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Não sei onde está você que me ouve neste momento, mas, se puder, feche os olhos. Cuidado para não perder o ponto, ou deixar o copo ensaboado escorregar e, se estiver na esteira, talvez seja melhor diminuir um pouco o ritmo. Muito bem, agora de olhos fechados, tente recriar o ambiente em que está. Você pode começar pelas paredes, pelo chão, pelo teto, pelas referências estruturais do cômodo; ou, se preferir, comece preenchendo gradualmente o espaço com a lembrança dos objetos que forem surgindo à mente – uma mesa ou um banco ou livro, caneca e lâmpada. Seja como for, acredito que uma ideia mais ou menos geral do ambiente se faça presente à sua imaginação neste momento. Talvez você nunca tenha pensado o quão incrível é essa capacidade de projetar as coisas dentro de nós, somos um pouco arquitetos de mundos interiores, mas vamos seguir com o experimento.

Abra os olhos e os fixe em alguma coisa coisa que lhe chamar atenção. Prefira algo que possa permanecer constante sob o seu olhar por alguns minutos. Para obter efeitos mais interessantes, evite celulares e outras telas. Agora, faça uma investigação minuciosa do objeto escolhido, observando calmamente cada detalhe, dos traços aos pingos, das formas às cores, das manchas aos rasgos, das linhas aos pontos. Tente registrar cada coisinha irregular, cada grão de poeira estacionada na superfície, cada risco saindo ligeiramente da reta, cada fio solto na costura. Encare a coisa até que, de tanto acrescentar detalhes, ela ganhe uma existência concreta à sua frente, perdendo seu nome genérico e se destacando de sua banalidade cotidiana. Se esforce para enxergar a substância que existe por baixo do substantivo. Seria muito difícil encontrar outra coisa exatamente igual a esta no mundo, não é?

Feito este exercício, pergunto: será que podemos transportar este objeto para a imaginação sem perder nada? David Hume, filósofo escocês do século XVIII, baseou sua teoria sobre a mente humana respondendo negativamente a essa questão: não, nós humanos não somos capazes de criar ideias que correspondam completamente à vivacidade das coisas quando se apresentam aos nossos sentidos. Ele dizia que fechar os olhos é um exercício muito eficaz para mostrar que nós só conseguimos registrar em imagens mentais as coisas mais gerais. Isso fica ainda mais evidente quando comparamos o quadro representado na imaginação a um único pequeno objeto presente aos sentidos, como fizemos. Mesmo a mínima coisa parece complexa demais para ser copiada integralmente pela atividade da mente, que dirá as imensas. Como poderíamos lembrar em detalhe de tudo o que havia à nossa volta quando estávamos de olhos fechados? Por mais que tivéssemos passado dias a olhar cada canto do cômodo, não seríamos capazes de lembrar de tudo. Esse simples experimento mental mostra o quanto a nossa capacidade de registrar as coisas na mente é limitada.

Na passagem da coisa real à imaginária ou, nos termos de Hume, das impressões às ideias, alguma coisa se perde. Se na experiência direta as coisas possuem uma vivacidade tal que não cessam de nos trazer mais e mais detalhes sobre si mesmas, na experiência mental elas empalidecem, perdendo a vivacidade que possuíam enquanto impressões. Podemos definir a imaginação como um trabalho sobre essas cópias abstraídas dos sentidos. Por meio dela, somos capazes de dar nomes gerais às coisas, ignorando o que elas têm de diferente e organizando-as sob uma mesma palavra. É extremamente improvável – para não dizer impossível – que existam duas maçãs exatamente iguais, mas graças à imaginação somos capazes de reter os traços gerais das várias maçãs que vimos na experiência vaga em uma imagem universal e, assim, remetê-las a um nome comum. Por mais limitada que seja essa capacidade, não deixa de ser impressionante.

A mente tem a capacidade de criar representações mais ou menos fiéis dos objetos com que toma contato e consegue até combiná-los de maneiras criativas, formando imagens que não existem na experiência banal. No entanto, quando comparamos essas representações às coisas mesmas, percebemos que a nossa imaginação parece ter um ponto cego, ela tem pouca capacidade de se referir às coisas em específico. É claro que é possível usar adjetivos para falar de uma maçã singular, mas o que acontece quando os detalhes vão se somando? Ora, torna-se impraticável descrever o objeto. Por mais que tentemos ao máximo, “maçã-verde-com-pintinhas-brancas-meio-amassada-do-lado-direito” parece um processo de descrição que acena ao horizonte infinito. Poderíamos inventar um nome próprio para cada coisa que encontramos no mundo, o que também parece impossível. Uma fruteira em dia de feira seria mais desafiadora à memória do que um encontro de família com tios-avôs e primos de segundo grau. Ou seja, de um jeito ou de outro, encontramos rapidamente um limite naquilo que a mente pode fazer em termos de imaginação e memória: ela registra apenas um recorte de tudo aquilo que acontece, para então trabalhar com seus traços gerais.

Chegamos ao ponto incômodo que inspirou este texto: o que é exatamente a memória quando percebemos o quão pouco lembramos? ou melhor, do que se compõe uma lembrança? A partir dos experimentos que acabamos de fazer, parece necessário admitir dois fatos: primeiro, que as coisas presentes em si mesmas possuem uma riqueza de detalhes imensurável; segundo, que nossa capacidade de imaginá-las apenas faz menção a essa riqueza, perdendo dela a maior parte. Nossa atenção é uma espécie de feixe de luz que amplifica ao infinito o objeto para o qual se volta. A imaginação, por sua vez, é como uma câmara escura que registra alguns dos clarões refletidos em finas películas. Será que a memória trabalha apenas com essas imagens, sendo assim um efeito da imaginação; ou será que é mais profunda, mais atenta, mais viva, como um canal por onde a experiência escoa sorrateiramente?

Não sabemos ao certo. Às vezes lembramos de coisas que não tínhamos reparado no momento da experiência, como, por exemplo, quando nos vem repentinamente à cabeça a imagem da chave esquecida em cima da mesa (como é que lembramos o que esquecemos?); por outro lado, somos absolutamente incapazes de lembrar tudo que nos acontece, como, por exemplo, a ordem e a entonação com que as palavras deste texto foram pronunciadas. De uma maneira ou de outra, a experiência nos obriga a admitir que somos seres que se lembram de quase nada ou que se esquecem de quase tudo. O quanto não somos gratos, porém, pelo quase.

Rafael Lauro

Autor Rafael Lauro

Um dos criadores do site Razão Inadequada e do podcast Imposturas Filosóficas, onde se produz conteúdo gratuito e independente sobre filosofia desde 2012. É natural de São Paulo e mora na capital. Estudou música na Faculdade Santa Marcelina e filosofia na Universidade de São Paulo. Atualmente, dedica-se à escrita de textos e aulas didáticas sobre filósofos diversos - como Espinosa, Nietzsche, Foucault, Epicuro, Hume, Montaigne, entre outros - e também à escrita de seu primeiro livro autoral sobre a Anarquia Relacional, uma perspectiva filosófica sobre os amores múltiplos e coexistentes.

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