Ter feito do pensamento uma potência nômade. E mesmo se a viagem for imóvel, mesmo se for feita num mesmo lugar, imperceptível, inesperada, subterrânea, devemos nos perguntar quais são nossos nômades de hoje?” – Deleuze, A Ilha Deserta, Pensamento Nômade
Mil Platôs propõe um personagem conceitual: o Nômade. Mas antes de falar do personagem, precisamos entender a origem desta palavra. Nômade vem do latim nomas, que significa “errante, sem destino” e posteriormente passou a designar os “grupos errantes da Arábia”.
Ou seja, o nômade é aquele que anda sem destino, o errante, aquele que não possui uma residência fixa, aquele que se move pelos desertos, pelo espaço aberto.
Mas seu significado é ainda mais antigo, e vem do grego, nomos, que significa “partilha, distribuição”. Ou seja, uma ordem, um fundamento, que designa a maneira como um efeito se desdobra, se desenrola, se desenvolve.
Aqui a coisa começa a ficar um pouco complicada dependendo de como a palavra é interpretada. Nomos se tornou pouco a pouco uma palavra Grega para designar a materialização da lei da cidade, ou seja, a regra, a lei, a norma e os costumes que fazem a cidade ser como é.
Nomos não é necessariamente a lei escrita, mas o fundamento que institui um modo de funcionamento e designa o lugar de cada um dentro de uma sociedade. Ou seja, a sociedade se organiza, se arranja, estrutura o lugar ao qual cada um pertence para que ela funcione bem. Mais ou menos como um manual que ensine a montar uma miniatura, o manual diz como as peças devem se distribuir no espaço para o bom funcionamento da miniatura.
Para exemplificar, pensemos na República de Platão, que designa o lugar dos produtores, dos soldados e dos filósofos. A cidade só é Justa se cada um ocupar o seu lugar adequado. Também podemos pensar em Aristóteles, quando ele diz que cada elemento possui o seu lugar natural: é necessário que a terra fique abaixo do ar (por isso uma pedra cai) ou que o bárbaro se submeta ao grego (que é superior).
Ou seja, na Grécia Clássica, Nomos designava o Kosmos ordenado que se concretiza na ordem da cidade-estado que se contrapõe a tudo e todos que queriam quebrá-la ou desordená-la. Uma ordem divina que deve se contrapor a toda desmedida monstruosa.
“O nomos acabou designando a lei, mas porque inicialmente era distribuição, modo de distribuição” – Deleuze e Guattari, Mil Platôs Vol. 5, p. 54
A palavra Nomos na Grécia Arcaica (ainda antes de Platão e Aristóteles) possuía um sentido mais próximo do que conhecemos hoje. Ela estava ligada a uma lei imanente que brota do encontro. Ou seja, não era uma lei transcendente que nunca mudava e organizava o mundo de cima para baixo, mas sim uma lei que se fazia no próprio encontro. Em franca oposição à ideia de eternidade que Logos traz, esta lei imanente é a maneira de cada coisa se distribuir pelo espaço de acordo com os encontros que faz.
Em suma, a palavra: Nomos (como partilha), pode estar ligada ao Logos (Eternidade ordenada Transcendente) ou à Pysis (Desdobramento contínuo de uma natureza em relação).
O primeiro conceito está ligado a Platão e Aristóteles, da filosofia clássica. Já o sentido antigo está mais próximo dos pré-socráticos, como Tales, Heráclito e Anaxímenes, que viam uma substância única se desdobrando em outros elementos.
Deleuze e Guattari se interessam, claro, por um Nomos que se distribui em um território, sem uma lei que o preceda, pela sua própria potência de afirmação. Todo o Mil Platôs está apoiado sobre esta ontologia. O nômade é então aquele que se espalha, aquele que se distribui no próprio ato de colocar-se no mundo. O modo de distribuição do nômade é rizomático. Seu modo de funcionamento não é prévio e transcendente, ele se faz na própria relação.
Diferente de uma lei que possui um Telos, que leva (ou diz levar) para um determinado lugar, o Nômade de Deleuze e Guattari se move pelos afetos, ignora todas as regras transcendentes e procura por suas próprias regras de ligação.
O Nômos como Lei pensa sempre uma linha reta entre dois pontos, está preocupado com as identidades, em formar rostos, com as substâncias. Já o Nômade está preocupado com a jornada, com as linhas de fuga, não com os pontos. É uma maneira diferente de olhar e de se mover pelo mundo, que leva a lugares muito diferentes, enfim, vidas diferentes.
Uma filosofia nômade é aquela que precisa dos encontros para se fazer, que se define na relação, não pelas essências ou pelas ideias. Fazer-se na relação significa que não há uma essência prévia que precise ser seguida, não há uma subjetividade que nos defina. Nós nos fazemos nos encontros, tudo está aí. Não precisamos de uma lei transcendente para mediar as relações, não precisamos de um demiurgo, arquiteto, ditador divino que diga como as coisas precisam se relacionar. O nômade sabe disso: não precisamos de nada que diga como as coisas precisam ser.
O nômade com sua máquina de guerra opõe-se ao déspota com sua máquina administrativa; a unidade nomádica extrínseca se opõe à unidade despótica intrínseca” – Deleuze, A Ilha Deserta, Pensamento Nômade
A Filosofia da Diferença expressa bem isso: por baixo de toda identidade encontramos apenas a multiplicidade dos encontros. Não há uma regra eterna, não há um deus, há apenas estes encontros e esta multiplicidade de afirmando. Aqui encontramos o nômade, ele se move pelos platôs, efetuando encontros e se modificando através deles.
estar presente
significa
perceber o agora
traçar linhas do possível
a partir do que se têm
criar resoluções desprogramáticas
deliberar de maneira questionável
remanejar determinações concretas
remodelar modelos rígidos de comportamento
redirecionar o ato e redefinir os sentidos
resistir às regras e requebrar instituições
redimensionar as medidas e redobrar a atenção
perceber o agora
significa