendo no espaço. Levando Kant, posteriormente, a afirmar que cabe ao psíquico apenas a tarefa de organizar as sensações de fora na subjetividade de dentro.

Este longo percurso nos leva diretamente para o nascimento da psicologia científica. O que fazia esta psicologia que acabava de nascer? Buscava no físico as ferramentas de explicação para o psíquico, revestindo suas explicações com os atributos da ciência: objetividade, exatidão, medição e previsão.

Qual é então o objetivo da psicologia como ciência? Investigar a consciência segundo seus aspectos quantitativos, através de medições e experimentos. É aí que nasce o primeiro laboratório experimental de psicologia, fundado por Wilhelm Wundt que é até hoje considerado o pai da psicologia.

Se a ciência se faz através de medições e experimentos, então cabe à psicofísica, para ser respeitada, seguir o mesmo método. Ao se colocar desta maneira, ela se pretende diferente do senso comum, afinal, ela está disposta a realizar experimentos para comprovar suas hipóteses.

Eles partem da seguinte pergunta: “Ora, se os estados físicos se sucedem, um depois do outro, e se podemos contá-los e medi-los, por que não fazer o mesmo com os estados da consciência? Afinal, é comum dizermos: agora estou mais triste, agora estou mais feliz, e assim por diante”.

Normalmente, admite-se que os estados de consciência, sensações, sentimentos, paixões, esforços, são suscetíveis de crescer e diminuir”

– Bergson, Dados Imediatos da Consciência, p. 11

Cientistas pensam um espaço homogêneo onde os corpos se movimentam da mesma maneira que os psicofísicos pensam um espaço mental onde as ideias e pensamentos se movem. A quantidade da causa sensorial seria então responsável pela quantidade de sensação. Ora, a hipótese é simples, não é? As sensações são reflexos diretos e proporcionais à causa física delas.

Este raciocínio é resultado de um hábito: pensar que os fatos psíquicos funcionam da mesma maneira que as coisas extensas, ou seja, quantidade física que se transforma em uma quantidade sensorial. E para poder trabalhar, a psicofísica precisa reduzir o qualitativo e temporal ao quantitativo e espacial.

Muito bem, assim nasce a Psicofísica: ciência dos fatos mentais. E seus criadores se orgulham de darem a ela o status de uma ciência natural, do mesmo nível que a física e a química. Para isso, ela faz uso de toda uma parafernália experimental capaz de medir como um fenômeno físico se traduz em um fenômenos psíquico. Ou seja, eles partem de uma ideia simples, as sensações podem ser mensuradas e quantificadas, crescendo ou diminuindo do mesmo modo que os objetos que medimos no espaço.

É este progresso qualitativo que interpretamos no sentido de uma mudança de grandeza, porque gostamos das coisas simples, e porque a nossa linguagem está mal feita para traduzir as sutilezas da análise psicológica”

– Bergson, Dados Imediatos da Consciência, p. 18

Mas há alguma coisa bem estranha neste raciocínio, dirá Bergson, afinal, os estados da alma não estão nos espaço, ou seja, não possuem extensão. Sendo assim, a posição de Bergson, diante deste contexto histórico-científico se traduz na seguinte pergunta: podemos tratar as ideias, os sentimentos e as emoções como números? A esta pergunta ele dá uma resposta simples: não.

Qual o erro? Com a espacialização da consciência, a psicofísica, teimosamente, insiste em tratar os fenômenos da consciência como algo quantitativo, espacial. Mas como fazer isso se um dos primeiros aspectos da consciência é ser inextensa? Não é absurdo tratar o inextenso como extenso?

Que pode haver de comum, do ponto de vista da grandeza, entre o extensivo e o intensivo, entre o extenso e o inextenso?”

– Bergson, Dados Imediatos da Consciência, p. 12

Tomemos como exemplo a vibração de uma corda de violão. Podemos contar as vibrações de uma corda, medi-la, dividi-la e multiplicá-la sem perder a sua essência (um corda vibrando X vezes por segundo). Mas quando chega na consciência, as vibrações geram um efeito muito mais profundo, porque ouvimos em um momento uma nota mais grave e em outro momento uma nota mais aguda. Ou seja, a primeira conclusão de Bergson é que a quantidade na extensão é qualidade na consciência.

