Uma história muito antiga nos foi contada: um grande filósofo se equivocou. Será mesmo? Filósofos são tão ousados quanto prudentes. Pois bem, foi René Descartes quem escreveu sobre a suposta função da glândula pineal, responsável por fazer a ligação entre o corpo físico (res extensa) e a mente incorporal (res cogitans). Seu raciocínio começa de modo simples: ora, não somos máquinas, enquanto elas realizam sempre os mesmos movimento e são estimuladas por forças exteriores, nós possuímos livre arbítrio, somos diferentes, podemos nos movimentar por nossa própria vontade. Certo, mas como este suposto livre arbítrio “entra” neste mundo?
Se os animais são como máquinas complexas, com engrenagens, que se movimentam com polias e roldanas, aos seres humanos foi dado o livre-arbítrio para pensar e agir, através de nós, um tanto de liberdade e indeterminação entra no mundo. Aí está a diferença entre a “res extensa”, as coisas materiais no espaço, e “res cogitans”, as coisas espirituais e imateriais. E é através de um ponto no cérebro, a glândula pineal, que o livre arbítrio do espírito se insere na matéria do corpo. Desde então, os naturalistas se esforçaram para desmentir, e mesmo ridicularizar esta teoria, reduzindo a mente a uma emanação do corpo, quando não a uma ilusão gerada pelo cérebro.
A fisiologia tentou colocar uma pedra no assunto respondendo cientificamente ao tema: a famigerada glândula pineal não passa de uma glândula endócrina no centro do cérebro de quase todos os vertebrados. Nada mais que isso, um órgão responsável por liberar melatonina, hormônio derivado da serotonina, e responsável por regular o ciclo do sono. Parece que a ciência sempre chega tentando fechar a discussão com uma suposta resposta definitiva.
O paralelismo tornou-se pouco a pouco cada vez mais restrito, fazendo uma correspondência inflexível entre o cérebro e a vida mental e impedindo de pensar cada um em sua natureza própria. Hoje é fácil pensar que a mente não passa de uma evanescência das atividades dos neurotransmissores. Dado um estado cerebral, segue-se um estado psíquico, e pronto, a consciência expressa os estados físicos do cérebro. Estudar o pensamento e o espírito tornou-se sinônimo de estudar neurônios e neurotransmissores. Herdamos um paralelismo obtuso e demos o assunto por encerrado. Quebrem o abajur e a luz se apaga, diriam os neuropsicólogos, mas será que é tão simples assim?
Então aparece Bergson, ele não é cientista, ele é filósofo, algo bem diferente. Ele não parte da tradição, ele a questiona. E novamente a questão começa com uma afirmação simples: ora, sentimos que somos livres, o que é esta estranha sensação? Seria ela apenas uma ilusão? Não, dirá Bergson, não é uma ilusão, e afirmará com todas as letras: “A vida do espírito transborda a vida cerebral“. Esta frase já nos deixa desconfiados e reticentes. Sempre temos medo de desafiar a tradição científica, mas não tem problema, está aí uma boa oportunidade para o pensamento acontecer, encontrando algum movimento sob as definições enrijecidas.
A mente é diferente do cérebro, é isso que Bergson quer nos mostrar. Mas isso não faz dele um dualista como Descartes. Então, precisamos atualizar a teoria da glândula pineal: além de sua função conectiva e hormonal, o problema mente e corpo continua em aberto. Afinal, como eles interagem? A solução ad hoc, como gostam de dizer os lógicos, fazia uso da glândula para ligar o material ao imaterial, mas com Bergson nós trilhamos outro caminho.
Ele começa colocando melhor os conceitos de corpo e de espírito. Eles são diferentes, um corpo está no espaço, ele é uma matéria atual no espaço que ocupa. Ora, nós somos um corpo presente, aqui e agora, mas há uma diferença importante: este corpo é algo que dura, ele é o presente somado ao passado que permanece. O espírito pode ser pensado como esse passado, são estas forças imaterias e virtuais, que existem, mas não são atuais. Por isso nosso cérebro é um ponto privilegiado, dirá Bergson, ele é o órgão responsável por chamar o passado para o mundo real. O cérebro é uma máquina complexa encarregada de receber estímulos sensoriais atuais e escolher o melhor movimento corporal para responder à situação. Para fazer isso, ele clama por um uma memória que permanece presente de forma virtual. Onde ficam essas memórias? Seria o cérebro um baú de memórias, onde elas ficam à disposição para serem consultadas? Na verdade, dirá Bergson, a função do cérebro é puxar a memória de lugar nenhum.
O filósofo traz uma analogia para explicar a estranha ligação entre corpo e o espírito: um botão é diferente da camiseta fechada, um prego é diferente da parede e do quadro pendurado. As metáforas são importantes para despertar em nós a desconfiança, porque a solidariedade observada entre mente e corpo não é o bastante para sustentar um paralelismo espelhado. Fazemos essa correlação porque a metafísica não soube pensar o mental sem se utilizar da explicações espaciais para ela. Deste modo, não soubemos dar outra resposta para a questão da mente-corpo além do paralelismo raso, do mero reflexo intocável do espelho.
Com esta metáfora podemos dizer que o cérebro sustenta o espírito da mesma forma que o prego sustenta o quadro na parede. O cérebro é o botão que fecha a ligação entre corpo e espírito, entre presente e passado. É como se ele todo fosse uma grande glândula pineal que permite ao espírito penetrar no presente. Mas há uma diferença importantíssima aqui, para Bergson, o espírito tem outro nome: ele é definido como memória, ou melhor, como Duração. Sendo assim, o cérebro é o órgão pelo qual o passado (que não é atual, mas nunca deixou de ser presente) pode vir a se inserir no presente. Ele não é um empoeirado repositório de lembranças, ele apenas permite que elas se atualizem funcionalmente, permitindo o ajustamento do corpo às situações exteriores que exigem uma ação condizente.
A glândula pineal foi a maneira que Descartes encontrou para pregar a alma no corpo, fazê-los interagir. Bergson também fez isso, mas de modo imanente, encontrando no cérebro um caminho para a duração continuar se atualizando com força no presente. É por meio de suas funções sensório-motoras que o cérebro se torna o responsável por receber estímulos sensoriais e devolver respostas na forma de movimento muscular. Mas enquanto dura, abre-se como uma hesitação, enquanto acumula passado, ele adiquire a capacidade de devolver o movimento de forma não mecânica, e por isso insere mais do que se pode explicar apenas com o presente.
Ora, mas o problema permanece, como nós acessamos este passado? Onde ele está? E então percebemos como formulamos mal a pergunta: afinal, a duração não é algo espacial para ser encontrada em algum lugar. Nós somos o próprio passado, ele não está em outro lugar, ele está aqui! O cérebro é apenas o meio de passagem para o passado se inserir no presente na forma de lembranças úteis às ações. Esta lembrança dota o corpo com uma atitude, um movimento nascente na moldura apropriada da ação no real. Levando a analogia ao extremo, nos aproximando do erro (ou seria da errância?), podemos extrapolar dizendo que a glândula pineal é todo o cérebro e até mesmo todo o corpo. Nós somos passado atuando no presente. Sabendo que o assunto é complexo demais para ser reduzido em algumas palavras, podemos concluir com uma boa metáfora: o cérebro é o mastro do navio, fazendo a ligação entre o vento soprando e a proa cortando o mar. O cérebro nos ajuda a navegar.
Muito bom e esclarecedor o texto. Importantes as referências a esses filósofos sobre um tema tão controverso. Agradeço. 🌹