Skip to main content
CarrinhoClose Cart

Um signo ou um grupo de signos se destaca da rede circular irradiante, começa a trabalhar por sua conta, a correr em linha reta, como se adentrasse em uma estreita via aberta”

– Deleuze e Guattari, Mil Platôs, vol.2

Se o rosto é o processo de formação subjetiva de um sujeito, então podemos dizer que a linha de fuga é o seu oposto. É a linha tênue que atravessa o fechamento da Síntese Conjuntiva. Se o rosto é a permanência do “Eu sou”, a Linha de fuga é o mergulhar no “Eu estou”.

Quando o rosto se forma, a subjetividade se fecha! É isso que Deleuze e Guattari chamam de Síntese Conjuntiva Ilegítima. Mas do rosto, que é feito de múltiplas linhas de significância e é atravessado por forças, por vezes uma linha escapa, gerando um sintoma.

A Síntese fechada ilegítima é a descoberta de uma suposta essência. Ela diz: “então era isso” na forma de “Então eu sou isso”. Ex. “Então eu sou de Áries”, “então eu sou neurótico”, “eu sou mãe”, “eu sou um fracasso”, “eu sou a reencarnação de Alexandre, o Grande” e assim por diante. É o famoso princípio da identidade: A=A. 

Já a Síntese conjuntiva aberta e legítima diz: “Então era isso!”, ao modo de processo de criação: “Então eu gosto também de pessoas do mesmo sexo”, “então eu gosto de viajar para este país”, “então eu gosto deste estilo musical”, “então eu me sinto bem quando tomo esta bebida” e assim por diante.

A linha de fuga é esta linha que arrasta toda a subjetividade para um campo novo e a transfigura no processo, por isso podemos dizer que a linha de fuga não é uma fuga, é muito mais uma linha de subjetivação que faz um mundo fugir, porque leva o conjunto para um lugar novo. Ao se descobrir algo novo, é toda uma subjetividade que passa a ser afetada de uma maneira diferente.

A linha de fuga é uma trilha nova na subjetividade, onde ela vai dar? O que vai acontecer? Claro que não sabemos, só o tempo dirá! Mas ela é a quebra, a rachadura em uma subjetividade fechada, imposta pela nossa sociedade. Deleuze e Guattari não querem tapar as rachaduras na subjetividade, querem percorrer estes caminhos para ver onde eles vão dar. 

As linhas de fuga possuem três características:

1ª característica:

Toda linha de fuga é uma espécie de traição. Sim, porque toda linha de fuga trai algum agenciamento anterior, trai a lógica na qual estava inserida. Trai as potências fixas que a detinha.

2ª característica:

Toda linha de fuga é um seguir para o deserto! Isso porque ela é primeiramente um deixar o território anterior. Ou seja, à sua frente encontra-se ainda o desconhecido. Nunca se sabe onde uma desterritorialização vai dar. São como flechas, que não sabemos se acertarão um alvo ou não. Por isso as linhas de fuga inicialmente não tem território! Mas elas fundam territórios no processo. 

3ª característica:

Toda linha de fuga descentraliza o sujeito! Este é seu modo de funcionar, sem centro definido. Essa é a parte mais assustadora: uma linha de fuga não é uma formação de si, é muito mais uma deformação de si! É seguir o sintoma, é um estranho querer morrer, querer deixar-se para trás, um arrastar-se para fora de uma casca apertada.

Neste processo, no entanto, há dois perigos aos quais devemos estar sempre atentos:

1º Perigo: Cair em um novo fundamento! 

Pense na pessoa que descobriu uma roda de samba. Ela descobre um novo gênero musical e diz: “Então é isso! Então eu gosto de samba!”. Lindo, maravilhoso. Qual o perigo nisso? Transformar o “eu gosto de samba” em “Eu sou um sambista, eu odeio todos os outros gêneros musicais, só o samba presta, o samba é minha vida”. Transformar a descoberta e a abertura em fundamento e fechamento, este é o perigo.

Se uma linha sai de um buraco para cair em outro, de que adianta? Sair do poço das drogas para entrar no poço da religião? Quantas formas de prisão existem? Podemos percorrer todas. Mas a linha de fuga é uma abertura dos fluxos e das sínteses, é um constante perder o centro e aprender a fluir.

2º perigo: Quando as linhas de fuga se tornam linhas de morte

A afirmação das potências e da desrostificação correm sempre este perigo. Até onde queremos levar estas potências? Até onde é seguro? Até onde é necessário? A pergunta sempre retorna para: “O que o corpo pode?”, qual o seu limite de conexões e disjunções?

No fim das contas, a questão é sempre aproximar um corpo do que ele pode! Ligá-lo às várias linhas que o atravessam, não deixá-lo abaixo de suas capacidades e nem levá-lo demasiadamente além. 

