Skip to main content
CarrinhoClose Cart

Assim se verifica, assim se esclarecerá por um estudo mais aprofundado dos fatos internos, o princípio que antes enunciamos: a vida consciente apresenta-se sob um duplo aspecto, consoante a percepcionemos diretamente ou por refração através do espaço”

– Bergson, Dados Imediatos da Consciência

Foi Descartes quem declarou “Penso, logo existo”, inaugurando a filosofia moderna. Mas não era uma grande novidade, desde Platão a tradição sempre pensou o problema de uma existência cindida entre Corpo e Alma, Matéria e Espírito, Físico e Psíquico. Então, com Descartes, o problema continuava: pensar e existir, coisa pensante e coisa material, como estas duas substâncias se comunicavam uma com a outra? Qual era, digamos assim, mais importante?

Kant continuou o aprofundamento, fazendo do tempo uma das formas de apreensão da realidade. Mas colocando a “realidade em si” para sempre longe de nós. Nunca saberemos o que é o mundo e a alma, porque tudo que podemos apreender é pelo tempo e pelo espaço.

Há um eu que percebe através do tempo e do espaço, mas há um eu profundo, diz Kant, que não podemos conhecer, pois está para além do campo das percepções, para além dos fenômenos. Veremos então como a inversão de Bergson é uma crítica a Kant e a possibilidade de nos reapropriarmos de nós mesmos. 

Quem disse que não podemos conhecer a realidade em si? Não só a conhecemos como estamos o tempo todo imersos nela! O tempo, dirá Bergson, não é uma categoria da percepção, ele é o próprio tecido da realidade. Então, para apreender quem somos é necessário primeiro realizar a distinção entre espaço e tempo. Se fizemos este caminho a partir da definição anterior de duas multiplicidades, agora temos como consequência dois aspectos do sujeito:

Eu Superficial

Há uma parte de nós que toca o mundo e esta parte é a mais superficial, mais calejada, mais insensível. O que Bergson quer dizer? Essa definição funciona literalmente e também metaforicamente. Para ele, a parte mais pobre de nós é a conectada com uma maneira espacial de pensar.

Sendo assim, podemos dizer que este eu superficial nasce no espaço, ele pensa dentro da multiplicidade quantitativa. Ele tem uma maneira de ver o mundo que é interiorizada e utilizada para pensar a nós mesmos. Ou seja, ele vê o mundo e a si mesmo como algo que pode ser medido, pode ser objeto de experimentos. 

Um eu exterior que conta e mede no espaço, partindo de conteúdos simbólicos: numéricos e representativos. Este Eu se passa na superfície, na extensão, ele inclusive pode ser observado (se movendo, agindo, se comportando) e pode ser medido (quantos passos, quanto de febre, quanto de colesterol?).

O eu superficial é aquele que atende às exigências da realidade, que fala das coisas, que é objeto de fala dos outros. O eu exterior é o ponto de encontro de nós mesmos com o mundo. 

Este Eu é recortável, objeto da ciência, preso na representação, compreendido pela generalidade da repetição, consciente de si como identidade fixa, e do mundo como regularidade externa.

O Eu visto desta maneira pode ser facilmente assimilável pelas ciências físicas, que a faz da nossa vida psicológica um grande  meio homogêneo com os objetos à nossa volta. Mas, insistimos neste ponto, esta é apenas a superfície mais evidente e aparente. Se recortamos este eu em símbolos e rótulos, precisamos admitir que há alguma coisa para além disso. Sob a crosta do eu superficial jaz o Eu Profundo, como um rio se move por baixo de uma crosta de gelo. 

O Eu Profundo e o Eu Superficial não são dois sujeitos distintos, são dois aspectos de um único sujeito. Se o Eu Superficial está no espaço, e é facilmente reconhecido e medido dos pés à cabeça, há por trás dele um Eu Profundo. E quanto mais deixamos o espaço, mais adentramos nele. 

Nos movemos continuamente entre estes dois polos, um Eu Superficial, a quem damos características, nomeamos, realizamos todo o tipo de inventário de reconhecimento. E um Eu desconhecido, não recortável, não quantificável. 

Eu profundo

Considerados em si mesmos, os estados de consciência profundos não têm nenhuma relação com a quantidade; são qualidade pura; misturam-se de tal maneira que não se pode dizer se são um ou vários, nem sequer examiná-los sob este ponto de vista sem logo os desnaturar”

– Bergson, Dados Imediatos da Consciência

Como conhecer esse eu profundo? Como, se nos acostumamos apenas a andar em volta dele e iluminá-lo com nossos holofotes de fórmulas e medidas? Ora, a resposta, muito semelhante à de Schopenhauer, é mergulhar no objeto em vez de circulá-lo.

E qual seria o único objeto ao qual temos acesso direto, sem mediações? Nós mesmos! Se os símbolos e a linguagem científica mascaram a verdadeira essência da realidade, se com estes recursos, vemos o mundo como observadores impessoais externos, é preciso seguir outro caminho. 

