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Derivadas do espírito insurrecional de maio de 1968, as ideias propostas no Anti-Édipo podem ser muito mal interpretadas. Deleuze comenta no abecedário que nunca teve a intenção de incitar o uso abusivo de drogas e se isso aconteceu por influência de seu livro, diz: “Sentimo-nos responsáveis por tudo, se algo dá errado.” Fato é que, ao falar de Corpo sem Órgãos no Mil Platôs, eles não deixam de falar sobre um complemento indispensável à experimentação: a prudência.

Se o Corpo sem Órgãos pode ser acessado por qualquer conjunto de práticas que levem um organismo a experimentar ao ponto de se desorganizar, então, é evidente que há riscos envolvidos. Um corpo organizado é como uma casa: ela protege dos excessos do mundo, mas é apertada demais para uma vida. O CsO é o lado de fora: o encontramos quando saímos para dar uma volta, mas é preciso saber a hora de voltar.

Em nossos tempos, a primeira confusão é pensar que experimentação significa dizer sim a tudo. Seria fácil se a resposta para o problema da intensidade fosse viver como se estivesse em uma festa infinita. Ao contrário, experimentar pode ser dizer não, questionar o movimento habitual de qualquer coisa, recusar-se a fazer o esperado, ficar um pouco em silêncio. Não podemos nunca confundir um conceito com uma imagem: o junkie, tanto quanto o esquizo, só nos interessa enquanto personagem conceitual.

Quando Artaud, Deleuze e Guattari falam da necessidade de libertar os órgãos de suas funções, eles não estão dizendo para desprezar o corpo, para ir depressa e além de todos os limites. Ao contrário, é necessário um programa para a experimentação, isto é, medidas obtidas aos poucos, à base de pequenos experimentos. A overdose nada mais é do que a perda das capacidades de continuar experimentando e por isso mesmo a perda completa do CsO. É preciso encontrar essa boa medida que mantém a intensidade em fluxo e isto se faz com prudência.

O que quer dizer desarticular, parar de ser um organismo? Como dizer a que ponto é isto simples, e que nós o fazemos todos os dias. Com que prudência necessária, a arte das doses, e o perigo, a overdose. Não se faz a coisa com pancadas de martelo, mas com uma lima muito fina. Inventam-se autodestruições que não se confundem com a pulsão de morte. Desfazer o organismo nunca foi matar-se mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidades, territórios e desterritorializações medidas à maneira de um agrimensor”

– Deleuze e Guattari, Mil Platôs 3

Corpo sem Órgãos pode parecer uma ideia muito difícil de compreender, por isso eles se perguntam: como mostrar que fazemos isso todos os dias? O CsO é a intensidade adjacente a todos os nossos movimentos – procure observá-los e transfigurá-los, pronto! aí já se apresenta uma via de acesso. Qualquer órgão é uma máquina parcial, inacabada, pronta para conectar-se a algo novo e produzir sei lá o quê, basta que estejamos dispostos a arrancar-lhes as funções.

Experimentar com as ideias é o gosto supremo do filósofo. Por isso, ele está sempre flertando com o Corpo sem Órgãos, ainda que numa conversa de elevador. E isso provavelmente acontece com o dançarino, que faz a faxina remexendo com a vassoura, com o músico que transcreve as melodias dos pássaros, com o matemático que inventa funções para fazer o mercado. Todos nós somos experimentos de uma vida que nunca acaba de se fazer. Como dizer quão cotidianas são as possibilidades de constituir esse corpo intensivo e ao mesmo tempo o quanto elas nos são tiradas.

Nossos corpos recebem desde muito cedo organizações que não dizem respeito à intensidade de que somos capazes. É por isso que precisamos pensar o corpo precedente a essa organização como o limite virtual dessa intensidade, o horizonte que nos foi sequestrado. Sorte a nossa que, enquanto estivermos vivos, teremos sempre a capacidade de recuperar um pouco dele. Enfrentamos o juízo de Deus e de seus representantes, que não cansam de determinar as funções de um corpo, para que venha à superfície aquilo que não tem função, mas que tem sua própria razão.

A questão é que não podemos ir longe nesse caminho sem enfrentar riscos. Sair de casa, vestir-se de outra maneira, mudar a fala, alterar os gestos, incorporar outros movimentos, ingerir novas substâncias, tudo envolverá sempre algo de imprevisto – essa é a nossa sorte, mas pode ser também o nosso desastre. Encarar a multiplicidade é tangenciar o perigo, é deixar o pensamento exercer sua violência. Pra quê? Ora, justamente para abrir um espaço, para dar corpo ao fora, para dar voz àquilo que escapa das estruturas neuróticas.

Deleuze e Guattari tomam a esquizofrenia como modelo para o desejo porque lhes parece que essa se move com muito mais intensidade por sobre o Corpo sem Órgãos. Eles não estão falando de psicopatologia, mas de ética: o que é possível aprender com o esquizo? O que queremos da loucura é apenas a parte que nos traz intensidade, que nos faz capazes de conexões inauditas com o mundo, que nos permite desejar sem a priori.

Por que este desfile lúgubre de corpos costurados, vitrificados, catatonizados, aspirados, posto que o CsO é também pleno de alegria, de êxtase, de dança? Então, por que estes exemplos? Por que é necessário passar por eles? Corpos esvaziados em lugar de plenos. Que aconteceu? Você agiu com a prudência necessária? Não digo sabedoria, mas prudência como dose, como regra imanente à experimentação: injeções de prudência.”

– Deleuze e Guattari, Mil Platôs 3, p.13

Como ter a intensidade do esquizofrênico em seu passeio de conexões heterogêneas sem nos tornar reféns desse estado? Tendo prudência. Descobrir novas conexões para os órgãos é uma questão de experimentação, manter-se são é uma questão de prudência. É possível abrir o corpo sem se matar, é possível viver a diferença sem perder nela, é possível a anarquia dos desejos, mas a anarquia nunca foi bagunça.  

A prudência é uma regra imanente à experimentação porque ela não é colocada antes ou acima dela, como um mandamento. Ao contrário, é uma arte das doses que se dedica em cada caso a descobrir a medida certa. Não é um caminho do meio, não é um conselho pronto, mas um conhecimento obtido pelo próprio ato de experimentar. É responder em cada situação à mesma pergunta, parafraseando Nietzsche: “Quanto desejo somos capazes de suportar?”

Se não tomarmos cuidado, a desestratificação nos soterra, como uma casa que desaba porque lhe foi tirada toda a estrutura. A prudência, enquanto arte das doses, é a tentativa de desterritorializar-se sem perder o abrigo. Qualquer um que se proponha a um acesso à multiplicidade precisa experimentar, e qualquer experimentação precisa de prudência para ser interessante. O pior não é permanecer estratificado, mas perder as capacidades de se desestratificar. Por isso, dizem Deleuze e Guattari: “É necessário guardar o suficiente do organismo para que ele recomponha a cada aurora.”

Em suma, a prudência é o cuidado para que no processo que consiste em arrancar as funções dos órgãos para melhor fluir deles, não acabemos esvaziados de toda vitalidade. Mais do que um aviso de perigo, a prudência é o conceito que introduz a calma na experimentação tanto quanto a tranquilidade na subversão: vá em seu tempo, devagar se assim lhe parecer melhor; encontre os limites que lhe dizem respeito, atravesse-os aos poucos; e, sobretudo, atente-se à hora de voltar para casa.

Texto da Série:

Mil Platôs

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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