A esquizoanálise aproxima-se da tarefa mecânica, faz pura e simplesmente uma análise das linhas que atravessam as máquinas desejantes, para descobrir onde estão as linhas de fuga. Não quer reprimir as linhas de fuga e, ao mesmo tempo, toma o cuidado de não deixar que elas se tornem linhas de auto-destruição.

São estas pequenas linhas que nos interessam, estas micro experimentações que produzem macro efeitos. A esquizoanálise se pergunta: o que está se passando? Onde levam estas linhas de experimentação? Qual é a transformação, a deformação, a metamorfose, os devires que elas causam? Com quais outras linhas elas se ligam no processo?

Este contínuo curso de colapso e ao mesmo tempo não colapso, esta contínua sequência de morte e renascimento, este contínuo encadeamento de rupturas e novas conexões, é isso que interessa.

São pequenas autodestruições que não se confundem com uma pulsão de morte!”

– Deleuze e Guattari, Mil Platôs, Vol. 2

Um desfazer de rostos e territórios para então constituir novos territórios, a clínica Esquizoanalítica se preocupará exclusivamente com isso. Quais territórios estão condenados à imobilidade? Como rompê-los? Quais já estão engessados demais, secos demais, inférteis? Como abandoná-los? Em cada dificuldade constatada, novas conexões e sínteses são prescritas, para que o desejo possa conectar-se com novas territorialidades.

Quantos morrem sem saber quais são as suas linhas de fuga? Quantos morrem sem nunca ter percorrido estas linhas e visto onde elas vão dar? É triste, mas é comum. 

As linhas de fuga — não será isso o mais difícil? Certos grupos, certas pessoas não as têm e não as terão jamais”

– Deleuze e Guattari, Mil Platôs Vol 3, p. 83

Às vezes a mudança de uma coisa simples já é o bastante: “Depois que eu coloquei óculos, tudo mudou”, “Quando eu me liguei a uma asa delta,  eu nunca mais fui o mesmo”. Às vezes o corpo precisa multiplicar-se para dentro: “Depois que eu descobri que gostava de esportes e de matemática, tudo ficou mais fácil”, “Quando eu percebi que simplesmente gostava de mulheres e de homens, a coisa fluiu”.

É uma experimentação com as multiplicidades do mundo, de mundos. No fim das contas, nunca nos desterritorializamos sozinhos, sempre precisamos do bom encontro! Por isso temos que estar constantemente nos movendo, nos agenciando, à espreita. 

A linha de fuga também não precisa ser algo barulhento, chamativa, performática, pode ser feita em segredo, em um silêncio quase absoluto. Até atingir o ponto limiar, onde a linha de fuga desterritorializa toda uma subjetividade para um nova direção. 

Em resumo: As linhas de fuga não são um fugir do mundo! Já diziam Deleuze e Guattari: “Não há nada mais ativo que a fuga!”. A linha de fuga é uma linha de desejo que se desprende e em seu movimento faz todo o mundo fugir.

A linha de fuga não é uma fuga do desejo, porque é o próprio desejo se rearranjando em seu manifestar-se. Ou seja, ela cria mundos! É como o Clinâmen dos epicuristas, o pequeno desvio criador de mundos. A palavra nova, a espécie nova, a posição sexual nova. A partir de então, não há mais terra firme, estamos em mar aberto!

Dir-se-ia, agora, que essa linha recebe um signo positivo, que está efetivamente ocupada e seguida por todo um povo que nela encontra sua razão de ser ou seu destino”

– Deleuze e Guattari, Mil-Platôs – Vol.2, p. 77

Texto da Série:

Mil Platôs

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

Mais textos de Rafael Trindade
Subscribe
Notify of
guest
12 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments
Jonas Laildo Neves
Jonas Laildo Neves
3 anos atrás

Excelente texto!! Bastante didático!

Cássia
Cássia
3 anos atrás

Excelente

Ana Maria Batista
Ana Maria Batista
3 anos atrás

Que maravilha essa produção de vcs!!!

EDUARDO FERNANDES BATISTA
EDUARDO FERNANDES BATISTA
3 anos atrás

Muito bom!!

Klywer
Klywer
3 anos atrás

Texto maravilhoso!!!

Pedro Elias
Pedro Elias
3 anos atrás

O que dizer depois de uma leitura dessaaaaas

Rafaela
Rafaela
2 anos atrás

Lindo texto! Agora tem palavra para o que tenho vivido, linhas de fuga.

caio
caio
2 anos atrás

Excelente! Obrigado!

alana
alana
1 ano atrás

gente, que delícia ler esse texto!

Luri Lubas
Luri Lubas
1 ano atrás

Maravilhosa síntese. E essas imagens, de quem são?