“Não tem problema”, diz o psicofísico, “porque passamos de um estado de consciência a outro e através da introspecção podemos recortar um sentimento e pensamento do outro: ora ouvimos uma nota grave, ora uma aguda”. A consciência do eu seria como que um espaço mental onde pensamentos e sentimentos se sucederiam e encadeariam um atrás do outro.

Certo, diria Bergson, mas também pode acontecer da mesma nota no violão ser sentida de uma maneira diferente, não pode? Será que as vibrações de um acorde de violão são sentidas sempre da mesma maneira? Será que um Dó maior e um Ré menor são sempre um Dó Maior e um Ré menor? Às vezes os ouvimos e choramos, às vezes os ouvimos e rimo. Não podemos simplesmente fazer uma transposição das notas na pauta musical para as notas em nossa cabeça. 

Onde Bergson quer chegar? Um acorde pode ser mais alegre ou mais triste dependendo da música em que ele está inserido. A mesma nota pode ser diferente se estamos num momento mais disposto ou indisposto. Ou seja, podemos até medir o som em sua qualidade física, mas ele jamais será a mesma coisa que a música ouvida!

Em suma, o privilégio da análise quantitativa prejudica a análise qualitativa! Nos acostumamos a pensar que certa quantidade de uma causa será responsável pela mesma qualidade do efeito (certa quantidade de vibrações será responsável pela qualidade da nota que ouvimos). É exatamente esta a tese do paralelismo irrestrito, uma homogeneidade, uma passagem direta entre o fenômeno físico na natureza e seu efeito psicológico. 

Mas o que encontramos no coração da tese psicofísica é uma simplificação que termina em um equívoco conceitual. Sim, pois ela toma pela mesma coisa aquilo que é diferente! Ela toma a experiência subjetiva como algo que deve funcionar ou pelo menos corresponder à experiência objetiva, coisa que, na prática, é absolutamente falso. 

A afirmação de Bergson, por mais óbvia que possa parecer, é que a música que escutamos é diferente da quantidade de vibrações das notas tocadas. A qualidade é diferente da quantidade, as notas na pauta são diferentes das notas em nossa cabeça. Não podemos dissolver a qualidade de nossas experiências no ácido do esquematismo químico e na frieza do movimento físico.

Colocamos a causa exterior como absolutamente responsável pelo efeito interior e semelhantes em seu funcionamento, mas Bergson baseou toda a sua obra em mostrar que este paralelismo é falso e que o método usado para um não pode ser o método utilizado para o outro.

A conclusão das críticas de Bergson à psicofísica é: não devemos confundir e misturar arbitrariamente coisas que são, por natureza, diferentes. Bergson se posiciona contra o reducionismo da psicofísica e das ciências em geral. O psicofísico irá para o laboratório para comprovar suas teses, mas sempre deixará algo para trás, pois estará puramente no campo objetivo. Sendo assim, esta disciplina é insuficiente para dar conta da complexidade dos estados psicológicos

Em boa vontade, a psicofísica nada mais fez do que formular com precisão e levar até às suas últimas consequências uma concepção familiar ao sentido comum. Como falamos mais do que pensamos, visto que também os objetos exteriores, que são do domínio comum, têm mais importância para nós do que os estados subjetivos porque passamos, temos todo o interesse em objetivar tais estados introduzindo neles, na maior escala possível, a representação da sua causa exterior […] Fatalmente devia chegar a altura em que, familiarizada com a confusão entre a qualidade e a quantidade, entre a sensação e a excitação, a ciência procuraria medir um como mede a outra: tal foi o objetivo da psicofísica”

– Bergson, Dados Imediatos da Consciência, p. 53

Mas então como não confundir as duas coisas? O que é a consciência e o que é o espaço? O que é qualidade e o que é quantidade? Para isso Bergson fará um novo corte da realidade, separando aquilo que aparece misturado e nos confunde.

Texto da Série:

Duração

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

Mais textos de Rafael Trindade
Subscribe
Notify of
guest
1 Comentário
Inline Feedbacks
View all comments
Cesar Roberto de Vasconcellos Lapa
Cesar Roberto de Vasconcellos Lapa
3 anos atrás

Olá, gostaria de elogiar o excelente trabalho da dupla. Mas preciso tirar uma dúvida. Vou tentar resumir mto. Qdo vc falam da objeção a psicofísica tocam na diferença entre físico e psíquico como sendo de natureza. Mas não há uma convergência dos sistemas de imagem. A diferença não se daria nos modos dos atributos?