O que encontramos ao entrar em nós mesmos? Vemos que atrás de rótulos e definições, somos algo movente, como um um rio que nunca para de fluir. Sob a crosta da linguagem superficial encontramos o magma pulsante da vida profunda.

Saindo da quantidade, entramos na qualidade. Nosso Eu Profundo é puro devir, e se constitui por uma multiplicidade qualitativa de estados psicológicos que se sucedem, interpenetrando-se continuamente e mudando.

O que ocorre no Eu Profundo não é uma soma de mudanças quantitativas, é uma sucessão que necessariamente implica em mudança qualitativa contínua. Para Bergson, quanto mais nos afastamos da superfície do espaço, mais adentramos nas profundezas do tempo. A consciência pura é então, tempo puro.

Um Eu Íntimo, Intenso, que dura, e por durar, torna-se continuamente diferente daquilo que era. Este Eu se passa no tempo. Este Eu não pode ser medido, pois ele é tudo que lhe aconteceu.

Apenas neste Eu mais Profundo, como veremos, move-se a vontade mais livre, porque estes estados duram sem relacionar-se com a influência estabilizadora do exterior. Nele sensações, percepções, emoções se organizam de forma autêntica e original.

É o eu de baixo que sobe à superfície. É a crosta exterior que estala, cedendo a um irresistível impulso. Operava-se, pois, nas profundezas deste eu, e sob estes argumentos muito razoavelmente justapostos, uma efervescência e, por isso mesmo, uma tensão crescente de sentimentos e de ideias”

– Bergson, Dados Imediatos da Consciência

Este Eu profundo sempre foi objeto da filosofia e da metafísica: Kant o chamou de Númeno, Schopenhauer o chamou de Vontade, Nietzsche de Vontade de Potência, Freud o chamou de Inconsciente, Deleuze o chamou de Diferença. Mas ele não é tão fácil assim de ser encontrado, ele não pode ser medido e não está no espaço, está no tempo.

Neste ponto, deixamos Kant para trás! Depois dos duros golpes que ele desferiu à metafísica, aqui estamos novamente: procurando o que está por trás dos fenômenos. O ser não é inacessível como queria Kant, ele apenas é inacessível à consciência analítica, tal como estamos acostumados.

A estética transcendental kantiana pensava os fenômenos organizados através do tempo e do espaço. Mas pensava o espaço da mesma maneira que pensava o tempo, desnaturando sua essência. Já vimos que um e outro são completamente diferentes. O Eu superficial é o analisável, quantificável, raso. O Eu profundo é o eu temporal, inassimilável.

É aí que a crítica de Bergson sempre incide. Ainda estamos na superfície, não descemos o bastante, estamos falando de números, não de essências. A vida interior é de natureza temporal e não espacial, é puramente qualitativa, não quantitativa. A natureza psíquica é de natureza temporal, por mais que a confundamos constantemente e sempre se a encontremos misturada no espaço.

Conclusão: O Eu Superficial é estático enquanto o Eu Profundo é puro movimento! E é dele que Bergson quer falar, é ele que nos interessa aqui! Mas como expressar esta natureza movente dentro de nós senão através da própria linguagem? Ora, não se trata de rejeitar a linguagem, mas de torcê-la, dar-lhe movimento. É preciso antes de mais nada fazer as palavras dançarem, ganharem vida.

O eu toca, de fato, o exterior pela sua superfície; e como esta superfície conserva a marca das coisas, associará por contiguidade termos que percepcionara justapostos: é a conexões deste gênero, conexões de sensações totalmente simples e, por assim dizer, impessoais, que a teoria associacionista convém. Mas, à medida que se escava abaixo desta superfície, à medida que o eu volta a si mesmo, também os seus estados de consciência cessam de se justapor para se penetrarem, fundirem conjuntamente, e cada qual se colorir com a cor de todos os outros”

– Bergson, Dados Imediatos da Consciência

Texto da Série:

Duração

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

Mais textos de Rafael Trindade
Subscribe
Notify of
guest
1 Comentário
Inline Feedbacks
View all comments
DEIVID
DEIVID
4 anos atrás

Muito bom o texto! Bem parecido com a teoria de Lacan, (imaginario, simbólico e o real) imaginário e simbólico são as superfícies, onde reduz tudo a uma simplicidade por exemplo: uma pessoa “feliz “. A palavra feliz é um simbólico que permeia o imaginário, pois imaginamos uma pessoa feliz, no entanto as pessoas são, feliz, triste, eufórica, raivosa etc, quando abrangemos uma visão mais ampla é a onde o real aparece. O que complica é quando o real aparece! Porque nesse momento começaremos a simbolizar e imaginar, é aí que perdemos a realidade e ficamos presos no simbólico e imaginário.… Ler mais >