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O capítulo nove de Mil Platôs é um dos mais difíceis do livro. O título é duplo porque os autores parecem ter perspectivas diferentes e irredutíveis sobre o assunto, mas o problema é um só e não deixa dúvidas: como pensar o fascismo? Em vez de chegar a um consenso, há uma disputa amigável e uma dupla percepção. Deleuze propõe uma análise das linhas de fuga em um campo mais teórico, enquanto Guattari pensa a micropolítica em um campo de ativismo.

O enfrentamento ao fascismo é um tema que já estava presente no Anti-Édipo. Não há como esquecer o prefácio escrito por Foucault em 77, chamado “Para uma vida não-fascista”. No Mil Platôs, os três inimigos continuam presentes: os militantes-padres da revolução, os psicanalistas da repressão do desejo e os fascistas, tanto fardados quanto enrustidos. Assim, o platô começa com a indicação do ano 1933, data que marca a nomeação de Hitler como chanceler do terceiro reich.

Hitler é o ápice de um fenômeno das massas que arrastou as linhas de fuga para o campo da paranoia. Então, para compreender, precisamos fazer uma análise de caso, não dentro do consultório, mas nas ruas. Deleuze e Guattari propõem a cartografia como mapeamento dos movimentos desejantes que atravessam os sujeitos de uma sociedade. Que tipo de desejo vemos circular e como podemos identificar o tão temido germe fascista?

O fascismo é um conceito que extrapolou o campo da história e que usamos como acusação às práticas autoritárias, ultranacionalistas e racistas. Nós não nos incomodamos com essa prática. Ao contrário, pensamos que isso está diretamente relacionado a uma época em que o fascismo se dissemina e cresce. O regime fascista organizado foi vencido, mas o investimento fascista do desejo pelos sujeitos continua solto pelas ruas. 

Deleuze e Guattari procuram compreender o fascismo como regime de produção desejante. Para isso não podemos pensar que o fascismo é uma questão de historiador: aquilo que foi posto para funcionar ontem funciona ainda hoje. Também não podemos pensar que o fascismo é uma questão partidária: não se trata de um antagonismo de tipo ‘bem versus mal’, mas de atravessamentos. Em suma, o fascismo é uma questão micropolítica: linhas de fuga que se tornam suicidárias e tomam populações inteiras.

Como compreender a sustentação popular em que se apoiou o fascismo senão como expressões amplificadas de determinados movimentos subjetivos? Podemos encontrar pequenos Hitler inflamados em cada esquina, até mesmo nos parlamentos, alguns inclusive chegam aos postos mais altos do poder estatal. Em um texto de 1973, Guattari identificava em Hitler quatro características que nos permitem identificar o germe fascista em outros sujeitos:

  • Fala simples de agregação popular levada por discurso patético, isto é, cheio de paixões odiosas e descontroladas 
  • Estilo militar de “antigo combatente” que neutraliza certos elementos da alta patente, um tipo diferenciado de conservador
  • Mediocridade de “pequeno comerciante” que passa a ilusão de ser facilmente manipulável pelas elites financeiras
  • Um delírio racista, tomado de louca energia paranoica, que dá tesão naqueles que dela participam

Qualquer semelhança com o bolsonarismo não é mera coincidência. Entretanto, o líder não é exatamente o problema, ele é apenas uma representação de uma trama múltipla de sujeitos que circulam por aí formando a base afetiva e desejante que sustenta as práticas mais autoritárias e violentas nas relações. Assim, a micropolítica se faz como prática de identificação e questionamento desses movimentos onde quer que eles se apresentem, inclusive em nós mesmos!

O fascismo não foi apenas um erro histórico, um mau momento, já enterrado e superado pelo capitalismo. Ao contrário, o capital, enquanto forma de poder financeiro hegemônico, funciona basicamente assujeitando os grupos locais, ressentindo os pequenos grupos. O sistema capitalista é um grande berçário para todo tipo de autoritarismo e, aliás, se alia a essas formas quando lhe convém. 

Nós gritamos “fascistas, não passarão”, mas eles já passaram, estão todos aí. A micropolítica é uma forma de lutar no lugar mesmo onde os fascismos nascem, isto é, no meio de nós; e criar formas de viver que estejam protegidas dos investimentos de desejo que conduzem à morte. Deleuze e Guattari nos ensinam a mapear o fascismo a partir dos gritos de “viva à morte” e nos incitam a interferir para que eles não se tornem uma verdadeira odisseia suicida.

