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No começo do fim, quando o corpo tornou-se sedentário, assentou-se em torno da primeira semente plantada, e mudou de posição. Curvou-se para frente, arqueou a coluna, criou poltronas, cadeiras e camas. Depois de sentir-se confortável, ampliou as fronteiras e chamou tudo o que alcançava de propriedade privada.

Mas o corpo tornou-se analfabeto em sua própria pátria. Ele sentia, ainda podia sentir, mas não sabia traduzir o que sentia em palavras, muito menos em ações. A causa lhe escapava, lidava apenas com os sintomas. Foi então que o corpo precisou de antidepressivos, de ansiolíticos. Ele não aprendeu a falar nossa língua, por isso precisou ser mediado por outras estruturas, diagnósticos médicos, cardápios nutricionais, orientações de exercícios regulares.

Pouco a pouco, o corpo se desencaixou. Ele foi julgado a partir de outro ponto de vista: para o burguês, algo lhe faltava, quando não conseguia mais girar a manivela da esteira de produção; para o moralista, algo lhe sobrava, dizia que ele estava acima do peso, sonolento demais, com tesão demais. Ele tornou-se réu perpétuo, acusado nos mínimos detalhes, algo estava sempre fora do lugar, seu movimento era torto, desengonçado. Na realidade, o corpo mancava, chorava,  suava, sentia-se um estrangeiro em sua própria terra.

Por isso, o corpo se distraía. Ele se movia com a precisão de um autômato no mundo real, mas sua mente o abandonava e ia para outro lugar. O corpo era deixado pra trás em face do mais leve desconforto. Assim que podia, a mente pulava para dentro de uma tela, saía de si. Pedia-se para interpretar o desejo do corpo e traduzia-se o desejo em bits e bytes: Fome? Tome aqui o cardápio do ifood. Carência? Ora, então o cardápio do tinder é mais adequado. Falta genérica não discriminada? O cardápio da amazon deve bastar.

O corpo gritava cada vez mais distante, cada vez mais pra dentro, um lamento surdo que nem o ouvido mais apurado conseguia ouvir. Seu grito era uma denúncia abafada, um protesto rouco contra sua morte anunciada. O corpo gritava por todos os poros, mas ninguém escutava, os olhos estavam voltados para outro lugar. Era dia de balanço na empresa, “chamem alguém do RH pra lidar com isso”.

O corpo tornou-se cansado, mas não tinha opção senão voltar sempre para o mesmo lugar. Em ciclos, ele morria e renascia, se cansava e se nutria, se desiludia e tirava férias, o fim do ano sempre marcado pelo começo do ano. Tirania de Cronos. O corpo se sentia sozinho, porque sentia que seu caminho estava traçado do primeiro ao último ato por forças muito maiores que ele. Um determinismo, uma falta de perspectiva, um cansaço ontológico. Como a fraqueza lhe impedia de resistir, ele apenas se deixava levar pela corrente, junto com os outros corpos semelhantes, como troncos descendo o rio para serem cortados na madeireira mais próxima. A única alternativa tornou-se a alternativa escolhida.

Enfim, o corpo esgotou-se. O ciclo encerrou-se, ele não pode recomeçar, não tem mais o que fazer. Toda a energia vital lhe foi drenada: transformou-se em produto na prateleira, materializou-se no carro novo do patrão, foi comemorado com otimismo pelos economistas no anúncio de superávit primário do primeiro trimestre. Como uma mina de carvão que chega ao fim, como um lago drenado pelas necessidades de uma grande empresa, como uma montanha que desaba após lhe escavarem toda a estrutura. Ao corpo esgotado não resta mais nada, salvo a potencialidade de algo novo.  O corpo, que terminou antes do fim, se recolhe, se reorienta, se refaz, se reencarna. Afinal, os corpos nunca realmente acabam.

– Jenny Saville

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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Lucas Vezedek Passarinho
Lucas Vezedek Passarinho
10 meses atrás

Corpo-continuidade.

Agradecido pela partilha. Gostaria de saber como posso citar esse texto, visto que não há marcação de data de publicação aqui no site.

TRINDADE, Rafael. História do Corpo. Sem data. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2023/02/13/historia-do-corpo/&gt;. Acesso em: 25 set. 2023.

Está correto?

Lucas Vezedek Passarinho
Lucas Vezedek Passarinho
Reply to  Rafael Trindade
10 meses atrás

Agradeço o seu retorno. Em que lugar do texto? Pergunto porque pretendo citar outros textos e não consigo encontrar o local de indicação da data de publicação. Não sei, talvez só apareça para você, porque aqui não aparece em nenhum lugar dessa página.