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Em frente a um amplo público, a apresentadora famosa se aproxima do microfone com um envelope dourado nas mãos e diz: “E o prêmio de comercial mais lucrativo do ano vai para… Brand&Solutions por dobrar o rendimento da suas marcas associadas

Um homem, evidentemente branco, se levanta, caminha até o palco com seu terno bem talhado, abre um papel e começa a discursar: “Obrigado, obrigado… a Brand&Solutions é uma empresa muito preocupada com a nossa sociedade, vocês sabem, nós encontramos soluções criativas para marcas que querem crescer, lucrar e influenciar o mundo, estamos sempre olhando para o futuro, somos investidores e inovadores, gostamos de pensar fora da caixinha, não somos como os outros, somos diferentes, este é nosso o negócio, nós somos conceituadores”. O público aplaude de pé, satisfeito com as palavras deste grande pensador.

Toda grande ameaça para a sociedade já foi um dia um questão pequena e ordinária, isso aconteceu com o nascimento da publicidade. Mas Deleuze, um dos filósofos mais importantes do século XX, nos alertou para os publicitários, dizendo que eles tinham a ousadia de roubar um ofício que pertencia ao filósofo. Claro, debochou da maneira ridícula como isso acontecia, dizendo que criar comerciais para marcas de macarrão não era realmente filosofia. Afinal, qual o risco que eles poderiam oferecer?

Os tempos mudaram e a situação se inverteu, hoje dizem que a filosofia acabou, e que não serve para mais nada. Tudo pode ser resolvido com um bom comercial de televisão. Ora, se o filósofo não tem mais utilidade, quem vai pensar? Antes, talvez, precisamos entender por que alguém pensa. Ou melhor, para que serve o pensamento? Uma resposta possível é que o pensamento sempre surge em face de algum problema. Deste modo, se o publicitário se diz o novo pensador, então deve existir algum problema a ser enfrentado. Mas se vivemos na era da abundância, qual problema o pensamento poderia resolver?

Corta a cena, vamos para uma sala no último andar do prédio comercial, com janelas amplas onde se pode ver toda a cidade, o diretor da empresa entra apressado, é uma reunião de última hora com os principais sócios e investidores. O clima de tensão é flagrante, o diretor permanece em pé, abre um powerpoint, enquanto a secretária entrega pranchetas com dados a todos os presentes. Durante a apresentação, ele aponta freneticamente para gráficos de pizza, planilhas com números vermelhos, parábolas invertidas, e conclui dizendo: “É isto, senhores, produzimos demais e vendemos de menos, os lucros estão caindo. Precisamos fazer algo, e rápido”. Pois bem, eis o novo problema. Um telefone vermelho é colocado em cima da mesa, só há uma pessoa que eles podem chamar.

Se todo e qualquer conceito nasce em função de um problema, então já sabemos quais são os problemas que o marketing precisa dar conta. Por mais que a resposta a esta altura seja óbvia, precisamos dizer com todas as letras para que não reste dúvida: o publicitário só pensa no lucro. Como fazer alguém comprar mais? Como fazer alguém desejar mais? Enfim, como fazer alguém gastar mais? Estas são as dificuldades que o marketing precisa superar. É para isso que eles são contratados, é para isso que eles pensam. Eles se sentam, colocam o cotovelo no joelho, apoiam o queixo nas mãos e dizem em voz grave: “certo, como fazer alguém querer o que não quer?”.

A partir do momento em que o lucro perde seu crescimento orgânico, é preciso forçá-lo por meios artificiais. A viscosidade do marketing nasce de uma sedução da linguagem. Eles sabem, é preciso agir no campo do desejo: por isso todo comercial sussurra palavras agradáveis em nossos ouvidos, como  fantasmas que nos assombram, lentamente invadem nossas casas sem ser chamados e  se insinuam em nossos sonhos. Não há como exorcizá-los, eles estão na tv, no celular, nas capas de revista, nas embalagens.

Através destas imagens, criou-se um mundo deformado, onde todos os dentes são brancos, todas as bundas são grandes, todas as barrigas são chapadas, todos os carros andam por ruas desertas com o semáforo sempre verde. Nos movemos dentro desta contínua  hipnose coletiva e não vemos a realidade do outro lado. O encantamento é tão forte que mesmo durante o descanso e o lazer nos deixamos carregar pelo agradável movimento propagandistas.

Então, reencontramos o filósofo, ele volta para a caverna como Moisés desce da montanha. Enquanto o último encontra os hebreus cultuando um bezerro de ouro e se desespera, o primeiro encontra os intelectuais de seu tempo levantando estatuetas de prêmios do mercado publicitário. “A Filosofia acabou!”, eles gritam de alegria, “nós somos os pensadores do nosso tempo! Nós criamos conceitos!”.

O filósofo ri, como apenas Diógenes ou Zaratustra seriam capazes, mas na verdade deveria chorar. Talvez seja tarde, talvez ele tenha ficado tempo demais longe da caverna, talvez tenha sido seduzido pelos conceitos e esqueceu-se de retornar antes, enquanto ainda havia tempo. Seu rival cresceu na sua ausência, criou prêmios, eventos, cerimônias, comemorações para si mesmo, para congratular-se pela nova marca de macarrão, pelo molho de tomate certificado, pelo selo verde na salada de conceitos que inventou ano após ano, gerando lucros recordes para qualquer instituição que o procurasse.

Pois bem, se a filosofia acabou, se ela não serve para mais nada, que seja constatada a hora de sua morte e ela seja levada para o túmulo, mas não sem antes carregar seus filhos bastardos para a cova, e a publicidade não escapará. Entretanto, se ainda existe vida nela, que sua ira se derrame sobre todas as estatuetas de ouro, todos os simulacros de pensamento, toda a besteira que ousa falar em voz alta o que nunca deveria ser dito.

Em suma, se a filosofia vive, seu grito deve fazer os tímpanos sangrarem. Deleuze disse certa vez que a filosofia existia para que a besteira não fosse tão grande, mas é tarde demais, hoje seu papel é outro, ela existe para calar a arrogância e afrontar o orgulho dos falsos filósofos criadores de comercial de macarrão. Que ao menos eles percebam, mesmo que  sentados em seus lucros exorbitantes, que isso não é pensar.

Imagens de Stephan Schmitz

Rafael Trindade

Autor Rafael Trindade

Quero fazer da vida o ofício de esculpir a mim mesmo, traçando um mapa de afetos possíveis.

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