Deleuze complementa a micropolítica de Guattari com o pensamento das linhas, dizendo que o ser humano é um animal segmentário: suas linhas são segmentadas, isto é, cortadas em vários níveis. Somos divididos binariamente em homens e mulheres, adultos e crianças, jovens e velhos; também de forma circular em territórios residenciais, comerciais e industriais; e ainda em secções lineares progressivas como na passagem da escola para o exército para o trabalho para o asilo. 

Nossa vida é organizada socialmente em linhas segmentadas em máquinas duais, concêntricas e fixas. Mas há sempre algo querendo fugir e flexibilizando essas linhas mais duras. Essa tensão entre uma estrutura de linhas duras e uma multiplicidade que as flexibiliza ou foge está presente em todas as lutas, em cada sujeito, assim como na composição das instituições e estados. As linhas segmentares duras e flexíveis se cruzam na trama social tanto da macropolítica quanto da micropolítica. 

“Toda sociedade, mas também todo indivíduo, são pois atravessados de duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e outra molecular. Se elas se distinguem, é porque não têm os mesmos termos, nem as mesmas correlações, nem a mesma natureza, nem o mesmo tipo de multiplicidade. Mas, se são inseparáveis, é porque coexistem, passam uma para a outra, segundo diferentes figuras como nos primitivos ou em nós – mas sempre uma pressupondo a outra. Em suma, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica” Deleuze e Guattari, Mil Platôs, 3, p.99

Deleuze propõe duas formas de apreensão da multiplicidade pela máquina social. Os processos molares são aqueles mais duros nos quais as populações são tomadas em sua grandeza, em seus conjuntos, estatisticamente. Enquanto os processos moleculares são aqueles nos quais os grupos são tomados em sua localidade e singularidade. Os processos molares e moleculares coexistem. Exemplos:

  • O estado (molar) e a burocracia (molecular)
  • A igreja (molar) e os pecados (molecular)
  • O banco (molar) e a moeda (molecular)
  • A sexualidade (molar) e a relações (moleculares)

Deleuze e Guattari alertam para a complexidade da análise das linhas. A máquina social não possibilita simplificação. Não podemos confundir o molar com o mau, nem o molecular com o individual, nem um como grande e o outro como pequeno. E o fundamental: não achar que uma coisa existe sem a outra. Os dualismos na filosofia de Deleuze e Guattari são sempre relativos a uma taxa ou proporção. Podemos dizer que quanto mais duramente segmentada uma vida se encontra, mais molar ela se encontra tomada socialmente, enquanto linhas mais flexíveis são tomadas molecularmente nas suas relações. 

O funcionamento cotidiano de uma sociedade se dá nessa relação entre linhas duras e flexíveis, tanto em nível molar quanto molecular. No entanto – e é aqui que voltamos ao tema do fascismo – as rupturas são sempre causadas por linhas de fuga. A revolução é sempre molecular e arrasta as linhas de desejo para além de qualquer segmentação. Não são as estruturas que mudam radicalmente uma sociedade, mas a amplificação de suas linhas de fuga. 

As revoluções, as insurreições, os golpes de estado são ressonâncias, retroalimentações de linhas que querem fazer a organização social atual fugir. O desejo atravessa as massas e se amplifica em movimentos imprevisíveis, da mesma maneira como uma determinada frequência produzida pelo vento faz uma ponte de concreto desabar. O problema é que essa força pode ser completamente capturada pelo fascismo e pautada por afetos violentos como o ódio:

“À questão como o desejo pode desejar sua própria repressão, como ele pode desejar sua escravidão, respondemos que os poderes esmagam o desejo, ou que o sujeitam, já fazem parte dos próprios agenciamentos de desejo: basta que o desejo siga aquela linha, para ser levado, como um barco, por aquele vento. Não há mais desejo de revolução do que desejo de poder, desejo de oprimir ou de ser oprimido; mas revolução, opressão, poder etc., são linhas componentes atuais de um agenciamento dado.” Deleuze e Parnet, Diálogos, p.154

Com La Boétie, com Espinosa, com Reich, com Deleuze e Guattari, não cansamos de repetir essa pergunta: como é que chegamos a desejar servidão? Micropolítica e segmentaridade são esboços de resposta enquanto análises de tensão entre estratificação e multiplicidade. É sempre difícil prever por onde vão passar as linhas. A realidade é tão delirante quanto um sonho: que linha desperta terror, que linha desperta amor? Se nos propomos a sonhar, isto é, deixar as linhas passarem, isso se faz ao preço de conhecer os perigos. A prudência reaparece aqui como pergunta ao desejo: “para onde vai?”, “por onde passa?”

No Mil Platôs, a micropolítica é também qualificada como um estudo dos perigos da multiplicidade pura. Pergunta-se: “quais são as linhas e quais são os perigos de cada uma delas?”. Deleuze e Guattari resumem em quatro perigos, um para a linha dura, um para a linha flexível e dois para as linhas de fuga:

  1. Medo de perder aquilo a que nos agarramos: quanto mais a segmentaridade é dura, mais nos tranquilizamos, as coisas são previsíveis, realmente lineares. A segmentaridade nos dá uma identidade, um rosto bem figurado é confortável, ainda que nos oprima. Esse perigo é o que nos faz fugir diante da fuga, recusar qualquer abertura e flexibilidade.
  2. Clareza excessiva em relação à molecularidade presente: a partir de um contato com uma linha mais própria, com alguma flexibilidade, com um índice intensivo qualquer, o perigo é tornar-se um cavaleiro em uma missão – espalhar e converter os outros. Deleuze resume: “Os Stálins de pequenos grupos”.
  3. Poder sobre as linhas de fuga: fazer da impotência uma forma de poder. Deleuze e Guattari apontam para um conceito de “centros de poder”, mas desenvolvem pouco a ideia, referindo a ele todos os processos de formação dos personagens tristes: tiranos, sacerdotes, herdeiros, aqueles que retiram seu poder da tristeza dos outros.
  4. Desgosto próprio às linhas de fuga: acontece quando as linhas de fuga se transformam em linhas de destruição, tomadas por uma paixão de abolição. São linhas que tomam desgosto pela vida e preferem fazê-la fugir do que continuar criando. Podem ser chamadas também de linhas suicidárias.

O fascismo, em especial na sua forma nazista, é a efetuação de linhas suicidárias através de uma máquina de guerra. Os sujeitos atravessados por tais linhas são tomados por nojo de tudo aquilo que não se adequa a sua concepção de vida e preferem a morte à uma vida não higienizada segundo seus critérios. Isso fica claro no telegrama 71, onde Hitler diz: “Se a guerra está perdida, que pereça a nação”. Para um fascista, não há vida possível além daquela prevista pelo seu desejo. Toda a diversidade é nojenta e precisa ser extirpada, daí sua afinidade com o racismo, a xenofobia, a misoginia, a homofobia e os delírios paranoicos em geral.

Aqui percebemos como o fascismo é, na realidade, um microfascismo. Todo pensamento hegemônico que se fortalece violentando a diversidade de modos de viver e pensar contém a peste e a espalha entre os grupos. Se o fascismo é perigoso, é exatamente por ser molecular, rizomático, contagioso, desejante. Difícil de ser identificado e eliminado, ele é o desejo que transforma linhas de fuga – nossa potência revolucionária! – em lógica de extermínio. 

“Uma estranha observação de Virilio nos dá a pista: no fascismo, o Estado é muito menos totalitário do que suicidário. Existe, no fascismo, um niilismo realizado. É que diferentemente do Estado totalitário, que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o fascismo se constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma em linha de destruição e abolição puras” Deleuze e Guattari, Mil Platôs, 3

A máquina de guerra fascista é aquela que tem por fim a própria guerra, e a toma como seu movimento perpétuo. Já não se trata mais da guerra como um meio, mas a guerra como fim em si mesma. Imaginamos Hitler ao final da guerra, gritando: “somem-se aos inimigos, destruam tudo, nada está à altura”.  Os nazistas não arrefeceram nem quando o monstro começou a devorar os próprios filhos. Eles preferiram destruir-se do que deter a destruição, e assim o suicídio se tornou o coroamento da morte dos outros.

A pergunta que nos resta: o que fazer para impedir que o fascismo cresça? A primeira coisa é perceber que essas linhas nos atravessam a todos. O delírio paranoico-fascista toma nossos pais, irmãos e amigos – quando não nos toma a nós mesmos! Deleuze e Guattari alertam: “É muito fácil ser antifascista no nível molar, sem ver o fascista que nós mesmos somos, que entretemos e nutrimos, que estimamos com moléculas pessoais e coletivas”. Assim, antes de mais nada, é preciso não coadunar, não dar corpo a esses desejos, eis o começo de qualquer possibilidade de resistência.

Texto da Série:

Mil Platôs

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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